Santo do Dia, 25 de julho de 1969
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
O Titanic afundando no oceano. Ilustração de Willy Stöwer, publicada em “Die Gartenlaube”, 1912 – Fonte: WikiCommons
Eu deveria dar hoje um jornal falado, velho de muitos anos, mas que representa uma verdade eterna, isto é, um traço fixo da psicologia dos homens em certas épocas de decadência.
Nós temos analisado o estado de espírito próprio à nossa época, que consiste muitas vezes, dentro das catástrofes, das desgraças, em não querer ver de frente o que vai acontecer mas, pelo contrário, se iludir a respeito da natureza dos acontecimentos. De maneira tal que as coisas vão afundando e as pessoas que estão, por exemplo, numa sociedade que desaba, num país que desaba, num lugar assolado por uma catástrofe, não querem olhar isso. E até o último momento vão se agarrando à idéia de que nada vai acontecer, até o momento final em que elas estouram junto com a coisa. Em geral, as sociedades até decaem por causa desse estado de espírito.
Esse otimismo à prova de fogo, que não se altera diante das mais evidentes manifestações de que as coisas vão mal, indica uma insensibilidade diante dos planos da Providencia, um divórcio entre os homens e Deus, lembrando aquelas palavras de Nosso Senhor aos Apóstolos: “As vossas cogitações não são as minhas cogitações, nem as vossas vias são as minhas vias. Eu cogito em coisas diversas das vossas. E caminho por rumos que não são os vossos, que vós não seguis”. Isso disse Nosso Senhor aos apóstolos antes de eles prevaricarem durante a Paixão e isso mesmo é o que diz a Providencia aos homens que não sabem perceber o curso dos acontecimentos e para onde é que Deus quer conduzir as coisas.
Por causa disso, por exemplo, nas vésperas da queda do Império Romano do Ocidente, nós encontramos uma cegueira tremenda: os romanos não percebiam. Na véspera da queda do Império Romano do Oriente era a mesma coisa. Na véspera da Revolução Francesa a mesma coisa. O Papa Leão X, por ocasião do protestantismo, não viu o alcance dos acontecimentos e disse que era uma simples luta de frades (esta foi a impressão generalizada em Roma – cfr. por exemplo “Il papato, sua origine, sue lotte e vicende, sub avvenire: Studio Storico-scientifico”, Baldassarre Labanca, Torino, Bocca, 1905, pag. 31 – n.d.c.). Até no fato semi-lendário e semi-verídico da guerra de Tróia, vemos a mesma atitude. Os gregos introduzem o cavalo com guerreiros em Tróia, Cassandra prediz as desgraças que devem decorrer daí, mas os troianos não acreditam. E de fato, com o cavalo, entraram em seu bojo os guerreiros e, com estes é o fim de Tróia.
Esse é um estado de cegueira que merece ser analisado por nós, para que sejamos sensíveis à voz de Deus, para que compreendamos bem o que significa essas ondas de terrorismo em torno de nós, e essas explosões quando atingem até uma de nossas sedes (referindo-se ao atentado perpetrado na sede da TFP brasileira, à Rua Martim Francisco 665-669, n.d.c.).
Então, eu resolvi trazer aqui, para conhecimento dos senhores, uma narração do naufrágio do navio Titanic:
“Esse navio Titanic era, no tempo em que foi construído, o maior navio do mundo”.
Ele inspirava a maior tranqüilidade no ano de 1912, no fim da Belle Epoque, que era uma época de prazer, de alegria leve, de distensão que preparava a I Guerra Mundial. Era considerado um navio que não podia ser posto a pique. Era um navio inafundável, era o maior navio do mundo.
“Ele pertencia à companhia White Star Line, a companhia “Linha Estrela Branca”, e jamais tinha sido feito um navio daquele tamanho. Exatamente por isso ele chamava Titanic. Era um navio titânico.
