“Circulares aos sócios e militantes da TFP”, década de 60
Com a autorização de seu destinatário, transcrevemos a seguir uma carta contendo conselhos sobre vida intelectual a um jovem cooperador. Tais conselhos, mutatis mutandis, podem ser úteis a todos os que lutam pela defesa da verdade.
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Meu caro amigo,
Salve Maria!
O Prof. Plinio faz uma dedicatória, escrevendo sobre a mesa de conferência no auditório da sede do Conselho Nacional da TFP brasileira, então localizada à Rua Pará, n. 50, no bairro de Higienópolis, na capital paulista (década dos anos 60)
Li com muita simpatia a carta que você me enviou.
Não me leve a mal se eu lhe disser que não pude deixar de sorrir, ao ver que você queria ser um homem como eu. Garanto-lhe, com a maior sinceridade, que você não lucraria nada com isto, muito pelo contrário. Se eu lhe posso desejar algo de bom, será exatamente que isso não aconteça. Além do mais, cada um de nós tem uma personalidade única e inconfundível, e é chamado por Deus para realizar um ideal próprio de perfeição. De nós se exige uma fidelidade à verdade que há em nós, e que é o único caminho para atingir a verdade de todos nós.
Só a paixão da verdade justifica a existência de filósofos e escritores
Por falar em verdade, chegamos aqui ao ponto crucial de tudo o que você me diz em sua carta. O mundo está cheio de filósofos e de escritores, porém só há uma coisa que justifica a existência de uns e outros: a paixão da verdade. Sem esta paixão, livros e filosofias nada mais são do que vaidades, perigosíssimas vaidades que acendem o fogo na Terra e atiçam as labaredas do inferno.
Quem tem a paixão da verdade está disposto a despojar-se de si mesmo, sem qualquer restrição. Sacrificará as mais sedutoras idéias, os mais engenhosos sistemas, as mais profundas e luminosas elucubrações, as mais caras intuições, as satisfações mais elevadas da inteligência, e por fim as formulações mais cativantes e as imagens mais esteticamente felizes, para austeramente procurar e manifestar a verdade, só a verdade, que é sempre dura para a nossa condição humana, por causa de sua essencial transcendência.
Quem tem a paixão pela verdade se expõe à antipatia dos homens
E não é só. A verdade nunca foi muito estimada pelos homens, sendo positivamente desprezada em nossos dias. A verdade é una e imutável, mas os homens amam o espetáculo variegado das aparências que se sucedem; a verdade é eterna, mas os homens seguem as modas; a verdade é séria e os homens são frívolos; a verdade aponta o dever, ao passo que os homens querem os prazeres; enfim, a verdade é rija e os homens não têm fibra.
Portanto, quem tem a paixão da verdade se expõe, necessariamente, à antipatia dos homens, mas preferirá a verdade aos bens temporais, à carreira, ao renome e à própria reputação. Será perseguido e acusado por aqueles que prostituem a verdade fazendo dela um simples instrumento da sua enfatuação e cobiça.
Mas ainda não é tudo. A paixão da verdade pode levá-lo a silenciar anos a fio, enquanto os outros se alçam perante a opinião e a crítica, pela sua produção de obras literárias e filosóficas. Ele, no entanto, permanecerá calado, até que surja o único motivo que o fará manifestar-se: dar testemunho da verdade.
Diante do que acabo de dizer, você poderá retrucar que eu, em lugar de indicar o caminho da filosofia, indiquei o da santidade. É fato. Apenas quero salientar que, para quem tem a vocação dos estudos filosóficos, a perfeição espiritual se chama paixão da verdade. Para nós, católicos, a verdade não é apenas uma questão epistemológica ou metafísica, é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo de Deus que se encarnou para nos salvar.
E agora que chegamos a esta altura, podemos derivar as conclusões, para responder as questões particulares que você me propõe em sua carta.
A vida intelectual está intimamente ligada à espiritual, e dela depende
A primeira é que não deve haver distinção entre sua vida espiritual e a sua vida intelectual. Uma vez que você diz querer em tudo fazer a vontade de Deus, e se julga com vocação para os estudos filosóficos, então não se preocupe com o futuro, nem como haja de ganhar a vida: cumpra conscienciosamente os seus deveres e espere na Providência. Tenha confiança, Deus não esquece aqueles que O servem.
