Legionário, N.º 379, 17 de dezembro de 1939
É um fato ao mesmo tempo curioso e edificante na vida da Igreja que, sendo esta depositária das verdades teológicas as mais altas e complexas, a massa dos fiéis, servida, entretanto, por uma especial acuidade de visão, penetra e vive estas verdades ainda mesmo quando seu nível cultural pareceria vedar-lhe o acesso a qualquer atividade intelectual de ordem superior.
Em tudo que se relaciona com a devoção a Nossa Senhora, esta observação se comprova com toda a clareza. Em dois artigos anteriores (De Grignion de Monfort e Grignion de Monfort (II)), expus sucintamente a doutrina espiritual do Bem-aventurado Grignion de Montfort a respeito da verdadeira devoção a Nossa Senhora, e procurei mostrar aos leitores todo o vigor e toda a profundeza dos argumentos em que a Santa Igreja alicerça sua doutrina marial. Como os leitores tiveram ocasião de ver, doutrina marial e a devoção a Nossa Senhora, se tem crescido constantemente, desenvolvendo-se, porém, não à moda de hipérboles afetivas e meramente literárias que se vão ultrapassando umas às outras, mas como uma torre de raciocínios, firme como o granito, à qual cada geração de teólogos acrescenta mais alguns andares solidamente esteados no esforço diligente desenvolvido pela razão a fim de descobrir todo o alcance e extensão das verdades reveladas. Entretanto, é tocante observar como a piedade popular, ignorando muitas vezes os argumentos da Teologia sagrada, e deixando-se guiar em grande parte pela finura de sua sensibilidade, desce até o âmago profundo das verdades teológicas ensinadas pela Igreja e sabe viver tais verdades com uma autenticidade de convicções e de sentimentos que se não poderia explicar sem a ação do Espírito Santo.
Grignion de Montfort mostra que as grandes verdades da maternidade sobrenatural de Nossa Senhora em relação aos homens e de sua mediação universal são corroboradas pela extensão do culto a Nossa Senhora em todas as regiões do globo. Realmente, não há um único povo que não se afirme particularmente amado por Nossa Senhora, e isto com plena razão, porque é próprio do coração materno, por mais numerosos que sejam os filhos, dedicar a cada qual um amor especial, baseado em títulos particulares. Não há um povo que não tenha ao menos um grande Santuário nacional erigido em honra de Maria Santíssima, no qual a Rainha do Céu faça chover sobre os homens, com abundância, as graças espirituais e temporais. Mais ainda, em cada região há uma Igreja ou Capela particularmente venerada pelos fiéis, e em cada Igreja ou Capela há ao menos uma imagem de Nossa Senhora. E esta regra se aplica sem exceção às mais variadas nações do globo, desde a Polônia até a jungle africana, e desde o Brasil até a China. Qual a razão da universalidade absoluta deste culto, universalidade esta que, se bem que rigorosamente conforme ao ensinamento da Igreja, se distingue pela singular espontaneidade das manifestações através das quais se exprime? A Igreja nunca mandou que cada povo erigisse um Santuário particularmente dedicado a Nossa Senhora, com foros de Santuário nacional, nem que em cada Igreja Nossa Senhora tivesse um altar próprio. Jamais uma autoridade eclesiástica se lembrou de obrigar os fiéis a prestar a Nossa Senhora todos e cada um dos atos de piedade com que Ela é venerada. A Igreja se limitou a definir as verdades mariais e, na maioria dos casos, a piedade espontaneamente entusiástica da massa dos fiéis tem seguido seu curso, de tal forma que se pode sustentar que quase todas as festas de Nossa Senhora e quase todas as formas de piedade com que Ela é honrada nasceram na massa dos fiéis espontaneamente ou por meio de revelações particulares, sendo posteriormente sancionadas pela Igreja.
Por que tudo isto? Porque a piedade popular sente viva e profundamente que Nossa Senhora é, na realidade, a Mãe de todos os homens, e especialmente aos que vivem no aprisco da Igreja de Deus. E sente, ainda, que a mediação de Nossa Senhora é a porta segura, direta, certa, para se ter acesso junto ao Trono do Criador.
Basílica antiga de Nossa Senhora Aparecida
Fazendo estas reflexões, lembro-me invencivelmente de Aparecida do Norte, e das impressões profundas que tenho colhido sempre que ali vou rezar aos pés de Nossa Senhora.
Onde, no Brasil inteiro, um lugar para o qual, com tanta e tão invencível constância, se voltam os olhos de todos os brasileiros? Qual a palavra que tem entre nós o dom de abrir mais facilmente os corações? Qual a evocação que mais ardentemente do que a Aparecida nos fala de toda a sensibilidade brasileira retificada em seu curso e nobilitada em seus fins sobrenaturais? Quem, ao ouvir falar em Nossa Senhora Aparecida, pode não se lembrar das súplicas abrasadoras de mães que rezam por seus filhos, doentes, de famílias que choram no desamparo e na miséria o bem-estar perdido e se voltam para o Trono da Rainha da clemência, de lares trincados pela infidelidade, de corações ulcerados pelo abandono e pela incompreensão de almas que vagueiam pelo reino do erro à procura do esplendor meridiano da Verdade, de espíritos transviados pelas veredas do vício, que procuram entre prantos o Caminho, de almas mortas para a vida da graça, e que querem encontrar nas trevas de seu desamparo as fontes de uma nova Vida? Onde se pode sentir de modo mais vivo o calor ardente das súplicas lancinantes, e a alegria magnífica das ações de graças triunfais? Onde, com mais precisão, se pode auscultar o coração brasileiro que chora, que sofre, que implora, que vence pela prece, que se rejubila e que agradece, do que na Aparecida? E sobretudo, onde é mais visível a ação de Deus na constante distribuição das graças, do que na vila feliz, que a Providência constituiu feudo da Rainha do Céu?