“No dia 10 de abril de 1912 ele iniciou a travessia da Inglaterra, no porto Southampton, para Nova York. E ele, além de ser considerado o maior navio do mundo, era considerado também o que oferecia a maior segurança. O engenheiro tinha estudado, para ele, uma configuração e um revestimento da parte de baixo do navio tal, que se considerava que aquilo nunca podia romper.”
De maneira tal que ainda que rompesse, entre a primeira e a segunda casca do navio, havia uma zona com ar de maneira tal que rompendo, havia não sei que choque de vácuo que a água que entrasse era expulsa. De maneira que o navio continuava a navegar, mesmo depois do primeiro rombo. Era uma verdadeira obra-prima de segurança. E então se encheu de pessoas de alta categoria social, de milhardários norte-americanos, de nobres europeus, de artistas; havia uma segunda classe muito grande. Havia uma terceira classe de imigrantes, que iam para os Estados Unidos, como quem vai para o Eldorado fazer fortuna, abandonando a miséria da condição operária em que estavam na Europa. E foi num ambiente de alegria que o navio saiu dirigindo-se para os Estados Unidos.
“Essa situação do navio criou, naturalmente, a bordo, uma atmosfera de festas contínuas, e o navio tinha 2201 passageiros“.
Isso já em 1912. Dois mil passageiros, os senhores podem calcular, é uma pequena aldeia flutuante.
“Além disso tinha uma carga muito grande, calculada mais ou menos em 420 mil dólares-ouro naquele tempo, que representava muito mais do que o dólar de nossos dias. A bordo, na primeira classe, festas continuamente. Um tempo magnífico. O céu muito sereno, o mar muito tranqüilo. Na segunda classe também uma atmosfera muito animada. Na terceira classe diversões populares, danças populares. Estava todo mundo alegre dentro do navio.
“Três dias de navegação, na aurora do domingo, quando o dia, mais uma vez tinha levantado muito belo e muito claro, outra coisa que tornava radiosa a viagem, da chaminé do navio escapava apenas um pouco de fumaça.”
Porque se tinha conseguido um tipo de combustível que não deitava quase fumaça, de maneira que era uma fumacinha branca, ligeira apenas, para não entristecer a viagem com o longo sulco da fumaça preta. Era o estado de alma de todos aqueles elegantes. Era apenas um pouquinho de alegria que se exalava de lá; mais nada; não havia tristeza, nem agressão.
“Estavam sendo realizados a bordo – era domingo – serviços religiosos. E haviam [inaudível] e tocava pífaro perdidamente na terceira classe, fazendo se ouvir pelo navio inteiro.
“As nove horas da manhã, o operador do rádio do navio recebeu um despacho de um navio chamado Caronia, que dizia o seguinte: Mensagem ao comandante do Titanic: “Navios fazendo o mesmo caminho que o vosso, em sentido inverso, assinalaram em tais locais importantes massas de gelo flutuante. Esse gelo parece vir da Terra Nova”.
“Mais adiante, outro navio que passa um telegrama, uma comunicação pelo rádio. Era o navio California chamando o Titanic. Como o operador de rádio de bordo participava do otimismo geral, ele não deu importância ao primeiro aviso e quando ele viu que era o Califórnia que estava chamando, pelos sinais, ele achou que era um navio de segunda classe que não teria nada de importante a comunicar.”
E nem tomou nota do telegrama, nem ouviu. O telegrama bateu, e ele tocou a viagem… Os senhores estão vendo como o otimismo ia grosso. Também não podia ser afundado o navio: era insubmergível um navio tão grande, tão bonito, uma época de tanta alegria. Como é que ia afundar esse navio? Não é possível…
“Às treze horas e quarenta e dois, novo aviso. Era o Valtic, era outro navio que anunciava também que estavam se deslocando massas de gelo, icebergs, na direção do Titanic. Então o telegrafista tomou nota da mensagem e mandou para a sala de comando. O oficial que estava de serviço no momento leu e mandou levar para o comandante. O comandante estava na hora do almoço. Ele almoçou, depois foi para o tombadilho e percebeu no tombadilho, andando de um lado para outro, o senhor [inaudível] diretor da Companhia, e parou diante dele para mostrar a mensagem.”
