Verdades Esquecidas – Santo Agostinho: Tem culpa pela perdição do mau quem descura repreendê-lo

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De A CIDADE DE DEUS (livro 1, cap. IX):

Em semelhante calamidade pública [a queda de Roma em poder dos bárbaros], que sofreram os cristãos que, no tocante à fé, não reverta em seu progresso? Se, antes de mais nada, pensassem humildemente em seus pecados, de que a cólera divina se vinga, enchendo o mundo de espantosas catástrofes, embora muito longe de serem criminosos, dissolutos ou ímpios, julgar-se-iam de tal modo isentos de culpa, que não tivessem necessidade de expiá-la por meio de alguma pena temporal? Dado não haver fiéis cuja vida, por irrepreensível que seja, às vezes não ceda aos instintos carnais e, sem tombar na enormidade do crime, no abismo da libertinagem, não se abandone a certos pecados, raros ou cometidos com frequência inversamente proporcional à gravidade, onde encontrar quem, diante de tais monstros de avareza, orgulho e luxúria, cuja iniquidade, cuja impiedade execrável constrange Deus a flagelar a terra, conforme antiga ameaça, quem, volto a perguntar, seja perante eles o que deve e com eles conviva como é preciso conviver com semelhantes almas? Quando se trata de esclarecê-los, censurá-los e, mesmo, repreendê-los e corrigi-los, com bastante frequência funesta dissimulação nos detém, ou preguiçosa indiferença, ou respeito humano incapaz de afrontar alguém já de si perturbado, ou temor a ressentimentos que poderiam causar-nos prejuízo e prejudicar-nos no tocante a esses bens temporais cuja posse nossa cupidez cobiça, cuja perda nossa fraqueza receia. Embora as pessoas de bem odeiem a vida do mau, e tal aversão as preserve do abismo que espera os réprobos à saída deste mundo, essa fraqueza indulgente com as mortais iniquidades, por medo a represálias contra as próprias faltas (faltas leves e veniais, diga-se de passagem), essa fraqueza salva da eternidade dos suplícios, é de justiça que seja com o crime castigada pelos flagelos temporais, é de justiça que, no envio providencial das aflições, sinta o amargor da vida que, embriagando-a com doçuras, a dissuadiu de oferecer aos maus a taça de salutar amargura.

Se, todavia, a reprimenda e correção dos pecadores forem transferidas para época mais favorável, no interesse deles mesmos, de medo a que se tornem piores ou impeçam. a iniciação dos fracos nas práticas da piedade e da virtude, oprimindo-os, desviando-os da fé, nesse caso já não se trata de cupidez, e sim de prudência e caridade. O mal reside em que aqueles cuja vida testemunha profundo horror aos exemplos dos maus poupem os pecados dos irmãos, porque lhes receiam a inimizade, porque temem ser lesados em interesses, é verdade que legítimos, mas demasiado caros a homens em viagem neste mundo, guiados pela esperança na pátria celeste. Não é, com efeito, somente dos mais fracos, integrados na vida conjugal, com filhos ou desejosos de tê-los, pais e chefes de família […], não é somente deles que o amor a certos bens temporais ou terrestres, cuja posse ou perda lhes é dolorosa em demasia, tira a coragem de afrontar o ódio dos homens cuja vida criminosa e infame detestam. Os próprios fiéis, elevados a grau superior de vida, livres do vínculo conjugal, sóbrios no comer e no vestir, sacrificam muito frequentemente à reputação, à segurança, quando, para evitarem os ardis ou a violência dos maus, se abstêm de censurá-los e, sem se deixarem intimidar por ameaças, por mais terríveis que sejam, até o extremo de lhes seguirem os sinistros exemplos, não se abalançam, porém, a repreender o que se recusariam a imitar. Talvez salvassem muitos, se cumprissem o dever de reprochar, que deixam ceder ao medo de expor a reputação e a vida; já não se trata, agora, da prudência que ambas mantém em reserva para instrução do próximo, mas da fraqueza que se compraz em palavras lisonjeiras e na falsa luz dos julgamentos humanos, receia a opinião do mundo, os sofrimentos e a morte da carne, fraqueza agrilhoada pela cupidez e não por dever de caridade.

Eis porque (e parece-me razão muito forte), quando apraz a Deus punir a corrupção dos homens com penas mesmo temporais, os bons são castigados de mistura com os maus, castigados como eles, não por viverem como eles, mas por gostarem com eles, embora menos, da vida temporal que deveriam desprezar. Graças a tal desprezo, suas reprimendas possivelmente conseguiriam a vida eterna para os maus. Se não pudessem tê-los como companheiros nos caminhos da salvação, pelo menos saberiam suportá-los e amá-los como inimigos, pois, enquanto vivem, a gente sempre ignora se podem ou não mudar para melhor. Mais culpados ainda aqueles a quem pela boca do Profeta se diz: “Esse homem morrerá em seu pecado, mas de sua vida pedirei contas a quem deve olhar por ele. Com efeito, as atalaias, os pastores dos povos não são constituídos na Igreja senão para tratar os pecados com inflexível rigor; mas, embora estranho ao santo ministério, não é por completo isento de falta o fiel que vê muito a repreender nos que lhe estão ligados por laços sociais e, não obstante, lhes poupa advertência ou censura, por medo a que seu ressentimento o perturbe nos bens de que faz legítimo emprego, mas com ilegítimo aprazimento do coração. Outra causa de serem as pessoas de bem submetidas aos flagelos temporais (Jó serve de exemplo) é querer o Senhor revelar ao espírito humano a força de sua piedade e permitir ao homem demonstrar o amor desinteressado que Lhe tem. [“A Cidade de Deus”, tradução de Oscar Paes Leme, introdução do Pe. Riolando Azzi, S. D. B., Editora das Américas, São Paulo, 1964, pp. 64-67 – apud “Catolicismo”, no. 255, março de 1972, pág. 4].

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