
Da obra “Al dilettissimo popolo”, Ed. San Paolo, 1996, pag. 203-216:
[Introdução do curador dessa coletânea de documentos do Cardeal Schuster]
Já o título representa uma provocação em uma época em que se ostentavam como slogans virtuosos frases do tipo “aqui não se faz política”. Schuster pode muito bem afirmar nas primeiras palavras de sua conferência que o contrário é verdadeiro: uma leitura mais atenta revela que Carlos Borromeu foi uma figura política justamente pelo fato de ser “nobre e exclusivamente Bispo”.
Schuster narra resumidamente os acontecimentos biográficos do seu predecessor: a família de origem, os estudos em Pavia, as funções em Roma junto do tio, o papa Pio IV. Mas a verdadeira ação pastoral de Borromeu começa com a tomada de posse da diocese de Milão. Depois de descrever os seus méritos, são enumerados alguns episódios significativos da sua vida. No primeiro, vemos São Carlos permanecer em Milão para enfrentar a peste, enquanto as autoridades civis se refugiam em locais mais seguros. Em seguida, vemo-lo vender as suas riquezas para prover ao sustento dos pobres, privando-se ele próprio de todas as comodidades. Por último, a sua obstinada oposição às autoridades espanholas que gostariam de estender ao ducado de Milão o poder da Inquisição para fins nada nobres e espirituais.
Esta é provavelmente a chave para interpretar o próprio episcopado de Schuster, eminentemente pastoral e declaradamente apolítico, mas precisamente porque atento aos seus deveres inalienáveis para com a Igreja e o povo de Deus, não redutível a uma simples subordinação e não disposto a calar-se quando fosse necessário, o que viria a acontecer pouco tempo depois.
* * *

Comecemos com uma observação preliminar. Apesar do que disseram os historiadores panegiristas do século XVII, São Carlos não foi propriamente uma figura política, mas exerceu nobre e exclusivamente o cargo de bispo. Fora da esfera espiritual da reforma tridentina, sua influência sobre os governos e governantes era bastante indireta, irradiando-se principalmente de seu exemplo e da vasta autoridade que lhe conferiam o esplendor da sede, a nobreza da família e, finalmente, a santidade de sua vida.
A circunstância particular de ele ter sido arcebispo de Milão sob o governo dos espanhóis poderia, à primeira vista, despertar nossa curiosidade: qual foi a atitude de Borromeu em relação ao governo estrangeiro na Lombardia?
Aquele governo todo de pompa, rendas e pregas, que, no entanto, havia negado o placet ao arcebispo Archinti, seu último predecessor; e quando o placet finalmente chegou, em 1508, Archinti já estava morto há vários anos. Mas também essa pergunta representa um anacronismo. As ideias de 1748 só surgiriam dois séculos mais tarde. Na época de São Carlos, embora todos aqui não suportassem o governo dos espanhóis e zombassem deles pelas costas, a grande massa popular nunca pensou em uma possível revolta, seja por meio de barricadas ou dos “Cinco Dias” [nota: os Cinco Dias de Milão foi o maior evento revolucionário de 1848 e o início da Primeira Guerra de Independência Italiana. Em 18 de março, uma rebelião surgiu na cidade de Milão, e em cinco dias de combates nas ruas levou o marechal Radetzky e seus soldados austríacos a se retirarem da cidade, n.d.t.].
O título desta conferência: “A figura política de São Carlos”, mais do que afirmar, simplesmente propõe uma questão que, na minha modesta opinião, deve ser resolvida negativamente. São Carlos não foi uma verdadeira personalidade política, mas sua grandeza deriva principalmente de sua imensa obra pastoral, graças à qual ele ainda hoje governa a imensa Arquidiocese de Milão.
Por coincidência, o fundador da potência da Casa Borromeu – refiro-me ao cardeal Gian Angelo Medici, que mais tarde se tornou pontífice romano com o nome de Pio IV – entra pela primeira vez na história de Milão como cúmplice da conspiração tramada por Girolamo Morone para libertar a Lombardia do domínio espanhol.
