Santo Anselmo (21/4): um dos campeões que sustentou a Idade Média

Santo do Dia, 20 de abril de 1966

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

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Estátua de Santo Anselmo no exterior da Catedral de Cantuária

Amanhã, dia 21, temos a festa de Santo Anselmo de Cantuária (1033 ca. – 1109), Bispo, Confessor e Doutor da Igreja. Intrépido nos combates da Fé, defendeu a Igreja contra o Rei Guilherme, o ruivo..

“Cristo, dizia ele, não quer uma escrava como esposa. Nada Ele ama tanto neste mundo quanto a liberdade de Sua Igreja”.

Ficha sobre a sagração de Santo Anselmo, publicada na “Vida dos Santos”, escrita por Rorhbacher:

Os bispos ingleses decidiram sagrar como Arcebispo de Cantuária a Santo Anselmo, mas este recusou terminantemente, pois sabia da intromissão real neste cargo.

Mostraram-lhe os prelados as conseqüências de sua negativa para a Inglaterra. Replicou o santo que conhecia tais problemas, mas que era velho e mal conseguindo carregar a si próprio, como poderia levar o fardo de toda uma Igreja? Por outro lado, não era de sua índole cuidar de negócios temporais.

“Conduzi-vos somente nos caminhos de Deus, nós nos encarregamos dos negócios temporais”, replicaram os prelados.

Alegou Anselmo suas múltiplas obrigações e a impossibilidade de abandoná-las. Resistindo ainda levaram-no ao soberano (Guilherme II) que se encontrava gravemente enfermo.

O rei aflito disse-lhe: “Anselmo, que fazes? Por que me envias ao Inferno? Lembra-te da amizade que meus pais tinham por ti e não me deixes perecer, porque sei que estou condenado a morrer conservando este Arcebispado”. Todos os assistentes, comovidos, insistiam com Santo Anselmo acusando-o de matar o rei.

O Santo voltou-se para os dois monges que o acompanhavam e disse: “Meus irmãos, por que não me socorreis?”

Um deles respondeu: “Se esta é a vontade de Deus, quem somos nós para resistir-lhe?”

“Ai! – disse Anselmo – Vós vos rendestes mui prontamente”.

Vendo-o assim obstinado, acusaram-no de covardia. Buscaram uma Cruz tomaram-lhe o braço direito e o aproximaram do leito. O rei lhe apresentou a Cruz mas ele fechou a mão. Os bispos empenharam-se em abri-la até fazê-lo gritar. Por fim seguraram-lhe a mão com a Cruz dizendo: “Viva o bispo!” e entoaram o “Te Deum”. Levaram-no à igreja vizinha e sob seus protestos sagraram-lhe”.

Estranho e magnífico ao mesmo tempo!

Para compreender o conjunto dos acontecimentos é preciso tomar em consideração o seguinte: Cantuária é a mais antiga Diocese da Inglaterra e é, portanto, a sede primacial da Inglaterra. E naquele tempo, mais do que hoje, os Arcebispos e os Primazes tinham certa influência sobre os bispos de seu país.

Estava-se num período de comunicações com Roma muito demoradas, muito difíceis e não havia um corpo de núncios apostólicos inteiramente organizado. De maneira que se fazia sentir mais do que hoje em dia a necessidade dos bispos de um determinado país se apoiarem sobre um que fosse a pedra de ângulo de todos, e este era o Arcebispo de Cantuária.

Esse arcebispo tinha muita importância porque estava, por outro lado, num período em que os germes dos quais futuramente a Revolução nasceria, se exprimiam sob a forma de um desejo do poder temporal. Quer dizer, dos chefes de Estado e em concreto, portanto dos reis, de se apoderarem da liberdade da Igreja, de seus atributos, transformando-a num instrumento de dominação material. Eles não queriam, por exemplo, que os bispos lhes censurassem porque havia naquele tempo muitos prelados que censuravam os reis e os poderosos. Estes queriam se assenhorear dos bens com que a Igreja socorria inúmeros pobres e mantinha o esplendor do culto divino.

