Legionário, 19 de março de 1944, N. 606, pag. 4
Em 23 de maio de 1923, Pio XI pronunciou uma alocução consistorial em que, entre vários assuntos, lembrou a situação da Rússia, presa das convulsões revolucionárias. Sendo deplorável a condição das populações russas, o Papa veio em seu socorro, mas o governo pagou esta delicadeza com a maior das ingratidões:
“O chefe da catolicidade enviou à Rússia personagens que, por sua paciência e zelo, se recomendam à admiração e aos elogios de todos; a missão pontifícia cumula de benefícios certas populações deste imenso país, caídas na miséria e prestes a morrer de fome, utilizando-se dos fundos de socorro que as oferendas insistentemente solicitadas por Nós e doadas com uma inexaurível generosidade pelos católicos do mundo inteiro, Nos haviam permitido constituir. Neste mesmo momento, que vemos? Aprisionam-se ilustres Prelados católicos e outros membros do Clero, oprimem-nos com interrogatórios, condenando-os a uma detenção prolongada e severa, e um dentre eles é morto cruelmente”.
E o Papa continua expondo circunstancialmente os vexames sofridos pela comissão pontifícia de socorros. Isto feito, conclui:
“As dores que temos sofrido, e sofremos ainda, pensando na sorte destes filhos heroicos se acham maravilhosamente consoladas, já pela glória que disto provém para a nossa Religião e para o próprio Deus, já pela esperança certíssima que Nos sustenta de ver estas mesmas condenações, estes julgamentos, estas torturas e este sangue tornarem-se uma semente de numerosos e excelentes católicos, da mesma forma que foram, nos primórdios da Igreja, semente de cristãos.
“Esta esperança é ainda mais firme a respeito daqueles que partilham as condenações e os sofrimentos de Nossos irmãos e filhos; separados embora de Nossa comunhão, amamo-los na caridade de Jesus Cristo e em nome da unidade do rebanho tão ardentemente desejada; é porque Nós não queremos de nenhum modo separá-los dos católicos, pedindo igualmente para todos aqueles deveres de humanidade, que todos os povos civilizados desejam.
“Todos estes acontecimentos, quaisquer que sejam, não nos deterão nas obras de misericórdia e de beneficência empreendidas precedentemente e continuadas sem interrupção desde vários meses, em vista de aliviar tantas espantosas misérias. Perseveraremos tanto quanto houver necessidades a socorrer e tivermos recursos para distribuir, lembrando-nos desta palavra do Apóstolo: ´Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal pelo bem´.
“Além disso, demonstraremos assim até que ponto Nos empenhamos a ficar em paz com todos, reserva feita de todos os direitos, que se devem respeitar mesmo nos homens mais fracos, crianças, enfermos, infelizes, principalmente os que sofrem pela justiça e pela verdade; reserva feita antes de tudo, e no próprio interesse da sociedade civil, dos direitos da Igreja Católica que é, por mandato e ordem de Deus, única vingadora e mestre da justiça e da verdade entre os homens, enquanto é a perpétua guardiã da doutrina incorruptível e do Sangue de Deus nosso Redentor.
“A manutenção integral destes direitos será sempre para Nós uma lei sagrada, apesar de todo o desejo que temos de guardar e concluir a paz com todos, apesar da disposição em que estamos de fazer, dentro dos limites legítimos, todas as concessões tendentes a obter em toda a parte um regime mais favorável para a Igreja e, ao mesmo tempo, a reconciliar todos os espíritos na concórdia”.
Aí temos o exemplo do Sumo Pontífice. Nada fazia deter a sua caridade, nem a ingratidão grosseira do governo revolucionário, nem a ingratidão secular do cisma. Se os cristãos russos há muito tempo renegaram seus deveres para com o Papa, o Papa jamais esquecerá seus deveres paternais para com os filhos ingratos.
Entretanto, esta caridade edificante, verdadeiramente cristã, não era, e não foi pretexto para jamais trair a missão sobrenatural da Igreja e seus direitos. Quando toca neste ponto, a palavra do Papa muda de tonalidade: já não é o Pai, é o Juiz que fala, reivindicando, vingando os direitos de Deus. E os direitos de Deus não são violados apenas quando a Igreja é atacada em seus Ministros ou em suas funções, mas quando a ordem natural, o conjunto dos direitos naturais é ofendida. Isto é muito importante, apesar de não ser muito conhecido: a Igreja é a guardiã da ordem natural, porque a ordem natural está contida na lei de Deus, e faz parte da Missão da Igreja reduzir todos os povos à obediência da Lei de Deus. Quando a ordem natural é atacada, a Lei de Deus é violada; a Igreja foi ofendida. Foi ofendida num assunto vital para Ela, em alguma coisa que implica a sua própria razão de ser. Ela é mestra e vingadora da justiça e da verdade entre os homens: “una est apud homines, Dei mandatu ac iussu, iustitiae veritatisque vindex ac magistral”.
Segundo este exemplo devem proceder também, de acordo com a sua medida, os membros da A. C. (Ação Católica), para serem dignos soldados da Igreja, conforme as intenções de Pio XI.