Os senhores estão vendo o que é o próprio do subordinado indolente: vai empurrando as decisões para cima para continuar na moleza, com a intuição de que ele encontrará um mais mole em cima também, e que aquilo vai para cima e se perde na estratosfera…. como a fumaça azulada do navio.
“Lê o telegrama e o coloca no bolso; estava passeando com duas senhoras. Explicou a elas, de um modo muito amável, que era um pequeno incidente de viagem, eram icebergs que iam atravessar a rota, e continuou a passear com elas, não dando atenção nenhuma.”
Os senhores estão vendo uma espécie de quase evidente fatalidade caminhando para o desenlace.
“Mais tarde, às dezenove horas e quinze o comandante pediu de volta o telegrama, a fim de colocar no quadro de avisos dos oficiais. O jantar realizou-se normalmente na grande sala de jantar, estilo século XVII, estilo glorioso.”
Os senhores podem imaginar…
Os senhores sabem que nos grandes navios daquele tempo, os homens e as senhoras jantavam em vestido de baile todas as noites. E os homens de casaca, os mais moços de smoking. Os senhores podem imaginar o que seria o jantar do Titanic esse dia.
“O jantar foi muito alegre. Fazia frio no tombadilho, mas a noite estava muito bela, sem lua, mas cheia de estrelas. Depois da refeição, vários passageiros de segunda classe se reuniram no salão onde o reverendo Carter dava um concerto religioso.”
Devia ser um concerto protestante.
“Eram perto de 22 horas e os empregados já tinham preparado os biscoitos e cafés para toda a assistência, quando se ouviram na primeira classe os acordes de música da segunda classe. E era uma música religiosa: “Senhor, ouvi nossas orações para aqueles que estão no perigo do mar”. Na ponte de comando, o primeiro tenente [inaudível] um marinheiro consumado muito experimentado, foi acordado às vinte e duas horas pelo segundo capitão Murdock. Tinham discutido com os outros oficiais da vizinhança a respeito de gelos que pelo menos cinco telegramas tinham anunciado. As vigias tinham recebido ordem de trazer, de ver com atenção qualquer particularidade a esse respeito. Previa-se que o navio pudesse encontrar os icebergs a partir das nove horas e meia, portanto, a velocidade foi calculada para essa eventualidade…, o tal capitão, foi se deitar.”
O navio era insubmergível, portanto eles não tinham tratado disso, a possibilidade de desviar a rota, nem nada. Fugir, que é o que se faz nesses casos, nada! Diminuir um pouco a velocidade para diminuir o impacto… e acabou!
“O comandante do navio também foi para o quarto. A calma reinava há muito tempo na parte dos emigrantes. Nas cabines de primeira e de segunda classe as lâmpadas iam se extinguindo. Os icebergs iam chegando.”
Os senhores vêm: é o símbolo de uma civilização, de uma ordem de coisas caminhando à deriva para o perigo.
“No posto de rádio estavam Philips, que tinha substituído o tenente…
“Novamente começaram as faíscas no aparelho telegráfico e era novamente o navio California. O California dizia para o Titanic: “Meu caro, é bom você saber que nós estamos bloqueados de gelo aqui”. Resposta do Philips, do telegrafista do Titanic. Ele disse: “Fecha essa geringonça, meu caro. Eu estou aqui conversando com um cabo e você está atrapalhando todas as minhas emissões”.
Quer dizer, estava conversando com outra pessoa no rádio… “eu estou de prosa com outro no telegrafo em outro lugar”.
“Eram vinte e três horas e quarenta. Nesse momento preciso, como se surgisse do vácuo, uma grande forma branca apareceu e foi direto para a proa do Titanic… que era um dos oficiais, durante um momento não pode acreditar em seus olhos. Estava anunciado longamente, mas ele não podia crer no que via. Mas como? Uma viagem com gente tão fina, um navio tão bonito e acontecer isso? Não tem perigo, é uma coisa que não acontece.