A conspiração foi descoberta e Morone foi expiar seu crime na prisão, enquanto Medici preferiu seguir o caminho do exílio. Posteriormente, o acordo ou a paz de Madri representou uma espécie de armistício, o que não impediu que, enquanto o primogênito dos Medici, tornado capitão de fortuna, com suas incursões no lago Maggiore, desse muito trabalho aos espanhóis na Lombardia, seu irmão Gian Angelo conduzisse uma atividade diplomática muito ativa contra os espanhóis em Roma. Por então, a Coroa da Espanha saiu vitoriosa como a mais forte; mas quem realmente ganhou na luta foram os Médici que, de simples aventureiros no Lago Maggiore, expandiram tanto seu poder que puderam enfrentar a própria Espanha, que lhes concedeu o reconhecimento desejado e os admitiu a seus serviços.
Quando, na noite de 2 de outubro de 1538, São Carlos nasceu no Castelo de Arona, seus tios ainda estavam presos, prisioneiros de Carlos V, e foi uma sorte que Gian Angelo, que se encontrava em Nice ao lado de Paulo III, que o havia protegido, intercedeu eficazmente junto a Carlos V, que obteve sua libertação.
A infância de São Carlos transcorreu serenamente no castelo natal, como a de qualquer outro descendente de linhagem generosa. Profunda piedade e altivez guerreira distinguiam os Borromeu; não há dúvida de que essas duas virtudes, aspiradas quase com o ar nativo de Arona, contribuíram muito para formar em Carlos o caráter autoritário, acostumado ao comando, e ao mesmo tempo o santo que tem quase instintivo e inato o senso da piedade evangélica.
De acordo com o costume da época, a família Borromeu devia contar entre seus descendentes também alguns abades, aos quais atribuir os poucos bens da Igreja sobre os quais eles reivindicavam direitos antigos. Entre outros, havia então a Abadia Aronese dos Santos Gratiniano e Felino, da qual era abade comendatário um tio paterno de Carlos, Giulio Cesare.
Mas para que, após sua eventual morte, a Santa Sé não pudesse dispor livremente desse benefício em favor de algum estranho, mas permanecesse na família, o velho comendatário renunciou à Abadia em favor do pequeno Carlo, que na época tinha apenas 12 anos. Não era nada mal, naquela idade, trazer para casa uma renda anual de treze mil liras! Um belo ganho para os Borromeu! No entanto, os historiadores dizem que São Carlos, desde tenra idade, prevendo os anos com sabedoria e virtude, avisou seu pai para não considerar aquele dinheiro da Igreja como propriedade da família, mas que o utilizasse para fins religiosos e de piedade.
Em novembro de 1552, aos 14 anos, Carlos matriculou-se na Faculdade de Direito Civil e Canônico em Pavia. O ambiente vigoroso da época amadurecia muito melhor do que hoje o caráter dos jovens; assim, Borromeu, desde então, nos dá a impressão de um estudante modelo, que sente muito a dignidade própria e da sua família e que já é capaz de governar a si mesmo e à sua minúscula corte que o acompanhava.
Muita altivez, mas pouco dinheiro, caracterizaram aqueles anos verdes de Carlos como estudante em Pavia.
“Espero agir de forma a nunca dar motivo a V. Exa. – escreve ao Marquês de Marignano – para me renegar como homem insignificante”.
E outra vez ao pai: “É uma vergonha, para uma pessoa da minha condição, usar um casaco de pelúcia por baixo de um casaco de pele!”
O pai, porém, mantém-no com pouco dinheiro; certamente porque não tem. Carlos, então, ficou em Pavia com quatro camas e três cobertores gastos. “Três cobertores para quatro pessoas, e estamos no meio do inverno!”.
Mas as desgraças vêm como as cerejas, diz o provérbio, em pares. Em 1º de agosto de 1558, Gilberto, pai de São Carlos, morre e é enterrado nas Grazie, em Milão, enquanto o governador espanhol se apressa em tomar posse da Rocca di Arona, como feudo vago, e que recaiu livremente sob o domínio da Coroa.
As negociações dos dois filhos órfãos, Federico e Carlos, para tomar posse da herança paterna foram muito longas e nem sempre felizes. Todas essas circunstâncias não podiam tornar Carlos muito amigo do governo espanhol.
Mas após uma adolescência angustiada por tantas dificuldades financeiras e políticas, um evento feliz finalmente muda as condições dos Borromeu e altera as disposições da Coroa da Espanha a seu respeito.
Na noite de Natal de 1559, após um laborioso Conclave que se prolongou por quatro meses, foi eleito Papa Gian Angelo Medici, que assumiu o nome de Pio IV. Ele, naquele primeiro momento, quis cercar-se de parentes e, entre outros, chamou imediatamente a Roma os dois filhos de Gilberto Borromeu, para descarregar sobre os ombros deles parte dos esforços e das responsabilidades do governo da Igreja.
