Plinio Corrêa de Oliveira
Prefácio à obra “Mater Boni Consilii” (*)
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VÁRIOS motivos ponderáveis me levaram a aceitar com alegria o pedido feito pelo dileto autor deste livro para que eu lhe prefaciasse a obra. Antes de tudo por tratar-se de um livro sobre Nossa Senhora, cujas grandezas não tenho cessado de exaltar ao longo de minha existência, e desejo continuar a exaltar até ao último instante de minha vida. Em segundo lugar, o fato de ser escrito por um dos meus mais dedicados cooperadores na grande luta travada pela TFP brasileira – a par de suas 15 co-irmãs autônomas – contra o igualitarismo fundamentalmente ateu (1) e panteísta que vai dominando cada vez mais a sociedade contemporânea. Mas a essas duas razões se junta uma terceira, de caráter estritamente pessoal, que não quero passar sob silêncio aqui. Em 1967, pus-me a ler diariamente um livro sobre Nossa Senhora do Bom Conselho (vide foto abaixo), chegado às minhas mãos não me recordo de que maneira (2). Essa leitura era feita por mim a altas horas da noite, quando me encontrava deitado à espera do sono depois de dias carregados de lutas e de trabalhos. Coisa não freqüente em mim, sentia na leitura dessa obra suave e discreta alegria espiritual, até mesmo quando o autor se estendia na exposição de alguns assuntos só muito indiretamente relacionados com a matéria de seu – aliás, excelente – livro. Mas esse movimento de alma era tão discreto que não lhe dei maior atenção. Apenas, movido pela impressionante sucessão de fatos que constituem a história da invocação e da Imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, pedi a um amigo, com relações na Itália, que me fizesse chegar de lá uma estampa da Mãe do Bom Conselho. Uma brutal enfermidade agrediu-me não muito depois, e exigiu uma intervenção cirúrgica arriscada. Esta comportou a indispensável hospitalização. Enquanto meu organismo se recompunha com promissora celeridade, fatos de outra natureza me traziam ao espírito cruéis preocupações. Foi em tal situação que amigos me trouxeram ao hospital a estampa afinal vinda da Itália. Devo dizer que me achava então com o espírito mais ou menos esquecido da excelente obra de Mons. Dillon. Os amigos que na ocasião me rodeavam, desdobraram então aos meus olhos a estampa que eu havia pedido. Fitei-a com natural e respeitosa atenção e – oh prodígio! – passou-se nela algo de indescritível. De modo nenhum se tratava de um milagre, nada de sensível se havia alterado na Imagem. As figuras de Nossa Senhora de Genazzano e do Menino Deus que trazia ao colo, como todos os contornos e os coloridos das figuras, continuavam absolutamente inalterados. E, isto não obstante, tive a certíssima impressão de que a Imagem de Nossa Senhora me fitava com comovedora bondade. E que, ademais, me fazia entender – eu não saberia dizer como – algo que resolvia luminosamente, e de um modo sereno e irretorquível, os problemas de alma que me atormentavam seguramente mais do que os do corpo. Nada disso comuniquei então aos circunstantes. Quando mais tarde resolvi abrir-me sobre o assunto, dois amigos que figuravam entre os que me rodeavam durante aquele episódio afirmaram nada terem notado em mim, mas sim na Imagem que me fitava com misericordioso amor. Indizível dívida de gratidão passou a me vincular desde então ao afresco de Nossa Senhora exposto em Genazzano. E, no cumprimento de tal dever de gratidão, fui divulgando o fato entre meus bravos e piedosos companheiros de lide. Mais tarde, resolvi – atendendo ao pedido dos padres Agostinianos de Genazzano – publicá-lo na própria revista que eles editam na cidade da Mãe do Bom Conselho (3). O texto se encontra nas páginas 123-123 deste volume. * * * Passo a narrar o essencial da história dessa augusta Imagem: Na Albânia, no século XV, a religião corria grave risco: de um lado, o fervor da população católica estava em declínio; de outro lado, assaltavam-na com crescente furor as hordas dos invasores maometanos, cujo objetivo era destruir até à raiz a Fé católica em território albanês. Para evitar a catástrofe, a Providência suscitara um herói comparável, pelo destemor e pela Fé, aos pares de Carlos Magno e aos batalhadores mais salientes das Cruzadas e da Reconquista luso-hispânica: Scanderbeg. Enquanto ele viveu, a Albânia resistiu. Ele morto, em seguida a feitos heróicos e gloriosos, a resistência albanesa se esboroou. Explicável castigo para uma população atolada na tibieza. Além de Scanderbeg – e quão superior a ele – havia na Albânia outro pilar da Cristandade abalada. Era a Imagem – um afresco – de Nossa Senhora então