Porém, Ele costuma provar a confiança de seus servos. Quando isto lhe acontecer, não se suponha abandonado: são os caminhos normais da Providência. Quando tudo parecer perdido ou comprometido, aí virá a solução. Contudo, não espere soluções definitivas. Ficará sempre uma certa margem de incerteza e risco. Isto também é necessário, porque Deus quer que confiemos só nEle, e não nos arranjos humanos.
Por outro lado, não podemos perder de vista que somos exilados neste mundo, e que a vida presente é provisória e precária. Por isso não há, nem devemos desejar, situações definitivas nesta Terra. Devemos viver de fé, e a fé necessariamente é obscura, pois tem por objeto o que é invisível e inacessível à razão natural. São Pedro, caminhando sobre o mar tempestuoso, é a imagem da vida cristã. Bem sei que este caminho é difícil. É o caminho estreito da salvação, que Nosso Senhor apontou. Não há outro.
Evitar qualquer divórcio entre o pensamento e a vida
Em segundo lugar, no que se refere mais diretamente aos seus estudos, será preciso evitar cuidadosamente qualquer divórcio entre o pensamento e a vida. A filosofia não pode ser tratada como quem resolve um teorema de geometria. Em outras palavras, o filósofo não pode situar-se confortavelmente “fora” da filosofia, e construí-la com elegância e desapego. Pelo contrário, ele, a sua vida, o seu destino, o destino da humanidade, estão visceralmente comprometidos no curso que tomarem as questões filosóficas. O próprio filósofo deve ser o primeiro problema filosófico em jogo, porque é através de seu ser de carne e osso que o filósofo tem os pés na realidade.
Assim sendo, o filósofo não deve apenas possuir uma inteligência aguda e desenvolvida, mas é indispensável que tenha uma personalidade rica, pujante, vigorosa, em que toda a realidade possa repercutir amplamente. Para alcançar esta espessura e profundeza de personalidade, parece-me útil que, além dos estudos propriamente filosóficos, sobre os quais falarei depois, você cultive seu espírito no contato das grandes obras, em que se exprimem certas características fundamentais da alma humana, e cuja freqüentação produz um alargamento insuperável da visão de todos os problemas. Virgílio, Dante, Shakespeare, os clássicos franceses, estão dentro desta linha. Não que sejam irrepreensíveis, note bem. Mas em todos eles corre o sopro magnífico, que engrandece o homem.
Também não lhe digo que faça um estudo sistemático de tais obras. Muito longe disto. Não se trata de estudar, de cumprir uma tarefa, mas de gostar, saborear. Entre elas você escolherá a que lhe for mais do agrado. Igualmente, poderá variar, detendo-se ora num trecho de uma, ora numa passagem de outra. A liberdade é completa. O importante é que sejam lidas no original.
Não é só a leitura de grandes obras literárias que conduz ao objetivo visado, mas também a contemplação da grande pintura e a audição da música dos grandes mestres, como Bach ou Haendel. Nisto tudo, porém, cada qual deve seguir a própria inclinação, e eu quero mais sugerir do que influir.
São Tomás é mais claro do que não poucos de seus comentadores
Chegando agora aos seus estudos, devo dizer que compreendo perfeitamente a insatisfação e perplexidade que lhe causam certos autores contemporâneos que se apresentam como tomistas. Esses autores nem são verdadeiramente filósofos nem tomistas, e o melhor que você poderá fazer, pelo momento, é colocá-los de lado. Eles só poderão confundir o seu espírito e lançá-lo em caminhos perigosos.
Quanto a Maritain, não passa de um vulgarizador dotado de qualidades literárias e de nenhuma seriedade científica. Aqueles que o seguem são mentalidades superficiais, que se satisfazem e se embalam com suas fórmulas lírico-metafísicas, que não resistem a uma análise mais detida, pois logo manifestam as imprecisões, dubiedades e equívocos, de que estão prenhes. Quando eu tinha a sua idade, confesso que me deixei seduzir, pois elas exaltavam a minha sensibilidade. Deus, porém, me fez a graça de que eu visse, a tempo, o veneno que continham.