Sobre o nepotismo dos papas, tudo o que havia de ruim foi dito, com uma única exceção em relação a São Carlos. No entanto, esqueceu-se de observar que, naqueles tempos turbulentos de conspirações, venenos e facadas nas costas, todo novo Pontífice, mesmo que totalmente despreparado, era lançado ao governo dos Estados da Igreja e, mesmo que quisesse encontrar pessoas de confiança a quem confiar os cargos mais importantes, tinha de procurar esses confidentes entre os membros da sua própria família.
Eis então Carlos Borromeu que, no início do ano de 1560, deixa Milão e com um requintado senso de fé vai colocar-se ao serviço do Romano Pontífice.
“Parto para Roma”, escreve ao conde Gianni Dal Verme, em Bobbio, “com o objetivo de beijar os pés de Sua Santidade e colocar-me a seu serviço”.
E bem lhe valeu, pois, a partir de então, foi uma chuva contínua de honras e dinheiro. Ainda não havia passado o primeiro mês e ele já era protonotário apostólico e administrador geral do Estado da Igreja. Em 31 de janeiro, foi nomeado cardeal, em 8 de fevereiro, nomeado administrador perpétuo do Arcebispado de Milão, depois protetor de Portugal, dos cantões católicos suíços, da Baixa Áustria etc., Legado de Bolonha, de Ravena, Governador de Spoleto, Abade de Nonantola, de Mozzo, de Follina, etc. com uma renda anual de pelo menos 48.000 escudos!
A obra que mais honrou Pio IV foi ter conduzido a bom termo o Concílio de Trento, e ter iniciado a partir do Vaticano e de Roma a tão invocada reforma da Igreja na Cabeça e nos membros. Os panegiristas de São Carlos atribuíram facilmente a maior parte desses méritos ao cardeal sobrinho, que, segundo eles, teria sido o gênio benéfico que inspirava infalivelmente o papa tio.
Para outros, que levavam em conta tanto o caráter de Pio IV quanto o do jovem Carlos, não seria difícil negar ao jovem Secretário de Estado uma influência tão preponderante na política pontifícia. Talvez a verdade esteja no meio termo.
Antes do supremo pontificado, Gian Angelo Medici nunca havia se entusiasmado muito com os Borromeus, preferindo os sobrinhos do ramo dos Hohenems.
Tornado papa, porém, logo se irritou com estes últimos, totalmente grosseiros e interessados, preferindo os dois filhos de Gilberto Borromeu. Mas não nos iludamos demais. Eis o que Girolamo Sorranzo, embaixador da República Veneziana, escreveu corretamente ao seu Senado em 1563, dois anos após a promoção de São Carlos:
«O Papa não quer servir-se de outros senão do cardeal Borromeu e do secretário Tolomeo (Gallio), que, sendo jovens com pouca ou nenhuma experiência e obedientes a cada sinal de Sua Santidade, podem ser chamados mais facilmente de simples executores do que de conselheiros».
De fato, a numerosa correspondência de Borromeu com os Legados Pontifícios no Concílio de Trento nos mostra que ele não era nada mais do que o fiel instrumento de Pio IV; por outro lado, o jovem Secretário de Estado não teria então a experiência e a competência necessárias para resolver as numerosas questões que se levantavam diariamente naquelas assembleias universais do Episcopado Católico.
Nem, aliás, Pio IV teria tolerado que outros lhe roubassem, como se costuma dizer, a mão do governo da Igreja. Todos sabiam que ele, apesar de afável, estava tão consciente do seu valor como hábil canonista e consumado no governo eclesiástico, que não tolerava que o contradissessem.
Em vez disso, onde São Carlos realmente exerceu uma influência benéfica e real sobre o tio e a corte de Roma foi na execução dos decretos de reforma promulgados em Trento.
Apesar da boa vontade de Pio IV, ele, assim como não professava abertamente ser teólogo, também não se preocupava muito em esconder sua educação eclesiástica anterior nos tempos alegres de Leão X e Clemente VII.
No entanto, Pio IV, com sua mente e consciência retas, compreendeu os novos tempos e deixou-se influenciar pela virtude do sobrinho, pois, assim que o Concílio de Trento foi concluído, ele imediatamente se preocupou em executar os decretos de reforma. Para esse fim, nomeou comissões cardinalícias para erigir o Seminário Romano, para vigiar o celibato eclesiástico, para obrigar os bispos a residirem efetivamente em suas dioceses. Começou-se a varrer o Vaticano, onde o papa expulsou de uma só vez 400 parasitas, que viviam no ócio às custas do pobre Pedro Pescador!
