Auditório São Miguel, Santo do Dia, 11 de maio de 1985 – Sábado
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Meus caros, a vida apresenta muitos aspetos comuns, que não têm beleza aparente ou beleza mais notável de nenhuma espécie. Assim, podemos imaginar que vamos passar diante de um botequim e é uma das horas em que o serviço do botequim caiu um pouco, está até quase vazio. O dono está junto à caixa registradora, verificando as contas, contando o dinheiro e com o olho aceso para ver se não entra ninguém, se ninguém vai roubar etc. Mas ao mesmo tempo contente com os lucros que estão entrando, faz cara comprazida, bate aquela famosa gaveta, depois vai verificar direito se os apontamentos dele estão em ordem etc., e tal.
O silêncio no botequim é apenas interrompido, fora, pelos automóveis que passam; dentro, por uma torneira junto à clássica pia onde se lavam os copos, que está fechando mal e que goteja, pam, pam, pam! E mais nada…
Há coisa mais comum do que uma coisa dessas? Entretanto, se o ato é praticado com elevação de espírito, é incontestável que esse ato é um belo ato, digno de aplauso; digno mais ainda de simpatia e de admiração.
Os srs. imaginem que esse homem tem uma família e que tem, por exemplo, um filho ou uma filha que está gravemente doente e precisa fazer uma operação. Ele quer acelerar o rendimento do botequim para poder pagar para o seu filho ou para a sua filha, para essa operação, um cirurgião de primeira ordem e condições de cura de primeira ordem. Então, é o desvelo paterno que o está fazendo mover-se. Aquilo que seria um ato comum de ganância – estar a mexer naquelas coisas – passa a transformar-se num bonito ato. Bonito por causa do móvel que está ali, bonito por causa do empenho em fazer aquela boa ação para com o filho ou para com a filha.
Muito mais bonito seria se imaginássemos – como são raros os donos de botequim como vou descrever agora – um homem que pega todo o seu ganho e não tendo encargos de família, resolveu dar todo o seu ganho líquido, tirado o seu próprio sustento, para TFP. E ele faz andar o seu botequim, e cobra etc., para com o objetivo definido de fazer com que levantem os donativos e pensando:
— “Assim eu vou conseguir pagar tal campanha. O senhor X., do Eremo de Nossa Senhora da Divina providência, declarou que neste mês é preciso fazer tal coisa assim e não tem dinheiro. Eu prometi: eu arranjo esse dinheiro!”
Ele está contando o dinheiro e fazendo os registros etc., etc., no silêncio interno do botequim, onde se ouve apenas o barulho da gota de água que cai e da torneira que espirra.
Que bonita coisa, quando a gente pensa que esse homem tem dentro da alma dele o amor à Santa Igreja Católica; o amor à Cristandade, à civilização Cristã; o amor à TFP com que ele deseja mesmo fazer render aquela dinheiro.
Ação comum, se é a de um homem que faz isso para ganhar o seu próprio dinheiro, lícita, honesta, comum; ação bela se é um homem que faz isso em favor dos seus, onde se nota, então, um certo desprendimento; ação linda em que o amor de Deus transparece mais claramente, se o homem faz isso pela Igreja Católica e pela Cristandade. Essa ação muda internamente a luz, a beleza daquilo que na sua materialidade é um ato comum. Se passa de automóvel perto do botequim e vê o dono contando dinheiro nem se presta atenção: é uma das mil ações comuns que a gente vê quando sai pela rua.
Assim também são as várias ações, se quiserem dizer, que o homem deve praticar, quando ele quer confessar-se. Todas elas assim enumeradas secamente, sem maior análise do que as ilumina por dentro, essas ações seriam ações comuns.
Um rapaz da idade ou das várias idades dos senhores que estão aqui, desde um tenro enjolrinhas de catorze anos idade mínima, minimíssima, minimíssima, abaixo da qual eu não concebo nenhuma – até um enjolras avançado em anos, que já está tocando assim com as mãos nos trinta anos… Depois dessa idade não deveria haver enjolras, deveria haver homens maduros… o que certamente acontecerá quando chegarem aos quarenta, no ano dois mil e tanto…
Bem, o fato é que um rapaz está sentando e fazendo a lista dos pecados que cometeu durante a semana, ele está fazendo o seu exame de consciência.