“Mas ele teve que se dar conta da realidade sinistra. Freneticamente ele deu três sinais de alarme, assinalando que havia alguma coisa diante dele. Depois telefonou para o posto de comando e disse: “Um iceberg imediatamente diante de nós”. O capitão, o sub-comandante não teve sequer tempo de dar a resposta regulamentar. Ele urrou: “À esquerda com toda velocidade!”
“O timoneiro manobrou rapidamente o comando do navio e começou a desviar. Mas o iceberg estava de tal maneira próximo que foi impossível evitar o choque. O choque se deu.
“Houve um grande choque, uma pequena inclinação num dos lados do navio. Pedações de gelo caíram sobre a proa, na parte da frente. O Titanic lentamente parou.”
Quer dizer, o golpe foi tão forte que o navio perdeu a sua velocidade.
“O navio estava mortalmente ferido. O comandante ferido. O comandante aí saiu correndo do quarto…”
Só aí é que ele acordou! Quer dizer, nem acordaram o comandante…!
“…perguntando: “Nós fomos abordar no que?” – “Abordar! Bem um iceberg, comandante, respondeu um dos homens”.
“Algumas lâmpadas se acenderam nas cabines de primeira e segunda classe. Começa novamente o arrepio.”
Os senhores vão ver as reações…
“Passageiros com olhos cheios de sono passaram as cabeças por aquelas janelinhas redondas, que davam sobre o tombadilho. “Por que é que nós paramos?”, perguntou um deles ao maître d’hotel. “Eu ignoro, senhor, mas eu não penso que se trate de qualquer coisa de importância” – “Ah, está bem!”
“Na sala de fumantes do navio, jogadores de pôquer ainda estavam jogando a essa hora. Eles sentiram um ligeiro abalo, viram desfilar uma montanha de gelo, alta de vinte metros pela janela da sala em que eles estavam, mas a noite era calma e bela. O Titanic era insubmergível. Eles nem sequer tomaram o trabalho de sair do lugar onde estavam. Continuaram a jogar. Por que? Porque o Titanic é insubmergível…”
De cada estralo sai cada bombada, sai coisas do outro mundo! Mas a sociedade atual é insubmersível… Não se discute!
“Entretanto, alguns da tripulação começaram a compreender a situação e já entreviam que o ferimento do navio era mortal. Nos porões notava-se, por algumas fendas, a água do mar que entrava aos borbotões. Praticamente a proa do navio estava aberta para o mar. Em dois minutos houve dois metros e meio de água na caldeira do navio….
“Gravíssimos. Os sacos com correspondência começaram a boiar no porão. Nas instalações de aquecimento do navio um jorro de água de mar caiu em cima e apagou tudo. Os seis compartimentos da frente estavam completamente inundados.
“Em dez segundos, o iceberg tinha aberto no navio insubmersível, um corte de noventa metros…. [inaudível], diretor da Companhia, chegou, afinal, ao tombadilho do navio, enrolado num grande chambre e perguntou: “Afinal, o que é que está acontecendo?” O comandante… disse: “Aconteceu que nós esbarramos num iceberg” – “O senhor crerá que serão muito graves as avarias?”
Com um robe-de-chambre tão bom, com é que poderia ter graves avarias?…
“O senhor crerá que serão muito graves as avarias?” O comandante: “Eu receio bem”.
“Aos poucos a vida foi se reanimando no navio onde todo mundo dormira. Homens e mulheres e crianças que acordaram, puseram questões. A ordem foi dada de tirar as lonas dos barquinhos de salvamento. A água subiu cada vez mais e até alguns passageiros já subiam dos andares mais profundos com os pés molhados. Mas os passageiros, quase todos, ainda ignoravam que o navio estava afundando.”
Quer dizer, o navio pára, o navio esbarra, alguns estão com os pés molhados, a pergunta é normal: “Não vai afundar isso?” – “É insubmersível”. Se é insubmergível, não afunda! Diante das coisas mais evidentes, não tem perigo! É a mentalidade das épocas de decadência…
Afirma o historiador:
“O navio era grande demais para que simples icebergs, flutuando sem eira nem beira, pudessem lhe causar uma avaria grave. A noite era calma demais, bela demais para trazer a morte”.