Em 10 de dezembro de 1565, Pio IV faleceu nos braços de São Carlos, que finalmente ficou livre para se consagrar inteiramente aos sonhos espirituais da Diocese de Milão, da qual até então havia cuidado por meio de excelentes vigários e procuradores.
A obra pastoral de São Carlos está toda circunscrita e compreendida no cumprimento daquele plano de reforma sancionado no Concílio de Trento.
Enquanto os protestantes queriam reformar a Igreja por imposição de príncipes e leigos, de modo que eles mesmos se autodenominavam: Reforma. Deus, pelo contrário, dispôs que a Igreja, por iniciativa intrínseca e verdadeiramente vital, se reformasse a si mesma, santificando o clero e os pontífices, para que estes, por sua vez, santificassem os leigos.
Não descreverei aqui, como algo conhecido por todos, a obra de São Carlos, para dar um plano orgânico à reforma tridentina; seus numerosos Sínodos do Clero milanês; seus seis Concílios Provinciais com os Bispos então dependentes do Metropolita milanês; suas incansáveis visitas pastorais, nas quais chegou a visitar as aldeias mais dispersas no meio das florestas e nas rochas dos Alpes; suas numerosas instituições, especialmente aqui em Milão, para a formação do jovem clero ambrosiano, para a educação dos eclesiásticos das dioceses suíças, para os órfãos, para as mulheres perdidas reduzidas à penitência, para manter nos estudos de Pavia os filhos das famílias mais distintas, mas com poucos recursos financeiros.
Durante a peste dos anos 1576-77, a obra de São Carlos foi tão universal que o povo distinguiu sem dúvida essa epidemia com o título, bastante significativo, de Peste de São Carlos.
As autoridades espanholas de Milão, ao primeiro sinal do contágio, abandonaram o local, refugiando-se em Vigevano. Assim, na cidade, a direção dos socorros e da assistência aos pestilentos recaiu necessariamente sobre o arcebispo. Em pouco tempo, Milão e grande parte da diocese tornaram-se um lazareto e um cemitério. São Carlos, então, depois de organizar os socorros às suas custas, desprezando qualquer perigo, consagrou-se pessoalmente à assistência aos pestilentos, percorrendo todos os dias aquelas cabanas imundas e aquelas montanhas de cadáveres, para administrar a uns a Santa Crisma, a outros o Santo Viático, a outros ainda o conforto de uma bênção.
Conta-se que uma vez ele encontrou em uma cabana de pestilentos uma pobre enferma que gemia de dores de parto. Depois de confortá-la, São Carlos saiu, para que a outra, sozinha, desse à luz o seu filho; quando finalmente a mãe teve o seu filho nos braços, São Carlos entrou e envolveu aquele inocente no seu manto episcopal, apressando-se a encontrar uma ama que o amamentasse às suas custas. Mas a peste tornava escassas até mesmo as amas que pudessem amamentar os numerosos órfãos, cujos pais haviam morrido por causa do contágio; e então o santo arcebispo comprou cabras, para que com o leite elas pudessem alimentar aqueles bebês.
Uma grande multidão de pobres, que ficaram sem meios e sem casa, acorreram de todas as partes a Milão para aumentar a pobreza da capital; o que fez então São Carlos para impedir a exploração da caridade e, ao mesmo tempo, eliminar das ruas de Milão os perigos e os inconvenientes da mendicância? Ele reuniu todos aqueles indigentes errantes e os transportou para um de seus edifícios a cerca de cinquenta milhas da cidade, onde os manteve às suas custas.
Para tantas obras realizadas, não economizando parcimoniosamente, mas com o gesto generoso do patrono que funda instituições beneficentes, constrói sedes, as dota, alimenta e veste diariamente milhares de pobres, teria sido necessário, não digo todo o patrimônio dos Borromeus, mas o próprio Tesouro de Milão de Filipe II.
No entanto, São Carlos, auxiliado apenas por alguns senhores, providenciou para manter todo esse povo durante a peste e a fome, negando a si mesmo um pedaço de pão e uma cama, vendendo os castiçais de prata de sua capela e despojando seu apartamento das cortinas e portas, para obter roupas e cobertores para os pobres.