Coisa bonita? Poderia dizer-se uma coisa mais bem feia. Ele, de vez em quando pensa um pouco, toma uma notinha; depois toma outra notinha, depois toma uma folha de um gatão em que ele estava registrando as suas ações – e que pelo visto ele encheu, quer dizer, que fez muita coisa que não devia fazer – fosse venial, fosse mortal, ele encheu o papel da lista das coisas que ele fez e que não deveria ter feito. Dobra, [põe] no bolso e sai para se confessar. Bonito? Para um espírito superficial banal, feio; para um espírito que olha mais a fundo, quiçá feio. Ele faz a lista de seus pecados, como seria mais bonito que ele não tivesse que confessar. Pão-pão, queijo- queijo, é isso!
Vai e se confessa O train-train de uma confissão: ajoelha-se no confessionário; o padre abre o postigo; começa a confissão. Ele vai e conta – com o papelzinho ali, para não esquecer nada, conta tudo que tinha que contar. O padre dá uns dois ou três conselhos – nem sempre conselhos sensacionais e muito capazes defender a alma pela dor dos pecados feitos e pela vontade de se emendar – depois vem o: Ego te absolvo e uma penitência, três Ave-Marias junto a uma imagem que está ali perto. Ele levanta, reza as 3 Ave-Marias e sai. Está acabado o negócio. Dir-se-ia uma coisa mais ou menos como quem leva – eu já vi alguém fazer irreverente e injustamente esta acusação – leva a roupa para lavar, e pega a roupa da semana anterior na própria lavandaria, uma coisa comum.
Há beleza no exame de consciência? Há beleza na Confissão? Há beleza na penitência? Qual é beleza interna que se pode notar nisso? E como é que deve ser isto feito, iluminado à luz dessa beleza?
Quer dizer, trata-se então de encontrar o pulchrum da coisa e ver como a coisa deve ser feita.
Há um aspeto desconcertante do pecado. O pecado é horroroso! Para nós termos uma idéia do horror do pecado, muita gente diz: “pecado venial não tem importância” – as pessoas passam as vezes décadas e as vezes séculos no Purgatório [para expiar um pecado venial]. E o fogo do purgatório tem isto de comum com o fogo do Inferno que ele queima verdadeiramente a alma. Os senhores já pensaram uma pessoa ficar dez anos num forno de uma indústria, queimado?
A gente diz: queima a alma… A gente tem a impressão que não faz sofrer tanto assim como queimar o corpo. É uma ilusão, a alma é o principio vital do homem e a queimadura feita na alma queima muito mais do que a queimadura feita no corpo. A queimadura na alma é tremenda! Dez anos, por quê ? Porque no ano 1985, eu continuei no hábito de contar pequenas mentiras que não são senão pecado venial, mas contei às torrentes. Quando terminou o ano, um balaio de pecados feitos. Está bem, eu me confessei de cada vez, mas a penitência não foi bastante para apagar tudo quanto eu devia por isso. E por isso na hora do meu julgamento a Providência me diz: “Purgatório, portanto, porque você mentiu muito no ano e 1985!”
Isto não me ajudará a compreender o mal que existe nesse pecado? Como Deus, que nos ama tanto, nos sujeita a um tormento tão grave, se essa ação não fosse muito má? Mais ainda, se essa ação não deixasse em nós como que escórias, como que vestígios que merecessem esse castigo para se purificar a alma. Evidentemente a questão fica, é assim! E se a sabedoria eterna, insondável, infinita vê isto assim, como andamos cegos nós que não percebemos que isto é assim? Evidentemente. Isto é com o pecado venial. E com o pecado mortal?
O que é que se passa quando há um pecado mortal? Eu gostaria de dar aos senhores uma imagem que é um pouco extravagante, mas que em todo caso exprime, segundo eu imagino, adequadamente um aspeto do pecado mortal, de maneira que possamos ter bem a idéia do papel que fazemos quando pecamos mortalmente.
Os srs. imaginem que um homem consiga esculpir uma estátua e que esta seja de uma beleza admirável. Ele esculpe não uma estátua, mas cinco, dez estátuas. Vamos dizer que seja um grande escultor e ao mesmo tempo muito fecundo. Durante dez anos ele esculpe dez estátuas, representando dez homens, se quiserem, dez jovens de fisionomias diferentes, de portes diferentes, de tipos raciais diferentes, próprios a profissões diferentes. Dez jovens mais ou menos da mesma idade. Ele os esculpe todos em mármore e cada um desses rapazes, a aparência deles é a de quem possui uma certa mentalidade, um certo estado de espírito, um certo grau de inteligência, uma certa finura, uma certa modalidade de sensibilidade. Todo um modo de ser próprio em cada um. E a obra prima dele, como escultor, é de conseguir representar perfeitamente isso em cada estátua.