chamada “dos Bons Ofícios” (invocação análoga à de Nossa Senhora Auxiliadora, hoje generalizada em todo o mundo católico). Essa Imagem, venerada em santuário próximo de Scútari, ocasião de tantas e tão preciosas graças para aquele povo corrompido pela tibieza, cairia nas mãos do invasor maometano? Era o que se perguntavam com ansiedade dois devotos albaneses, Georgio e De Sclavis, dignos representantes do que a Albânia ainda conservava de fiel. A resposta a essa pergunta não tardou. A Imagem se destacou lentamente da parede, ante os olhos atônitos dos dois devotos compatriotas do grande Scanderbeg. Ela se alçou e foi prosseguindo em direção às águas do Mar Adriático. E se foi deslocando sempre em igual direção, ao mesmo tempo em que fazia entender aos dois albaneses que queria ser seguida por eles. Com Fé e estofo moral análogos aos de Scanderbeg, ambos os albaneses não hesitaram. Foram caminhando milagrosamente sobre as águas, até que a Imagem atingisse o território da catolicíssima Itália. Um mundo que desaba, vítima de sua crise religiosa e moral, mais ainda do que do vigor do terrível adversário, dois fiéis que continuam a crer e esperar contra toda a esperança, e um milagre estupendo a coroar a perseverança deles: eis em síntese o esquema do até aqui narrado. Esses fatos, dignos de toda a atenção até em seus pormenores, são descritos mais adiante (4) por João Scognamiglio Clá Dias em estilo fluente, rico de piedade e entusiasmo. Disposições de alma estas que transluzem freqüentemente no texto, inclusive pela saborosa repetição de vários conceitos. Em condições concretas muito diversas, o mesmo esquema se desenvolverá em traços muito largos, mas análogos, até nossos dias. A ligar um esquema a outro, figura uma misteriosa e cruel provação, da qual são partícipes os dois valentes albaneses, mais uma idosa italiana, a Beata Petruccia, cujo valor de alma tinha proporção com os dois heróis, escolhidos por Nossa Senhora do Bom Conselho para Lhe constituírem imortal escolta de honra na travessia do Mar Adriático. Com efeito, enquanto ambos os albaneses continuavam a seguir a Imagem pelo território italiano, esta… desapareceu. E foi encher de celestes consolações a alma de Petruccia, então no auge de seu revés e de sua provação. É o momento de dizer uma palavra sobre esta grande figura de mulher forte do Evangelho, que Nossa Senhora elegera para Lhe erguer o santuário mil vezes abençoado em que a Imagem dEla está exposta à veneração de incontáveis fiéis, desde há cinco séculos. Era ela uma viúva dotada de alguns bens. Muito piedosa, fora favorecida com uma visão na qual a Santíssima Virgem a incumbia de restaurar a igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho, em Genazzano, então ameaçada de ruir (5). Para tal fim, Petruccia recorrera à caridade dos fiéis. Mas o atendimento destes deixara a desejar. E as esmolas obtidas por Petruccia de modo nenhum bastavam para a execução da obra. Animosa, resolvera ela então aplicar na construção o restante de seu patrimônio pessoal. Mas até mesmo este fora insuficiente, pelo que as obras ainda estavam longe de ter chegado ao termo. Tal insucesso atraía sobre a Beata os sarcasmos injustos dessa mesma população que dera tíbio atendimento aos pedidos dela. Mas Petruccia continuava animosa, apesar de seus oitenta anos, confiando com firmeza no auxílio da Santíssima Virgem. Foi pois imensa e maravilhosa a surpresa dela, e a de toda a população de Genazzano, quando, na tarde do sábado 25 de abril de 1467, viram pousar sobre o lugarejo uma nuvem de aspecto admirável, da qual partiam os sons de uma música não menos bela. Aos poucos, destacou-se da nuvem o quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, o qual foi pousar sobre o altar que, na previsão da futura conclusão das obras, Petruccia fizera erguer. Estava confirmada a visão da Beata Petruccia. Tornava-se manifesto que a Santíssima Virgem desejava a conclusão das obras. E a população, que acorrera, enlevada para prestar culto à Imagem, haveria de contribuir generosamente, de então em diante, para a construção da igreja. Esta não tardou em ser concluída. E, enquanto nela os fiéis veneram o quadro da Virgem e do Menino, maravilhosamente transportado de Scútari pelos anjos, nela também dormem o sono da paz os restos mortais da Beata Petruccia, à espera da ressurreição final. Os dois albaneses, que haviam ficado desconcertados pelo desaparecimento de sua tão querida Imagem, ignoravam o aparecimento desta última em Genazzano. E andavam sem rumo pela Itália, na vã procura de seu tesouro perdido. Quando lhes chegou aos ouvidos a notícia do ocorrido no lugarejo