Esse era o estado de espírito dos passageiros, afirma esse historiador.
“Lança o sinal de desespero, que naquele tempo não era SOS, mas CQB. Os operadores lançaram o sinal de salvamento para todos os navios da zona, e o navio Provence e o navio… responderam. Aos poucos foram descendo para baixo para os barquinhos de salvamento, mas não com a rapidez desejada, porque os marinheiros, eles mesmos relaxados, levaram muito tempo para cada um vir tomar conta do barquinho que devia ir. De maneira que o serviço de salvamento se efetuou com atraso. E alguns até nem sabiam para que barquinhos deviam ir.”
Havia sido esquecido de indicar para eles para onde eles deviam ir em caso de naufrágio. Por que esqueceram? Razão muito simples: não haveria naufrágio. Quer dizer, o barquinho estava mais lá como enfeite do que como uma medida concreta.
“Era preciso urrar as ordens para que os marinheiros obedecessem. De outro lado, o navio começou a apitar horrendamente, por efeitos acústicos da água que entrava por vários lados, de maneira tal que ao cabo de algum tempo ninguém mais se entendia.”
Os senhores devem imaginar passageiros apavorados: “Não, o navio não pode afundar, está todo mudo mais ou menos calmo”. Essa obstinação…
“À meia-noite e meia a ordem foi lançada: “As mulheres e as crianças para os barquinhos”. Separar-se do navio que não pode afundar, para tomar um barquinho afundável… E o medo deles era esse. Houve mesmo uma senhora que recusou e disse que do Titanic ela não saía.
“Os empregados acabaram de acordar os passageiros que ainda estavam dormindo e puseram neles os salva-vidas. Alguns sorriam diante dessa precaução. Eles diziam: “Não, isso é um excesso de precaução”. E ainda sorriam…
“O sinal de desespero, o CQD, foi dado com tal potência, os aparelhos do navio eram tão bons, que em Nova York os jornais começaram a tirar edições extraordinárias, sensacionalistas, anunciando que o navio ia afundar, porque o sinal chegou até Nova York.”
É um estado de espírito, que de um certo ponto de vista é otimismo, e de outro ponto de vista é o pânico do medroso, que não ousa olhar de frente a realidade, não quer se engajar na coisa.
“O navio, de repente, começou a inclinar para frente. Na ponte de passeio começam a se notar sinais de pânico. Um músico, por exemplo, que corre de um lado para outro com seu instrumento. Preocupação fixa: salvar o instrumento.
“À meia-noite e quarenta e cinco desce a primeira canoa, o primeiro barco de salvamento toca na água. As mulheres, que estavam numa espécie de escada para tomar aquilo em baixo, resistem. Elas ficam enloucadas de medo diante da idéia de deixar o Titanic e elas exclamam: “O Titanic não pode ir a pique, ora essa, eu não vou entrar nesse barquinho”. Os homens encorajam as mulheres, dizendo para elas que se trata apenas de uma medida de precaução, mas que o navio vai ser salvo. E despedem-se, muitos deles assim, muitos homens às esposas: “Para o café da manhã nós nos encontramos aqui de novo no navio”. E as mulheres vão, enquanto os homens ficam.
“Apesar desse pânico das mulheres que descem, o resto dos passageiros se mostram calmos e todos vão subindo das cabines com toda tranqüilidade, para o tombadilho.
“Os emigrantes se divertem enormemente com o caso e conversam com animação. Para eles é novidade. Mais ainda: a orquestra de bordo se reúne no tombadilho e começa a executar danças.”
Os senhores estão vendo até onde pode ir este estado de espírito…
(Aparte: O CQD significa “chamado geral, desgraça”. Eles nem lançaram o SOS, que é “salve o nosso navio”, tal era a segurança em que estavam: não emitiram o SOS)
Vejam isso. É incrível!