Mas ao mesmo tempo todas as estátuas são muito belas, admiráveis. Vamos dizer que este homem tivesse o dom que ninguém tem, que só Deus tem, – mas só para imaginarmos um caso um pouco parecido com as cavalarias nas nuvens de ontem à noite – vamos imaginar que esse homem tivesse a possibilidade de pedir a Deus que fizesse essas estátuas se transformarem em carne humana por uma ação de Deus e nessa carne Deus infundisse uma alma. Então, as dez esculturas dele começassem a falar e a se mexer-se.
E Deus, sempre misericordioso, determinasse que todas essas pessoas tivessem os gestos, a voz, as atitudes que correspondessem àquele tipo moral de casa estátua, de maneira que cada alma seria a obra prima à maneira da obra prima feita pelo escultor, e assim houvesse a possibilidade desses dez jovens serem santos, retos, elevados, sábios, criteriosos, fortes, firmes, profundos, santa e nobremente generosos e joviais. Santamente joviais. Seriam jovens que daria alegria de ver.
Mas ao mesmo tempo, o escultor que visse isto, ficasse encantadíssimo, porque o que o mármore frio tinha feito, por uma ação de Deus se transformaram em carne e osso. Mais ainda, enriqueceram-se de alma e ele era como que o que tinha feito o desenho segundo o qual Deus tinha feito aqueças obras primas.
Mas Deus avisasse esses jovens, genuflexos e encantados, simplesmente por ouvir no ar a voz de um anjo, emissário de Deus, que lhes falasse o recado do nosso Deus:
-”Meus jovens, filhos que Deus amou e que Deus ama. Ele vos dá estas qualidades, cada um de vós está encantado com os seus nove outros companheiros, porque vê a beleza deles todos e, sobretudo, o valor intelectual e o valor moral, mais alto do que tudo, que admira neles. Eles admiram isto em cada um de vós, ó vós que me ouvis. Mas Deus quer de vós uma compensação: cada vez que vós fordes tentados e que resistis, aumentareis a vossa perfeição. Vosso porte será mais nobre, vosso olhar mais cheio de luz etc., vossas almas cheias de mais santidade, de mais união com Ele. Mas se cairdes em pecado, Ele fará com que o vosso físico vá tomando a feiura própria do pecado. Com o pecado venial, o olhar se embaça, o aspeto se degenera. Se é o pecado da preguiça fica um moleirão; se é um pecado de ambição, fica um homem cheio torcidas; se é o pecado da impureza, fica cheirando mal, e seu hábito é insuportável, a sua pela se reveste de percebas, fica desagradável de se olhar e assim por diante. Agora, ide e vivei! Saí pela rua e enfrentai a grande batalha do século XX. Sede fiéis no mundo dos infiéis, é a vossa vez de dizer sim a Deus!”
O que faria o escultor? Vamos dizer que o escultor pudesse acompanhar a cada um pela rua e visse aquele modificando-se. Às vezes ele veria a sua obra prima medonha, asquerosa; depois ele a veria embelezar de novo; às vezes ele a veria linda, mais bonita ainda do que quando saiu do seu cinzel; mais bela do que no momento em que Deus infundiu nela uma alma imortal; depois, de novo a queda. Assim, a alma ir variando, variando… mas ele sabia que em determinado momento Deus haveria de declarar cessada aquela vida e o homem ficaria por toda a eternidade com a fisionomia que lhe era própria ao que ele tinha feito de si ao longo dessa caminhada.
Os senhores podem imaginar a alegria desse homem, vendo que num determinado momento, no melhor aspeto e na melhor condição em que estivesse um dos seus como que filhos, Deus o chamasse a si e ele subisse para o céu, no esplendor da beleza, da bondade que lhe foi dada originariamente? Os senhores podem imaginar a alegria desse homem? Ele veria subir aquele ente subir ao céu, longe… desaparecer no azul, Deus o tinha recebido por toda a eternidade.
Um outro, quando estivesse mais desfigurado e mais horrendo, caía embaixo das rodas de um automóvel. Ele veria o demônio mais horroroso do que qualquer outro ser, pegar naquele e levar embora. Ele, então, compararia o que ele tinha ideado para aquele ser no momento em que era uma mera escultura, com aquilo que este ser fizera de si mesmo, porque não amara as percepções postas nele. Não sei se está claro?