Nada, no ambiente de Aparecida, impressiona a imaginação pela grandeza das linhas arquitetônicas ou pela riqueza do acabamento. Mas o ar está tão saturado de eflúvios de prece e de orvalhos de graça, que qualquer pessoa sente perfeitamente que Aparecida foi designada, pela Providência, para ser a capital espiritual do país.
A esta capital, entretanto, muita coisa falta. E quem vai a Aparecida sente perfeitamente que paira sobre o lugar um grande anelo coletivo, uma grande aspiração anônima, por uma obra de construção e de Fé que exprima e traduza na ordem das realidades naturais e sensíveis todas as realidades sobrenaturais e insensíveis de que o ambiente está saturado.
A maternidade de Maria e a onipotência de Sua mediação universal precisam ser promulgadas em mármore e bronze, depois de terem sido proclamadas com lágrimas, com preces e com sorrisos de gratidão, pelo Brasil inteiro.
A futura Basílica deve ser como aqueles documentos de bronze dos tempos antigos, em que se gravavam para a posteridade fatos, leis ou nomes já imortalizados na memória dos povos. A consagração afetiva não basta: ela tem no interior de sua essência uma força que o leva a se exteriorizar em monumentos de arte e de Fé.
Não é difícil, pois, aquilatar o imenso entusiasmo popular que despertará a notícia que damos em primeira mão de que o Ex.mo Rev.mo Sr. Arcebispo Metropolitano, constituindo uma comissão de técnicos para estudar os planos da futura Basílica, deixa transparecer apenas o prelúdio de um plano gigantesco que acalenta em seu coração, plano este segundo o qual Aparecida se transformará no mais imponente centro religioso das duas Américas.
Com uma acentuadíssima amplidão de concepções, S. Ex.a Rev.ma vai lançar um plano monumental, impressionante pela majestade da idéia e pelo grande espírito prático que presidiu a fixação dos detalhes. E, a serviço deste plano, convocando uma verdadeira cruzada de orações e de generosidades através de todo o Brasil, quer o Arcebispo de São Paulo empenhar as cordas mais sensíveis do coração brasileiro.
A simples descrição da obra a ser realizada em dezenas de anos dispensa comentários. Sem se tocar na atual Igreja, que continuará intacta, servindo de Matriz, deve ser construída outra Basílica, uma série de edifícios complementares constituirá como que uma coroa de contrafortes espirituais. Em primeiro lugar, a residência dos Padres incumbidos da Paróquia. Em seguida, um edifício especial para servir de sede às reuniões dos Ex.mos Rev.mos Srs. bispos da Província Eclesiástica. Ao lado deste, um piedoso retiro para os membros do Episcopado que, invalidados pelo peso dos anos e dos méritos, aspirarem a um justo repouso, propício a uma preparação para o descanso eterno na vida futura. Finalmente, uma grande casa de retiros para leigos e um braseiro de orações incessantes constituído por um Carmelo e por um Cenáculo de Sacramentinas, virá completar de modo feliz a imponente mole de edifícios que constituirão o feudo de Nossa Senhora. Cogita ainda S. Ex.a Rev.ma da construção do Calvário monumental, análogo ao de Lourdes. Orações, trabalhos, reuniões, penitências, tudo isto se fará sob as vistas de Nossa Senhora, conseguindo assim mais facilmente as graças benevolentes de Deus.
Não preciso acrescentar uma única palavra para acender entusiasmos e mobilizar dedicações. Vejo, de minha mesa de trabalho, as fisionomias maravilhadas que se hão de iluminar com a leitura desta sensacional revelação.
Mas uma palavra, ao menos, deve ser dita para os espíritos timoratos, que mais facilmente se impressionam com a grandeza do esforço do que com a magnitude da obra.
A própria amplitude do plano lançado deveria dar a entender que o Ex.mo Rev.mo Sr. Arcebispo, atacando a construção dum monumento de tal envergadura, dá uma bela mostra de desprendimento.
Efetivamente, S. Ex.a não pode ter o plano de ultimar rapidamente, com o aceno de uma vara mágica, a execução de trabalho tão grandioso. Aos dignitários da Igreja, que têm diante de si os séculos, não pode atormentar a febre das inaugurações imediatas, que devem assinalar administrações efêmeras. Os maiores monumentos religiosos do mundo inteiro foram obra de gerações e gerações consecutivas. Nenhuma delas plantou para ter o gosto de colher os frutos neste mundo. Os frutos se colhem no Céu, para todos os semeadores da boa semente. O que é essencial é que as obras realizadas na terra não tragam a marca de precariedade e de exiguidade das coisas feitas exclusivamente para os homens, se elas se destinam ao culto de Deus.
Este monumento se fará, volente Deo, tendo como condição de sucesso a persuasão firme e tranquila de que não se trata de uma grande obra a se realizar de modo amesquinhado graças à exiguidade dos recursos e do tempo. Os anos poderão correr, assistindo ao desenvolvimento lento e prudente da obra. Nem por isso, entretanto, ela se fará menor, ou deixará de se fazer.
E se ela exceder os limites da existência desta geração, uma coisa ao menos se poderá dizer: que o Brasil teve a glória de, exceção honrosa em um século frívolo e imediatista, argamassar com o fator tempo um monumento que por isto mesmo o tempo não destruirá.