Quando a gente trava conhecimento com os verdadeiros filósofos, fica-se envergonhado das divagações ocas, inconseqüentes, bobas e pretensiosas de certos filosofastros pseudotomistas de nossos dias, que outra coisa não fazem senão deformar o tomismo, amoldando-o a todas as últimas modas (que eles nem chegam a compreender), ao mesmo tempo que passam por cima dos mais profundos pensamentos de São Tomás com a mais cândida das incompetências.
Vá diretamente à fonte. Procure familiarizar-se com os textos de São Tomás. Não tenha medo, o Doutor Angélico é mais claro do que não poucos de seus comentadores. Tudo depende de habituarmo-nos ao seu estilo e, o que é mais importante, à sua disciplina. Isto, porém, não será difícil, desde que tenhamos aplicação e humildade.
Para começar, eu lhe recomendaria a Prima, da Suma, e o De Veritate. Da Prima, deixe de lado as questões 2ª, 23ª e 24ª. Quanto ao De Veritate, não vá, por enquanto, além da questão 3ª. Ainda para começar, não se entregue a um estudo sistemático, mas faça como recomendei em relação às obras clássicas. Lembre-se de que ainda não se trata de aprender São Tomás, e sim de familiarizar-se com ele. Por isso, quando algum texto oferecer uma resistência maior à sua inteligência, não insista, mas procure outro mais fácil.
E agora vou fazer-lhe uma observação de maior relevância: a meditação e a reflexão valem mais do que a leitura. Assim, procure, quanto lhe for possível, resolver por você mesmo, em vez de ir procurar as soluções já feitas. Sobretudo, cinja-se exclusivamente aos textos de São Tomás, e não procure ler as notas explicativas que vêm ao pé da página. Quando você estiver assim ambientado ao espírito de São Tomás, então poderemos pensar em outra coisa.
Vida espiritual autêntica: único alimento da inteligência
Chegamos, por fim, à última conclusão, que é a de maior peso. O verdadeiro filósofo só é possível se alimentar o seu pensamento e a sua personalidade numa vida espiritual autêntica. Segundo me parece, a melhor base ainda são os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, com o complemento natural da Imitação de Cristo. De acordo com a orientação que venho dando a estas minhas sugestões, procure, de preferência, só textos originais; e só os textos, nada de comentários. Como a piedade católica é fundamentalmente de inspiração mariana, tenha sempre à mão as excelentes obras de São Luís Maria Grignion de Montfort; todas elas, se isto lhe for possível.
O demônio faz suas pescarias nas águas turvas do nervosismo
Assim, penso ter respondido da melhor forma que esteve ao meu alcance, e depois de ter pedido a Deus luzes para uma tarefa de tal responsabilidade, as dificuldades que você me apresentou em sua carta. Certamente você encontrará, nesta minha resposta, muitas deficiências: é a parte do homem. Deus, porém, suprirá as falhas, recorrendo você a Ele com confiança.
Antes de tudo, tenha calma e fique em paz. Pareceu-me discernir na sua carta uma certa agitação. Procure não se perturbar. O nervosismo é a água turva em que o demônio faz as suas pescarias; e ele é mestre em irritar os nervos e atormentar as consciências, por meio de imaginações, sugestões, instigações, e também agindo diretamente sobre o corpo, onde causa sensações físicas de mal-estar, angústia, repugnância, palpitação, e o que mais seja. Não se deixe impressionar por nada disto. Olhe em frente, para os Corações de Jesus e de Maria, e vá caminhando sobre as ondas encapeladas, com toda a confiança.
E aqui estamos, eu e meus amigos, à sua disposição, para o que você precisar. Não tenha cerimônias. E não se esqueça de mim em suas orações.
Seu em Jesus e Maria,
(*) Para aprofundar o tema, vide por exemplo:
– “Legionário”, N.º 391, 10 de março de 1940, Meditação na festa de São Tomás
– “Catolicismo”, N° 141, Setembro de 1962, O intelectual filosofesco (Ambientes, Costumes, Civilizações).
– Santo do Dia, 22 de julho de 1974, Explicitar: significado e importância para a vida intelectual – Como fazer? Exemplo de explicitação