O escultor pensará: eu dei a ele tais coisas, eu fiz em favor dele tais e tais outras; custou-me conceber uma pessoa assim, eu o imaginei e o esculpi… ó ele, que por esta ou por aquela bagatela, por esta ou aquela porcaria se transformou nisto! Eu vi como Deus lutou por ele, lutou dentro dele pela voz da graça, ele não quis mudar. Ou se ele mudou, foi superficialmente por instantes, e depois jogou-se na voragem do pecado de novo.
Esse homem, eu o vejo asqueroso, deformado, medonho, corcunda, invejoso, cheio de microlices etc. Eu o vejo que caminha para o inferno. “ Retira-te! Não quero ter contigo mais nada. Pudesse eu te cancelar da minha memória! Maldito, vá!”
De repente, este escultor notasse que estão três ou quatro outros jovens de jaqueta ou de paletó, andando por essa rua. E que quando encontram com uma dessas esculturas dele produzem sempre um bom efeito, ainda que seja um olhar, ainda que seja de passagem, a escultura se regenera um pouco. Às vezes, pára e convida – faz um recrutamento: “não quer ir à Saúde neste fim de semana? Já ouviu falar de Acies Ordinata?” E só com um convite e uma primeira anuência, já o indivíduo vai desenfeiando, vai se endireitando. Quando ele diz: “sim, vamos juntos” e vão, já no andar a escultura começa a melhorar.
Que afeto o escultor dever ter a este que recrutou e salvou a sua obra prima!
Bem, o jovem é levado para a Acies Ordinata, levado para a Saúde. Lá começam a conversar. À medida que a ex-escultura está lá, começa a sentir: que pureza no olhar daquele; que retidão na atitude daquele outro; que humildade naquele outro que levou um pito a pouco, e olhe como ele recebeu bem e como está satisfeito. Com os bons exemplos vai se mudando o homem.
Em certo momento, um enjolras diz a ele: “meu caro, você já pediu perdão ao seu escultor?”
Diz o outro: – “Homem, nem tinha pensado nisso”.
— “Mas é o principal. Você esfilparrou os dons que recebeu dele, desperdiçou e jogou ao léu perfeições que recebeu dele. Você acha que tinha o direito de fazer isto sem lesar a ele? Você só pensou na sua vantagem, como você estava horroroso, e ficou admirável agora, você não pensou nos direitos dele? Vá lá pedir perdão!”
O rapaz vai movido por um destes dois sentimentos: ele pensa – eu vou pedir perdão porque me dói ter ultrajado desta maneira o meu escultor. Chega lá e diz:
“Escultor meu, mil vezes perdão. Fiz mal!”
O escultor lhe diz: “Meu filho… meu filho, perdão? Está é uma palavra vazia ou uma palavra que tem sentido? Tu te arrependes?”
— “Ah estou cheio de dor…”
— “Meu filho, isso eu vejo. tu tens pesar de me ter ofendido. É nobre e está bem. Mas do que vale o teu pesar, se não tem o propósito de fazer qualquer sacrifício para não cair nesse pecado? Do que é que adianta me pedir perdão? Então, vale um momento em que você está com um pouco de preguiça, vale o momento em que você está com um pouco de orgulho e já você rifa tudo o que está se passando entre nós? E para poder dormitar numa poltrona ou poder entestar com alguém que tem o direito de dar uma ordem que está dando, ou… ou, para folhear uma revista pornográfica tu rompes de novo comigo e jogas ao léu tudo quanto de mim recebestes e vais de novo onde estavas? Meu filho, é arrependimento? É assim que tu te arrependes, meu filho? Eu posso te chamar “meu filho” a não ser porque espero que ainda te arrependas? Tu tens que ter o firme propósito, o firme propósito de nunca mais pecar!”
O rapaz pensa e diz: – “Eu formo essa resolução!”
O escultor diz: – “Eu te perdoo!” O rapaz se levanta reintegrando no seu esplendor e ainda mais belo, mais magnífico! Digamos que ele estivesse cheirando mal pelo horror do pecado da impureza e cheio de perebas – há um salmo que diz: “Tu me lavarás com o hissope (aquilo com que o padre asperge a água benta) e eu ficarei limpo e me tornarei mais alvo do que a neve”.