“… aí foi posta fora a canoa número 6: continha apenas 28 pessoas, só 28 embarcaram quando podia receber 65.”
Mas é a obstinação: “Nosso navio não vai afundar!”
“A uma hora da manhã, a água continua a subir. As canoas de salvação descem uma a uma para o mar. Os acentos da orquestra chegam sempre através dos gritos de ordem dados da ponte de comando, para retardar a entrada da água etc. Afinal, chega a vez da canoa número 1, mais confortável e reservada para os milionários de bordo.”
Isso é muito do tempo: uma canoa mais confortável para os milionários.
“Ela tem uma capacidade de quarenta homens, mas contém somente Sir… e Lady… e dez outros passageiros. Os imigrantes, pelo contrário, percebem o perigo e começam então a lutar uns com outros pelas suas próprias canoas.”
Quer dizer, esses menos apegados à vida, porque têm menos dinheiro, e quando percebem o perigo, querem escapar mais depressa. Os ricaços desdenham, por essa forma, a canoa de luxo, a salvação do luxo que estava proporcionado a eles.
“Para por em ordem os emigrantes, um oficial desce entre eles e dá três tiros no ar. Quatro chineses, no meio do susto, por via das dúvidas, entram numa canoa escondidos e ficam lá no fundo. E, de fato, desceram.
“A uma e vinte, começa-se a se notar na classe mais alta também um certo pânico e o pessoal começa a querer também salvar-se.”
Mas olhem, leva tempo, hein!?
“Algumas senhoras começam a se despedir umas das outras abraçando-se e beijando-se no choro. A água continua a subir, a orquestra continua a tocar. A uma e meia o oficial é obrigado a dar tiros no ar para segurar a classe de luxo que vai voando por cima das canoas também. Uma mulher faz questão de levar consigo o cachorro dinamarquês. Como não permitem que ela leve o cachorro, ela prefere não entrar dentro da canoa. O pintor Millet perdeu o pequeno sorrisinho que ele costumava conservar sempre. Seus lábios estão contraídos, ele traz cobertores para as mulheres e começa a fazer para todo mundo gestos de adeus.”
A famosa pintura de Millet, O Angelus
Quem conhece o Angelus de Millet, tão tranqüilo…
“…um judeu famoso, chamado Benjamin [inaudível] pelo contrário, está vestido de um modo impecável de casaca e diz ao Millet: “Eu subi de casaca para morrer como um gentleman”.
“O major…. ajudou as últimas mulheres a entrar nas suas embarcações. Uma judia riquíssima, madame [inaudível] está no ponto de colocar o pé no barco quando ela se volta para o marido e diz o seguinte (o marido estava numa espécie de escaler): “Nós passamos a vida inteira juntos e havemos de morrer juntos”. O marido topa a parada, ela volta para o navio.
“O coronel John Jacob Astor, que é um sujeito muito importante da Inglaterra, e sua jovem esposa, embarca sua jovem esposa e quando ela parte vê-se que ele está batendo um cigarro numa cigarreira de luxo e dizendo para ela: “Querida, não se incomode, daqui a pouco nós estaremos juntos”.
Um dito muito equivoco, não é?…
“A orquestra continua a tocar. As duas horas da manhã o Titanic entra em agonia e começa a se inclinar cada vez mais no sentido longitudinal.”
E aqui eles reproduzem o desenho que um passageiro fez, de dentro de um barquinho, das várias fases do Titanic afundando.
“Mais ou menos 660 pessoas embarcaram. 1500 pessoas estão afundando junto com o navio. Com o rosto lívido, o comandante aparece numa das portas e diz para a tripulação: “Meus caros, vós fizestes vosso dever. Cada um agora trate de fazer o que puder, porque não há mais barcos e todo mundo é livre”.