em que residia Petruccia, para lá se dirigiram. É fácil calcular quanto se maravilharam e se alegraram ao reencontrarem ali o quadro celestial. Estava assim terminada a missão deles, a qual consistia, neste lance final, em atestar a identidade entre o quadro venerado em Scútari e o que empolgava toda Genazzano. Georgio e De Sclavis casaram em Genazzano e deixaram descendência; a de Georgio se conserva até aos dias de hoje. Os pontos de contato são evidentes: a missão dos dois albaneses se conectava com a de Petruccia. Guiados pela Virgem, os três trabalhavam, através de toda a sorte de obstáculos e provações, para um mesmo fim. Este acabou por ser alcançado gloriosamente, sempre sob a direção materna de Maria Santíssima. * * * E eis que, isto posto, essas analogias nos transportam bruscamente a nosso século, corroído pela decadência religiosa e moral, a qual é, por sua vez, ponto de partida para todas as outras formas da decadência contemporânea. Em 1917, a Virgem fala aos pastorinhos de Fátima, incumbindo-os de comunicar à terra sua mensagem de justiça e de misericórdia. Se o mundo não se convertesse e não fosse consagrado a Ela pelo Santo Padre simultaneamente com todos os Bispos nas respectivas dioceses, tremendos castigos haveriam de o assolar. A impiedade e a imoralidade seriam assim devidamente punidas e, em conseqüência, também derrotadas. “Por fim – concluía a Virgem – meu Imaculado Coração triunfará”. É bem de ver que, durante esse tempo de provação, a Providência não deixará de suscitar em sua Igreja almas fortes e generosas, às quais fará conhecer, de um modo ou de outro, os seus desígnios. E que as utilizará também, de um modo ou de outro, para a obtenção de sua vitória. Quando se fala nos acontecimentos previstos em Fátima, as atenções se fixam principalmente nos castigos vindouros, e nos que os sofrerão. E parecem esquecer os privilegiados devotos da Virgem que Ela suscitará. Quais serão estes? Compraz-nos conjeturar que constituirão ponderável minoria, a qual confluirá de todos os quadrantes da Terra, e se recrutarão entre pessoas das mais diversas nacionalidades e condições sociais. Cada qual, segundo as formas e graus escolhidos por Maria Santíssima, será alvo de graças admiráveis, terá de enfrentar obstáculos tremendos, julgará por vezes estar atolado em um insucesso total. Mas, por fim, no dia do grande triunfo, será convocado maravilhosamente para participar da glorificação da Santíssima Mãe de Deus, e viver nos primeiros dias – pelo menos – daquela gloriosa era marial eloqüentemente prevista por São Luís Maria Grignion de Montfort, o grande apóstolo da Virgem Santíssima no século XVIII (6). Pensamos nessas almas de fogo, ao redigirmos o presente prefácio. E nos damos por felizes se assim as encaminharmos a pedir mais alento nas grandes provações pelas quais passem, o que de sobejo poderão alcançar, lendo com atenção este excelente livro de João Clá Dias. Notas: (*) João S. Clá Dias, Edições Brasil de Amanhã, 1992, pags. XVII-XXV): (1) O caráter ateu do igualitarismo é lucidamente demonstrado por São Tomás de Aquino, quando afirma: “Deve dizer-se que a multidão e a distinção das coisas provêm da intenção do agente primeiro, que é Deus. Pois trouxe as coisas ao ser para comunicar a sua bondade às criaturas, e representá-la através delas. E, como esta bondade não podia ser representada suficientemente por uma só criatura, produziu muitas e diversas; e assim, o que falta a uma, para representar a divina bondade, é suprido por outra. Pois a bondade, que em Deus é simples e uniforme, nas criaturas é multíplice e dividida. Por onde, com mais perfeição participa da Divina Bondade e a representa todo o Universo do que uma só criatura, qualquer que seja” (Suma Teológica, 1 q. 47 a. 1). (2) Trata-se do livro de autoria de Mons. Georges F. Dillon, Missionário Apostólico na Austrália, La Vierge Mère du Bon Conseil (Desclée de Brouwer, Bruges, 1885), tradução do original inglês The Virgin Mother of Good Counsel. (3) “Una «Dichiarazione»”, in “Madre del Buon Consiglio”, Genazzano, julho-agosto de 1985, p. 28. (4) Ver Capítulos IV e V. (5) Nesta igreja era cultuado desde o século IV um baixo-relevo coma invocação de Nossa Senhora do Bom Conselho. Começou Petruccia por reconstruir uma das capelas laterais, a de São Brás, e foi junto à parede principal desta capela que veio pousar o afresco venerado em Scútari. (6) São Luís Maria Grignion de Montfort nasceu em 1673 em Montfort-sur-Meu (França), foi ordenado sacerdote em 1700 e subiu ao céu em 1716. Beatificado por Leão XIII em 22 de janeiro de 1888, Pio XII o canonizou em 20 de julho de 1947. |