Aquela alma está pura, está humilde mais do que no ponto de partida, porque ela tinha o firme propósito e o arrependimento. Ó beleza, ó maravilha! A prova aumenta a beleza da alma. Se a alma é tentada e resiste, ela fica muito mais bela; se ela é tentada e peca e se arrepende, em todo o caso pode ficar mais bela do que era antes da tentação.
Os senhores estão vendo bem que eu estou usando de uma imagem e que este escultor não existe. Mas é preciso a gente se pôr no papel de um homem para compreender o que sofre Deus. Vendo que Deus, desde toda a eternidade, pensou em criar cada um de nós, e pensou em criar a cada um com as maravilhas que Ele pôs em cada um de nós. Não há um homem de quem Deus não tenha feito uma obra prima única. O homem muito coxo, mais estropiado, mais deformado, de convívio mais desagradável, mais deseducado, o que os srs. queiram, ele tem um lado da alma por onde ele terá uma perfeição moral como ninguém terá antes ou depois dele.
Cada homem é uma obra prima de Deus, e Deus deseja que a alma que Ele insufla assim no corpo que está em gestação, essa alma e esse corpo formam um homem; e cada homem é neste sentido muito e muito mais do que uma escultura é para o escultor. Que escultura ama a pedra que ele poliu e modelou? Se o pai ama o filho que gerou; o que é mais, gerar ou esculpir? Gerar é muito mais. O pai ama mais seu filho do que o escultor ama a escultura. Mas mais ainda é criar. Deus ama mais a sua criatura do que o pai ama o filho, do que o escultor ama a escultura.
Os srs. podem imaginar Deus acompanhado – com a visão simultânea que Ele tem do passado, do presente e do futuro, – passo a passo e passo a passo cada um de nós. E não é passo a passo só: o passo externo. Não é que Deus esteja vendo, por exemplo, no momento em que eu por um movimento mecânico, natural, de quem se dirige a um auditório, dirige-se a todos os lados do auditório, é uma coisa natural, não é por um movimento assim, irrefletido, ordenado porque se deve fazer assim, mas irrefletido – esteja fazendo isto com o meu corpo. Deus vê muito mais, Ele vê tudo o que há na minha alma no momento em que eu estou falando. Ele neste momento viu com que sério estou tomando a ideia de que Ele está me vendo nesta hora.
Deus me acompanha passo a passo. E meus filhos, acompanha a cada um de vós. Mas é o passo interno, na disposição da alma, no que se entende, no que se sente, no que se quer e no que se persevera. De bom ou de mau. Ele vê aquilo com a sua presença augusta, tão perfeitamente quanto Ele veria se houvesse uma só criatura. Não esquece nunca, porque para Ele o passado, o presente e o futuro são simultâneos.
Deus tem a aflição que o escultor teria pelo esculpido? Não se pode dizer. Deus é a causa de sua própria felicidade. No Céu, Ele tem a felicidade completa e imperturbável que nenhum pecado do mundo pode perturbar. Ainda quando algo aconteça contrária ao desígnio de Deus, sofrer, Deus não sofre. Não nos é fácil compreender como é isto, mas sofrer Deus não sofre.
Mas nós podemos de algum modo compreender o que se passa em Deus, pelo ato sublimíssimo que Ele teve quando o Divino Espírito Santo gerou um Homem nas estranhas puríssima da Virgem Maria. Esse Homem gerado pelo Espírito Santo, desde o primeiro instante de seu ser, este Homem esteve em união hipostática com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade: era o Homem-Deus. E o Homem-Deus do alto da Cruz viu todos os nossos atos de virtude e se deu por bem pago. Mas viu todos os nossos pecados e sofreu por eles. Os gemidos, os estertores, o Eli, Eli, lama sabatchani. – Meu pai, meu pai, por que me abandonaste?
A amargura sem fim: “Consumatum est”.
Tudo isto Ele sofreu com a intenção de que nós nos salvássemos, mas acompanhando o que haveríamos de fazer. Ele viu a reunião desta noite. Ele viu a cada um de nós com disposição de alma veio nesta noite, com a disposição de alma está acompanhando esta noite, com que disposições de alma encerrará esta noite que já vai indo nos ponteiros do relógio. Tudo isto Ele viu, e com tudo isto Ele sofreu.