Compreendendo bem que as desgraças que haviam assolado a Lombardia representavam o castigo do Céu por causa da imoralidade difundida pelo renascimento pagão, o Santo Arcebispo se constituiu vítima voluntária dos pecados de seu povo. Os quadros e gravuras da época ainda o reproduzem como os artistas o contemplaram em procissão pelas ruas da cidade: pálido, magro e descalço, com uma corda no pescoço, enquanto carrega em procissão uma grande cruz com a relíquia do Santo Prego.
No entanto, quem acreditaria nisso? Enquanto a lealdade e correção de Pio IV e do cardeal sobrinho para com o governo espanhol levavam a acreditar que a família Borromeu estava entre os principais defensores da Coroa de Espanha, os diferentes governadores espanhóis de Milão que se sucederam durante o pontificado de São Carlos nunca deixaram de travar contra ele uma guerra acirrada, nem sempre diplomática.
É estranho, mas é assim.
Apesar de tudo o que a Espanha havia feito sofrer aos Borromeu, durante o pontificado de Paulo IV, o cardeal Angelo Medici teve que viver longe de Roma, porque na corte era considerado amigo demais dos odiados espanhóis.
Mesmo após a morte de Pio IV, São Carlos manteve relações muito cordiais com os soberanos da Espanha; cartas de felicitações, Te Deum e funerais solenes para todos os eventos felizes e tristes da Casa Real eram o estilo da época, e o cardeal Borromeu costumava fazer as coisas com especial esforço e grande piedade.
Mas os representantes do governo espanhol em Milão não sabiam perdoar a São Carlos o imenso prestígio que sua santidade lhe havia granjeado entre o povo milanês, de modo que o verdadeiro soberano espiritual era então comumente considerado o santo arcebispo.
Era muito conveniente para o governo espanhol divertir com torneios, máscaras e exageros de etiqueta a vacuidade de um regime que, na Lombardia, não tinha outro objetivo senão extrair dinheiro italiano para as necessidades de Sua Majestade Católica. Quem tivesse algo a dizer contra esse desgoverno, era ameaçado com os habituais açoites e outras penas a critério de Sua Excelência, ou talvez até mesmo a Santa Inquisição estivesse pronta para intervir, confundindo em um único caldeirão a religião e a razão de Estado.
São Carlos, que, apesar da oposição do governador, também havia armado seis ou sete policiais para usá-los em causas relativas ao foro eclesiástico — e parecia aos espanhóis que aquela meia dúzia de homens contratados pelo arcebispo comprometia a segurança do vastíssimo reino sobre o qual o sol nunca se punha — São Carlos, digo, não tolerou o jogo dos espanhóis para manter os lombardos subjugados, e quando até mesmo a corte pontifícia acabou cedendo às pressões de Madri para a instituição da Inquisição Espanhola em Milão, ele revelou “apertis verbis” ao papa a intriga, tal como realmente era. “ E para que Vossa Excelência conheça a raiz e o fundamento… é preciso que tenha como máxima verdadeira que neste povo existe uma suspeita generalizada de que se pretende instaurar neste Estado a Inquisição à maneira da Espanha, não tanto por zelo religioso, mas por interesses do Estado e pela voracidade de algum ministro ou conselheiro, que por esta via pretendia enriquecer com os bens destes cavalheiros e cidadãos” .
As maquinações foram frustradas, mas o cardeal pagou por isso. Quantas e quantas vezes os governadores de Milão, para o prejudicar, organizaram justas e torneios no átrio da Catedral no primeiro Domingo da Quaresma, confiscaram a gráfica fundada pelo Santo, enviaram a Roma recurso após recurso, pintando-o como universalmente odiado pelos cidadãos, e conspirando para que, chamado a Roma, fosse retido lá, com alguma outra função, sem lhe permitir voltar mais à sua cidade episcopal.
São Carlos suportou tudo com heroica paciência, sem deixar, porém, de eludir às vezes as maquinações dos adversários com estratagemas muito saborosos. É famosa, entre outras, a que utilizou em 1580, quando, tendo ido a Roma para se defender, recebeu a homenagem de uma embaixada de milaneses, que tinham, na verdade, uma missão secreta do governador espanhol de conspirar em Roma para que São Carlos não fosse mais enviado a Milão.