Por outro lado, os bispos eram muitas vezes senhores feudais, o que constituía um elemento de imparcialidade dentro do jogo da vida de então.

Certos reis, movidos por mau espírito, queriam se assenhorear de outros feudos para, por esta forma, combater os outros senhores dos feudos eclesiásticos. E todos estes fatores somados faziam com que os monarcas tivessem uma preocupação constante de nomear bispos que fossem seus instrumentos para cargos importantes.

É uma infantilidade pensar que isto não continua nos dias de hoje. Eu não saberia dizer até que ponto esta manobra é bem sucedida, mas um fato me chama a atenção: não vejo arcebispos que façam resistência ao Presidente da República, quando este necessita ser repreendido por sua conduta. De maneira que algo há. Mas este é um fato concreto.

Santo Anselmo, homem já idoso, com inúmeros serviços prestados à Igreja, era desejado ardentemente pelo rei e pelos bispos para ser Arcebispo de Cantuária. Desejado pelos bispos porque era um líder natural para defendê-los contra o rei. Era desejado pelo rei, porque este já tinha tido dificuldades com a Igreja, mas estava doente, temia morrer e achava que ia para o Inferno se não evitasse para a Igreja a catástrofe da má nomeação de um Arcebispo para Cantuária. E sabe-se que o medo do Inferno tem levado muita gente para o Céu, que poucas coisas fecham tanto a porta do Inferno quanto o medo dele, para a grande maioria dos homens…

Aí se passa, então, aquela cena muito curiosa: os bispos pedem que Santo Anselmo aceite o cargo de Arcebispo de Cantuária, que ele recusa apresentando um argumento que está à altura de um santo. Não é uma desculpa movida por uma falsa virtude da humildade, por “humildosa”, mas é algo verdadeiro: ele é um homem velho, cansado, que mal se carrega a si próprio, exausto por anteriores serviços à Igreja, é natural que tenha receio de não conseguir desempenhar satisfatoriamente um cargo tão pesado. E que, portanto, procure desvencilhar-se deste encargo.

Tanto mais que ele devia conhecer bem o rei e sua “entourage” (os que vivem ao seu redor, n.d.c.) e poderia ver que se o rei sarasse – sendo que já tinha criado encrenca com a Igreja poderia criar outra, pois “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”… Seus sucessores, que faziam parte daquela “entourage” do palácio igualmente tinham a mesma mentalidade. Santo Anselmo teria que travar uma luta, portanto, contra o poder temporal e naturalmente temia por sua própria fraqueza, considerando que um homem moço estaria mais em condições de conduzir esta luta. Mas tal era a força de sua virtude, tal a confiança que todos tinham no auxílio que a graça lhe prestaria, que todos queriam que ele ficasse Arcebispo.

Então vem a cena que acabamos de ler. Foi por meio dessa violência material, que talvez tivesse tido um caráter afetuoso e talvez tenha sido feita no meio de sorrisos – a crônica é muda a respeito deste particular –, mas o fato é tão estranho que não é de se repelir como absurda a hipótese disto ter sido feito assim. No meio de sorrisos, houve um momento em que ele, pelo extremo desejo dos outros, resolveu ceder. Porém não mais coagido fisicamente, mas moralmente persuadido de que não deveria resistir a um desejo tão geral e tão unânime. Então, Santo Anselmo não aceitaria a sagração se estivesse convencido que outra era a vontade de Deus. Ele – sendo um Santo – teria morrido mártir, mas não teria se deixado sagrar se tal não fosse a vontade de Deus. Tanto quanto consta, este seria o primeiro martírio de um sacerdote que teria preferido ser morto a ser bispo…

Uma vez que ele está no Céu, devemos estar persuadidos de que efetivamente quis aceitar esta missão e, por esta forma, foi Arcebispo de Cantuária.

Às vezes a graça divina se serve de meios muito estranhos, na sua sabedoria e na sua imensa liberdade de movimentos. Meios imorais ou ilegítimos, jamais! Meios surpreendentes e desconcertantes, bem possivelmente.