“O comandante volta para o seu posto de comando, onde está o seu valet de chambre, o qual tranqüilamente pergunta que ordem ele tem para dar. No meio da classe de luxo irrompe uma figura horrorosa: era um carvoeiro, todo sujo de carvão, louco de medo, que procura de todo lado um salva-vidas. Entretanto, na sala de ginástica, o professor de educação física está olhando dois gentleman que sobre bicicletas imóveis fazem exercícios e um outro que joga ….ball, durante o naufrágio.”
Essa coincidência de pânico com a despreocupação completa são duas formas de pânico.
“A orquestra afinal pára de tocar danças e começa hinos religiosos.“
Aí que eles se lembram de Deus…
“Então, ouvem-se cânticos de passageiros que então começam a rezar e acompanhar, e cantam todos juntos: “Perto de ti, meu Deus, perto de ti”. Algumas mulheres se ajoelham. Muitos correm aloucadamente pela ponte. Quando o hino vai chegando ao fim o chefe da orquestra, o violinista…. bate com o arco do violino contra um objeto de madeira e encomenda a música “Outono” aos seus oito músicos, cujos pés já estão dentro dágua e que fazem força para não cair, não rolar no tombadilho já inundado. As pessoas começam a pular no mar gelado. Uma mulher urra: “Salvem-me, salvem-me.” Um homem lhe responde: “Só Deus pode lhe salvar agora, minha boa senhora”.
“A orquestra começa a tocar o hino “Outono” cujos dizeres são: “Deus de piedade e misericórdia, inclina-te sobre as minhas dores”.
“São duas horas e dezessete da manhã; todas as luzes do navio estão extintas e reina a escuridão por toda parte. Às duas horas e dezoito começa-se a perceber homens que pulam de todos os lados no mar gelado.”
Quer dizer, desespero completo.
“O navio vai inclinando cada vez mais; a parte detrás está cada vez mais alta; ainda se ouvem hinos da orquestra tocando até o fim.
“Às duas horas e vinte, o maior navio do mundo desapareceu. Ouvia-se só no mar um longo gemido contínuo, que saía de dentro, que era o ar que o navio levava consigo e que era expulso por essa forma. As embarcações para levar os passageiros começam a correr risco porque eram mal construídas, mal armadas mal equipadas, e mal carregadas.”
Ninguém tinha pensado nas medidas de prudência, no maior navio do mundo. Por que? Porque o navio era insubmergível…
“Em algumas havia por demais pouco marinheiros, de tal maneira que as mulheres tinham que remar para o barquinho poder andar. Houve uma lady, por exemplo, que tomou o leme do barco e guiou, porque os marinheiros não davam conta do recado. Um italiano, que estava com um pulso quebrado, se tinha oculto e se tinha disfarçado de mulher, com chapéu e capote de mulher e envergonhado diante das mulheres (porque estas viam que ele não era mulher e estava em uma embarcação destinada a mulheres).
“Em algumas embarcações onde havia lugar de sobra, os passageiros recusavam aos náufragos a entrada, e davam com o remo em cima dos náufragos para ver se ao menos eles se salvavam. Em alguns lugares, as mulheres ficavam loucas e os homens tinham que desmaiá-las, desacordá-las a bofetadas, para elas não criarem dificuldades.
“Afinal de contas apareceu um outro navio, pegou-os e eles foram para Nova York.”
Aqui a gente vê os náufragos nesse navio. Os senhores sabem qual é o incrível? As poucas caras que a gente vê eram caras sossegadas. Esse novo navio não era afundável, eles não tinham afundado, não ia acontecer nada… Passou para outro. Provavelmente alguns pereceram depois da I Guerra Mundial.
Esse é o estado de otimismo desesperado das épocas de decadência.
Uma pessoa com esse estado de otimismo, se pertencesse à TFP cometeria um erro que nenhum de nós cometeu, depois da bomba que os terroristas colocaram na sede da (Rua) Martim Francisco, que seria dizer: “Foi apenas um meteoro; não aconteceu nada. A sede da Rua Pará (número 25, outrora sede do Conselho Nacional da TFP brasileira, n.d.c.) é inatingível…” Isso seria esse estado de espírito.