Dr. Edwaldo estava-me explicando há dias – nós não temos ideia do que foi o sofrimento de Nosso Senhor na Cruz. Ele estava me explicando uma coisa que eu já tinha lido, mas no mundo das coisas estava meio apagada na minha má memória, estava me explicando o seguinte:
Nosso Senhor, como todos os condenados à cruz, ficava com os braços estendidos e com os pés sobre um pequeno apoio, como os senhores veem nos crucifixos. Mas esta posição assim, durante muito tempo começa a produzir pela posição própria do corpo, uma falta de ar. Os pulmões não se podem encher convenientemente com ar. Por causa disso, para a pessoa poder respirar melhor ou pior, é obrigada a levantar-se um pouco ou a baixar um pouco. Ora, cada vez que ele fazia um desses movimentos, cada ato respiratório – notem, hein! – à medida que o ar diminuía, Ele era obrigado a fazer isso mais intensamente.
Os pregos cravados nos sagrados pés (ou segundo outros, um só prego cravado nos sagrados pés) abria e rasgava todos os músculos e ossinhos. Nas sagradas mãos dilacerava aqui. De maneira que Ele fugia de uma aflição para uma dor e de uma dor para uma aflição.
Não me lembro bem, mas creio que ele me disse que se pode conjeturar medicamente que Nosso Senhor tenha passado assim 6 horas até ao Consumatum est. Tudo isto ele estava dando por tão bem empregado na cruz por nós, por aquilo que eu chamaria, entre mil aspas de cada lado, as esculturas dEle. Ele estava dando por tão bem empregado que Ele tinha o poder de chamar os anjos do céu e dizer: “Libertem-se disto” e descer da cruz triunfante no meio daquela gente. Secar os seus próprios sofrimentos na mesma hora e mandar os anjos dar uma surra naquela canalha toda.
Descer da cruz e ir sereno e tranquilo, aparecer no pátio da casa de Anás ou de Caifás, ou de Herdes ou de Pilatos, pregando com tanta serenidade que eles ficassem apavorados. Que triunfo, que triunfo! Que alívio de sofrimento. Para ele era mais fácil isto do que a facilidade com que eu estou movendo este bastonete. Mas Ele não quis. E quis, até o último minuto, transpor os umbrais da morte para me salvar a mim, a cada um dos senhores, a cada um dos homens.
Esta é a realidade. Se nós na hora de fazer o exame de consciência pensássemos nisto, meus caros… Se pensássemos nisso e disséssemos: o que fiz eu? Eu desfigurei a minha alma com os pecados que eu cometi, eu fui mole e não combati as ocasiões de impureza ou de outros pecados como deveria ter combatido. Eu fui mole mais uma vez porque não combati o meu orgulho, não combati tal e tal outro defeito meu como devia ter combatido. Oh moleirão de mim!
Deus deu-me tanta beleza. Se eu me lembro da Oração da Restauração e lembro como eu fui quando eu saí das mãos de Deus; como eu fui no tempo em que era inocente, em que eu não tinha pecado, em que os anjos esvoaçavam encantados em torno de mim, cantando a nova maravilha que Deus tinha criado. Esta maravilha era eu. Quando eu penso nisso, e penso em que estado está a minha alma. Pequei, pequei, pequei! Meus Deus, pequei!
Como o contrição fica uma coisa nobre, como a contrição fica uma coisa razoável e elevada, como a gente tem vontade de se ajoelhar junto a alguém que está entrando em contrição e dizer: “Mas eu não poderei fazer uma coisa por si? Como eu quereria ver que essa lepra saísse de sua alma. Minha mãe, mãe de Deus, rezo a Vós por ele, Vós podeis tudo e fizeste tudo por ele. Vós sois a co-redentora do gênero humano. Meu Deus, meu Deus, ó mãe de Deus, por vosso intermédio, eu recorro a Deus. Salvai a este, arrancai-o de tal vício, arrancai-o de tal pecado! Eu estou disposto a sofrer em mim isto, aquilo e aquilo outro, contanto que ele melhore”.
Que belo é que aquele que vê um companheiro ou irmão de apostolado que está fazendo o seu exame de consciência, discretamente, sem olhar para ele, reza por ele e pede para ele se emendar. Que maravilha há numa coisa dessas.
