Plinio Corrêa de Oliveira
Enquanto o mundo inteiro vibra de entusiasmo com o feito do coronel Borman, do major Anders e do capitão Lovell, algumas pessoas já se interrogam sobre quais as recompensas com que os Estados Unidos testemunharão aos três imortais astronautas o apreço e a gratidão do povo norte-americano.
A pergunta tem todo o cabimento, pois se há um caso em que a admiração e o reconhecimento públicos têm ocasião de se externar com magnificência, é este. Antes de tudo, porque se trata de um feito sensacional, e – seja-nos permitida a expressão – televisionável. Caso se tratasse de festejar um novo Homero, um Fra Angélico redivivo, ou um Fleming, as massas de hoje seriam menos vibráteis. Mas tratando-se de astronautas, que forma de mérito é mais palpável para as multidões que o deles? Ademais, com quanta clareza está posto aos olhos de todos o imenso tesouro de aplicação, de paciência, de esforço, de capacidade e de coragem que os três militares foram obrigados a gastar, para que chegasse a termo sua missão! E quão evidente é que o êxito dessa missão abre – pelo menos em certa ordem de realidades – vias inteiramente novas para o futuro dos homens! A todo momento aflora, nos meios de publicidade como nas conversas, a comparação entre o feito de Borman, Anders e Lovell e o de Colombo. É supérfluo dizer mais sobre a grandeza da última viagem astronáutica. E então a pergunta se impõe: qual será a recompensa dos três êmulos do Descobridor?
* * *
É sabido que Colombo, antes de partir para a conquista do novo mundo, fez com os Reis Católicos um tratado em que recebia a promessa de cargos de mando, honrarias e bens imensos, caso tivesse êxito em seu empreendimento. É sabido também que Fernando e Isabel não cumpriram o prometido. Não importa entrar aqui na análise dos motivos justos ou injustos que levaram os soberanos a agir assim. O fato é que a posteridade, julgando talvez os fatos um tanto superficialmente, lançou contra este modo de proceder do régio casal uma censura incondicional e sem matizes: eles violaram o tratado feito e faltaram com a gratidão devida ao Herói. Nesta atitude da posteridade ficam assentes, como pressupostos de comezinha justiça, os seguintes princípios:
a – Como os particulares, também os Reis e os povos devem gratidão a seus benfeitores;
b – Se o benefício traz, para a nação, gloria e vantagens, a recompensa ao benfeitor deve consistir não só em vantagens mas também em honrarias;
c – A magnitude da recompensa deve ser proporcionada à do benefício;
d – Assim como a gratidão de um particular não tem por objeto somente o benfeitor, mas inclui a descendência deste, a recompensa dos Estados aos grandes benfeitores da Nação deve estender-se também aos seus descendentes.
Eram estes princípios geralmente admitidos. Por força deles, os grandes generais e os grandes estadistas receberam, freqüentemente, dotações, títulos e castelos; e expiravam tranqüilos, deixando suas famílias cumuladas de prestígio e de bens. Tais princípios de justiça, o bom senso universal sempre os fez seus, com aplicações diversificadas segundo os tempos e os lugares, e não é em nome dos costumes do século XVI, mas em nome do bom senso perene e universal, que tem sido severamente julgada a conduta dos Reis Católicos para com Colombo.
Sem embargo disto, e embora esse julgamento continue sempre severo, os tempos foram mudando. Por um contradição curiosa, nossa época, cada vez mais exigente no que diz respeito à recompensa do trabalho manual, vai-se tornando insensível aos imperativos de justiça no tocante à recompensa dos grandes feitos, que demonstram alto nível de capacidade ou valor moral. O acesso à riqueza e às honras vai sendo cada vez mais difícil para o grande talento e a grande coragem. Está longe o tempo em que, por exemplo, um membro da Academia Francesa de Letras tinha, no protocolo oficial, honras análogas às de um Duque e Par de França, ou em que as estirpes dos formados em escola superior, como a Universidade de Coimbra, ascendiam paulatinamente à nobreza. Vai parecendo cada vez menos normal o que os nossos avós consideravam, em tese (e digo em tese porque, admitindo embora o princípio, não raras vezes o violavam), indiscutível: ao grande talento, à grande capacidade, à grande coragem não convém como prêmio a mediocridade econômica e social.
É bom, é ótimo velar pelo respeito aos direitos do trabalhador manual. Será isto uma razão para que se negligencie a tutela dos direitos do valor intelectual, ou da coragem, máxime em suas expressões mais salientes? Parece-me que de modo nenhum.
* * *
Estas considerações me vieram ao espírito lendo as primeiras notícias sobre os prêmios que serão dados aos astronautas. Como é natural, terão o clássico “triunfo”, com desfile, concentração de massas populares, chuva de papel picado etc. Anders subirá de um grau, isto é, de major a tenente-coronel. Borman e Lovell já foram promovidos há pouco, por outros feitos. Se interpretei bem o noticiário algum tanto confuso, há dificuldades legais em que sejam promovidos mais uma vez em breve prazo. Todos os três receberão também uma medalha de honra. E ponto final. Nisto se cifram as recompensas… pelo menos segundo até agora se entrevê.
Amanhã virão talvez novos heróis com novos feitos astronáuticos, que eclipsarão a lembrança dos heróis de hoje. A glória, a imensa glória de Borman, Anders e Lovell, ficará num “arrière plan”, passará a ser uma glória com gosto de champanha aberta na véspera. E, assim, é o caso de perguntar se não seria eqüitativo dar-lhes recompensas muito maiores, que jamais permitissem o embaçamento de sua glória.
Estou vendo daqui, da calma de meu escritório, um leitor que salta exclamando: “Este embaçamento nunca se dará quanto ao espíritos profundos, capazes de pensar”. É verdade caro leitor, respondo eu: isto nunca será assim para um simples punhado de homens. Vejo outro leitor a me dizer: “Mas os três astronautas fizeram isto sem ambicionar recompensas”. Respondo: ao benfeitor desinteressado não se deve gratidão? O desinteresse não é então título para uma dobrada retribuição?
* * *
Como se vê, a questão de justiça, levantada pelo grande feito astronáutico, ainda quando considerada no que chamaríamos o plano trabalhista, é grave e interessante.
Ela suscita outra questão não menos grave nem menos interessante. Se consideramos justo que os homens que prestam ao país serviços relevantes por seu talento e sua coragem, ao morrer, deixem na penumbra e na mediocridade sua descendência – então só há um meio para que alguém proveja largamente ao futuro dos seus: é cuidar de seus negócios particulares. Ora, de cabeça fria, ninguém pode concordar com isto. Razão a mais em prol da munificência a que os astronautas fazem jus.