Borromeu percebeu a traição e, como não se podia excluir que a Espanha colocasse o papa contra a parede, como se costuma dizer, para se livrar do cardeal Borromeu, este, de acordo com Gregório XIII, fingiu não compreender o jogo; pelo contrário, todo sorrisos e reverências, ele mesmo apresentou ao papa em audiência os mensageiros do governador de Milão. Além disso, acrescentou o arcebispo, para lhes dar mais liberdade para tratar com a Cúria Papal de todos os assuntos que desejassem, ele se retiraria imediatamente de Roma. Que ficassem eles. Depois de se despedir educadamente, deixou Roma e voltou para Milão, aonde chegou quase de surpresa.
O governador de Ayamont teve que fazer boa cara ao mau jogo e foi imediatamente cumprimentar o arcebispo, sem deixar de dar as últimas ordens, para que no dia seguinte, e apesar dele, se celebrasse ruidosamente no átrio da Catedral o torneio e a justa do primeiro domingo da Quaresma. Ele declarou que fazia isso para não deixar caducar o direito dos milaneses!
É interessante ouvir do próprio São Carlos como o governador de Ayamont o tratou na ocasião da primeira visita de cortesia que o santo lhe fez ao chegar a Milão. Apesar do caráter sempre sério de Carlos, a carta está toda permeada por uma fina ironia que diríamos quase manzoniana, mas que, em vez disso, é autenticamente borromeana.
«Achei conveniente ir apresentar os meus cumprimentos ao novo governador… Ele recebeu-me na sua antecâmara, onde ficámos a conversar diante de todas as pessoas presentes. Não sei se essa maneira de agir é orgulho, se o cerimonial espanhol regula assim as coisas para a primeira visita”.
Mas a Espanha, sabendo que em Milão o Santo Arcebispo era inflexível a todas as perseguições e que o povo estava com ele, a Espanha agiu diplomaticamente em Roma para remover Borromeu de Milão.
Escreve São Carlos: “Gregório XIII não é o primeiro Papa a quem se pede algo semelhante; eles já haviam cansado Pio V com várias solicitações. Mas este nunca quis consentir… precisamente porque eles o desejavam”. Assim escreveu São Carlos ao senador Cesare Mezzabarba.
Outra vez, escreveu ao seu agente em Roma, Speciano: “Não tomo minhas decisões após as ordens que vêm da Espanha”.
Tal estado de coisas não mudou muito, após o envio secreto de um mensageiro de São Carlos, Bascape, ao próprio Filipe II. Muitos elogios, boas e vagas promessas, mas no final da carta o rei não hesitou em fazer uma reprimenda formal a Borromeu, para induzi-lo a ser mais prudente e moderado. “Agindo de outra forma”, acrescentava o monarca, “ocorrerão complicações que poderão perturbar os ânimos; para obter o bem dos homens, é importante empregar meios conformes à sua natureza, remédios oportunos, e não tomar medidas contrárias ao fim que se propôs”.
Na noite de 3 de novembro de 1584, São Carlos, exausto pelas penitências e pelos contínuos esforços da vida pastoral, morreu com apenas 46 anos, deixando um grande legado de afeto, enquadrado, porém, por uma moldura negra de ódio e rancor de todas aquelas pessoas que o Santo Cardeal havia incomodado em vida, para que cumprissem seu dever.
Foram necessários quase 20 anos para que o Vigário Geral de Milão, “superando mil dificuldades”, pudesse instaurar a primeira investigação canônica para então proceder à canonização de São Carlos. Os homens ainda estavam discutindo a favor e contra, quando Deus interveio em favor de São Carlos com um grande número de prodígios operados por sua intercessão.
A voz de Deus prevaleceu e São Carlos foi canonizado por Paulo I em 1º de novembro de 1610.
A Coroa da Espanha já havia se reconciliado com ele com esplêndidas doações em seu túmulo.
Termino com uma lembrança triste.
Há dois anos, no dia de São Carlos, assisti à solene missa pontifical na Catedral, juntamente com o Duque das Astúrias, o Rei Alfonso XIII, «quantum mutatus ab illo» [quanto estava mudado, n.d.t.]. Enquanto uma auréola de luz sobrenatural irradiava sobre a cabeça de São Carlos, o herdeiro dos antigos soberanos da Espanha aparecia destronado e reduzido a uma simples condição privada.
Após a Santa Missa, reverenciei o infeliz monarca, como teria feito São Carlos, sempre religiosamente devoto às autoridades e ao governo, mas em meu coração lembrei-me da profecia do Magnificat: Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles (Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes).
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