Quem sabe se a graça quis que a insistência chegasse até esse ponto para mostrar o desapego deste homem e depois lhe conceder mais liberdade de lutar contra o rei.

De qualquer modo, vem-nos à recordação as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho: “o Reino dos Céus padece violência”. É preciso fazer violência para se entrar no reino dos Céus.

Às vezes é preciso fazer até uma santa violência para com Deus: o próprio Nosso Senhor tem aquela parábola admirável de um homem que está já recolhido, deitado na cama e um cacete bate do lado de fora pedindo pão. Ele diz que não tem, que está deitado, não quer atender. Afinal o homem é tão importuno que o dono da casa se levanta, abre a porta, dá os pães e acrescenta: “É por causa da sua importunidade: vá embora”. Nosso Senhor explica: isto é o modelo de quem reza…

Quer dizer, quando não temos méritos, devemos ser muito insistentes. Porque à força de insistência, como que caceteamos a Deus Nosso Senhor e obtemos aquilo que nós queremos.

Aqui também é qualquer coisa de parecido com isso e ficamos ante as vias superiores de Deus, insondáveis, nem sempre inteiramente explicáveis e que formam uma das belezas da História da Igreja.

Se na História da Igreja tudo fosse explicavelzinho, clarinho, limpinho, ambiente de leiteria, a História da Igreja não seria a História da Igreja de Deus. Faltaria a ela uma das notas daquilo que é verdadeiramente divino, ou seja, um santo mistério. E acrescento: quanto mais é claro que algo é divino, tanto mais convém que nele haja mistérios. Porque sua presença é uma marca de superioridade divina que impõe respeito aos homens.

Deixo um instante o tema da reunião, mas me lembro aqui do que São Tomás de Aquino afirma a respeito das palavras obscuras que há na Escritura. São Tomás diz: pode-se fazer a seguinte objeção contra trechos obscuros da Escritura: “Isto foi dito para ser entendido. Se foi dito para ser entendido, Deus sabe se exprimir clara e corretamente. Se não se exprimiu assim, ou não foi dito por Deus ou Deus disse uma coisa incompreensível.”

Então como se sai dessa dificuldade que parece sem saída? São Tomás voa por cima da dificuldade: o que é divino, para a formação da mente humana, precisa ter certos mistérios. E por isto às vezes Deus fala ao homem mostrando-Se misterioso, para exprimir Sua grandeza, para falar de Sua divindade e, portanto, não diz claro para mostrar quanto Ele é insondável. É, portanto, uma atitude cheia de Sabedoria.

Aqui também: são os mistérios da vida da Igreja. Os fatos misteriosos por onde Deus mostra a sua divina grandeza. Depois as coisas se explicam.

Com certeza para alguns contemporâneos de Nosso Senhor, a Paixão há de ter parecido um mistério inexplicável e foi preciso a Ressurreição para que se compreendesse tal mistério.

Nós estamos em presença de um mistério. Estamos em presença do maior mistério dentro de vinte séculos de vida da Santa Igreja. Creiamos na divindade da Igreja e amemos a Santa Igreja Católica mais do que nunca! Eu jamais diria “apesar do mistério”, mas por causa deste mistério.

Só uma Igreja Santa e divina pode ter uma tal fortaleza, uma grandeza tal que nEla caiba mistério tão profundo, mistério tão tenebroso, mistério tão cheio de trevas. É preciso ser uma Igreja divina para não morrer deste mistério, para atravessar a era de mistério e do outro lado se mostrar gloriosa e resplandecente como se tivesse ressuscitado!

Nós, deste pequeno fato misterioso da vida de Santo Anselmo, devemos voar para regiões muito mais altas dos grandes mistérios da Igreja Católica. E então façamos hoje à noite, a Nossa Senhora, um ato de amor pelo mistério enorme diante do qual estamos, pelo mistério tremendo diante do qual vivemos, certos de que os grandes mistérios têm depois suas grandes explicações.

Nunca um homem se defrontou com um mistério tão terrível quanto o de São José, mas depois, que explicação! Depois, que esclarecimento! É a explicação das explicações!…

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Iluminura do século XII das meditações de Santo Anselmo

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