Às vezes a alma humana é tão miserável que todas estas circunstâncias não lhe bastam. Ela não se arrepende na consideração de tudo o que eu falei. Mas, ela conserva um restinho de amor de Deus. Neste restinho de amor de Deus se insere mais outra coisa: um temor. Ela sabe de tal ou de tal outro que foi para o Inferno. Ou ela está pensando, não há meio de se arrepender, é tão gostoso aquilo que eu volto a fazer. Mas um anjo, sem que ela perceba, lhe sussurra no ouvido palavras de temor. Uma graça vem e a pessoa pensa: que louco eu sou! Eu já me transformei nesta droga que eu sou, mas posso, no Inferno, ser pior do que isso por toda a eternidade, porque eu posso viver mais e cair em pecados mais profundos, transformar-me num precito, ó horror! Expulso da presença de Deus, expulso do amor de Deus. O batismo me fervendo no organismo, porque eu fui batizado, mas em vez de amar a Deus, eu não O amei. Ah, maldição horrorosa!
É para todo o sempre, fogo, fogo. Fogo nesta minha boca que bebeu demais! Fogo nestas minhas narina que inalaram uma droga pestífera que havia de me jogar em todos os vícios. Fogo nestes olhos transformados em brasas horríveis, porque eu olhei para o que não devia olhar. Fogo para estas mãos com que eu roubei. Fogo para estes pés que andaram nas vias do pecado, do roubo, do adultério, do que for, pois só utilizaram a sua possibilidade de locomoção para andar pelas vias por onde se vai ao Inferno. Fogo, fogo, fogo! E a qualquer momento eu posso morrer… Ah, eu não pecarei! Eu não pecarei!”
É muito menos belo do que o caso anterior, muito menos belo. Mas em todo o caso, acaba sendo que tem a sua própria beleza, porque não à maneira de uma cura maravilhosa, mas à maneira de uma fumaça preta que vai saindo de dentro da alma. A pessoa não passa a ser uma maravilha, mas passa a ser normal.
Vai falar como o padre. Ajoelha-se diante do padre e por ódio a cada um seus pecados diz, de si para consigo: “Eu vou contar para ele, porque é uma humilhação e eu quero essa humilhação para pisar no meu pecado! Andou como sempre, infinitamente sábio o meu divino salvador quando pôs isto como condição para me absolver. Então, eu cometi o pecado e não tive vergonha e, agora tenho a vergonha estúpida de contar o que eu não tive vergonha de fazer? Onde estava a minha vergonha? Não senhor, eu vou contar para me humilhar: “padre, andei mal! Fiz tal coisa, com tais agravantes. Aqui está, meu padre, contado o fato inteiro com todas as agravantes. Eu vos peço: perdoai-me !”
É a hora verdadeiramente celeste. O padre levanta a mão, o sinal da salvação e diz: “Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
As pazes estão feitas, a graça inunda aquela alma e dá o que na historieta do escultor, nunca o escultor poderia dar a uma alma: a graça de não pecar de novo.
O homem se inclinara diante do padre como um verme miserável. Os senhores imaginem uma larva que se arrasta pela terra e que, de repente, vira borboleta e começa a voar. Que bonito! Como é mais bonito, mas a perder de vista, um homem que se ajoelha pecador e que voa depois.
Aí está contido o exame de consciência, está contida a absolvição, está contida a contrição antes da absolvição, é o arrependimento e a acusação do pecado, porque se ofendeu a Deus; está contida a atrição, forma menos nobre de arrependimento que, de si, não mereceria perdão, mas pela misericórdia de Nosso Senhor é perdoada, pelos méritos infinitos da Paixão é perdoada, a alma se levanta ao menos normal, normalizada, e sai andando.
Está dito também o resto: a penitência.
Já falei a respeito do firme propósito. O que é o firme propósito?
É o propósito de nunca dos nuncas repetir esse pecado. Mas isto não pode ir assim no “nunca dos nuncas”, tem que ser visto mais fundo. E para ver mais fundo é preciso pôr-se assim: a pessoa imaginar as coisas que vai ter que renunciar para não pecar de novo e fazer um programa: eu vou renunciar a isso. Senão não é sério.
Vamos dizer, por exemplo, que passe diante de um quiosque todos os dias. O quiosque põe do lado de fora aquelas revistas. Aquilo é uma ocasião próxima de pecado e o indivíduo, cada vez que passa lá, tem a péssima atitude de olhar para uma coisa má. Ou ele tem força de vontade, dada pela graça, de nunca mais olhar para o quiosque ou ele nunca mais passa pelo quiosque, e toma a deliberação “não passo por lá, faço o caminho de outro lado, é mais longo, mas é bom para humilhar a minha maldade. Mas eu vou estudar o que tenho que fazer para não cair de novo.
“Eu convivo com este ou com aquele e nesta ação eu me tomo de admiração estúpida pelo defeito deste ou daquele. Está bem, eu não vou mais conviver, vou evitá-lo. Se fosse uma doença grave e contagiosa e ele me passasse a doença, não evitava? Câncer, por exemplo, ou morfeia ou tuberculose. Eu não evitava? E o homem me contagia o defeito dele e eu não evito! Aonde está o meu firme propósito?
Um tal é muito engraçado, quando ele conta coisas, todo o mundo ri. Eu então, de idiota, resolvo ser engraçado como ele. Começo a contar graças para me fazer de palhaço. Se eu conviver com ele, vou apostar corrida com ele e vou tentar ser mais palhaço do que ele. Isso não pode ser assim. Então, como é que isto tem que ser? Só tem que ser de um modo: nunca mais fazer palhaçada, mas também nunca mais chegar perto de um palhaço”.
Como é duro, às vezes! Mas como é belo! Como é belo o homem que pesa isto e sente, dentro de si, uma força. Que força? Uma força que ele diz: “não, não farei mais!” E não fará.
Ou, às vezes, não sente força, mas deseja seriamente não cair e sabe que, na hora, Nossa Senhora obterá para ele a graça. Ele diz a Nossa Senhora: “Minha mãe, vede que molambo eu sou, eu não tenho força para isso, mas eu tenho muita vontade que vós me deis força. Estou resolvido a rezar bastante, a rezar tudo quanto eu possa, a fazer alguma coisa pelo menos, minha Mãe, para caminhar em direção a vós. No momento eu estou disposto a não fazer aquilo. Estarei disposto amanhã? Ah minha Mãe!… eu não sei, mas de momento eu quero querer aquilo. Meu querer é sério. Tende pena de mim e obtende-me a absolvição”.
Vai e começa a agir. É uma graça que entra.
Há casos de pecadores que caem várias vezes no pecado, Por fim, acabam por se reerguer. Eu creio que já contei aos senhores, o que eu li transcrito no livro “Les Parfums de Rome”, de Louis Veuillot, um célebre escritor católico francês do século passado que andou por Roma. Ele vendo aquelas igrejas de Roma, etc., resolveu ver, numa igreja que ele admirou muito, atrás da igreja como era a construção para ter ideia do edifício completo. É uma coisa que se compreende. Passando por detrás, ele viu uma pedra uma coisa escrita e teve a curiosidade de ver o que era. Era jornalista e copiou. Publicou no jornal dele: “L´Univers” dele. Isso foi para um livro, que eu li.
É pena – eu detesto procurar coisas em livros, mas admiro muito quem procura – eu li, o livro vai para a biblioteca, eu até marco, mas é para um outro encontrar. Era uma beleza… era o diário de alguém:
Ano tanto, dia tanto: meu Deus, perdão, eu pequei! Confessei-me.
No dia tal: Meu Deus, perdão, pequei de novo e pior. Confessei-me.
Afinal, o diário indica quedas e altas, quedas e altas. Muito aos poucos, ao longo de anos, de anos, a alma vai no melhora e piora. Melhorando um tanto. De repente, tem uma graça grande ou sobe lentamente a imensa montanha, não sei… Em certo momento, põe: “Meu Deus, aleluia, Magnificat, neste ano eu não pequei!”
Os senhores sabem o comentário de Louis Veuillot a respeito disso? Que se esta pedra estivesse salpicada com sangue dos mártires ele não veneraria mais do que venerava aquela pedra onde todo o sangue de alma de uma pessoa estava posta.
Como é verdadeiro!
Este sangue nós podemos verter pela prática assídua da Confissão seguida da Comunhão, preferivelmente recebida dentro da missa.
Mas meus caros, há uma circunstância: eu já fiz duas exposições e ainda vou ter que ter uma conversa. Estou sentindo que estou piorando da garganta. Tentei em vão combater, mas não consegui e vou ter que terminar, incompleta, a minha exposição aqui.
Eu tinha a intenção de tomar alguns pontos que eu não expus inteiros e narrar aqui. Os senhores me dispensarão do fatinho e nós vamos pôr aqui o ponto final da miséria humana: a minha garganta está se escangalhando.
Nota: Para uma mais completa exposição a propósito deste Sacramento, inclusive com exemplos concretos quanto ao exame de consciência no que diz respeito ao Primeiro Mandamento (amar a Deus sobre todas as coisas) e ao Sétimo Mandamento (não roubarás), clique aqui.