Plinio Corrêa de Oliveira

 

Dois conceitos de felicidade,

duas mentalidades:

o idealista e o egoísta - Jocelin de Courtenay

 

 

 

 

Santo do Dia, 16 de setembro de 1972, Sábado

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Jocelin de Courtenay, ou Josselin II de Courtenay nasceu entre 1070 e 1075, foi para Terra Santa em 1101, onde morreu em 1131. Ele foi príncipe de Galileia e Tiberiades de 1113 a 1119 e conde de Edessa de 1119 a 1131

 

 

Eu tenho aqui uma ficha para fazer um rápido comentário antes de passarmos à matéria mais de antemão prevista para a reunião.

A ficha é sobre Jocelin de Courtenay. É tirada do livro “Les Templiers”, de Georges Bordonove:

Jocelin de Courtenay foi senhor do Condado de Edessa, no limite norte do reinado latino de Jerusalém. Era neto dos Cruzados que conquistaram a Cidade Santa. Ao norte, o Condado de Edessa, que havia sido invadido por um lugar-tenente de Reng, principal guerreiro mulçumano da época, perdendo seu velho senhor Jocelin I de Courtenay.

Isto é uma referência assim, introdutória.

Esmagado pelo desabamento de uma torre que fora minada, Jocelin foi retirado dos escombros todo desfeito. Em seguida os infiéis se precipitaram para cercar Faizum, residência do Patriarca de Edessa. Quase morrendo, Jocelin se fez carregar para socorrer a fortaleza. E tal era o seu prestígio que, mesmo carregado numa liteira, ele amedrontou os turcos a ponto de fugirem diante de sua presença.

Vencedor sem combate, Jocelin rendeu graças a Deus, nestes termos dignos de uma canção de gesta: "Beau Sir Dieu ── Belo Senhor Deus ── Beau Sir Dieu, eu vos glorifico e agradeço como posso, por me terdes honrado tanto no século, principalmente agora, ao encerrar a minha vida. Vós me sois tão misericordioso e magnânimo, que quisestes que de mim semimorto e impotente, reduzido a uma carcaça que nem a si mesmo pode ajudar, os inimigos tivessem um tal pavor que não ousaram esperar no campo de batalha e fugiram todos por causa de minha chegada. Beau Sir Dieu, eu bem sei que tudo isso prova a Vossa bondade e Vossa cortesia.

E tendo dito essas coisas, de todo coração recomendou-se a Deus e em seguida sua alma o deixou.

Perfeito e acabado, não é? Convida quase a não comentar. Eu comento mais para confortar a pessoa que mandou – é um eremita que não deu o nome - do que propriamente para os senhores, porque eu acho que o comentário prejudica um pouco a coisa.

* Espírito guerreiro de Jocelin de Courtenay e sua fidelidade a Deus em meio às adversidades

Vamos analisar a posição desse homem em confronto com a mentalidade moderna e nós compreenderemos tudo quanto de épico e de reluzente existe nesse estado de espírito.

Os senhores estão vendo que é um guerreiro, que é um guerreiro de uma família feudal, que era senhora de uma cidade na Terra Santa, era descendente de Cruzados, era um homem que lutou valentemente pela Santa Sé e, entretanto, as desgraças se acumularam sobre a família dele e sobre ele, uma em cima da outra.

A cidade da qual ele era senhor feudal foi invadida ainda no tempo de seu avô. Ele perdeu, portanto, esse ponto de apoio, essa fortuna, esse fator de prestígio. Guerreiro, ele foi colhido pelo desabamento de uma torre e foi reduzido a uma carcaça. Ele poderia, segundo os padrões modernos, ter uma queixa de Deus. Porque ele poderia achar que o normal é que Deus o premiasse já na Terra.

E achar - aqui está o ponto sensível do problema - achar que o prêmio consistiria em ele viver na cidade originária dele, que era a cidade de Zengue que a sua família possuía e viver ali como senhor feudal, feliz, rico, tranquilo, sem guerras nem aborrecimentos, sem heroísmo nem provações, gozando a vida largamente, fazendo viagens, anexando outras terras por algum casamento lucrativo, fazendo negócios, ficando rico. Enfim, levando uma vida burguesa.

Esse homem, pelo contrário, perde todas as coisas que representavam o regalo de uma vida burguesa ou de uma vida aristocrática com sabor burguês. Ele é reduzido, por um acidente glorioso ao longo de uma luta, ele é reduzido a uma carcaça, como ele diz. Ele poderia ficar queixoso em relação a Deus. Entretanto, o que é que se dá?

* A ação de graças de um guerreiro que sente sua vida realizada

Ele era um grande guerreiro, ele era um grande general. E pela sua fama de general, os adversários várias vezes tinham fugido dele no campo de batalha. Numa última vez, sabem que ele é levado para o campo de batalha, e embora saibam que ele vai numa liteira e que ele não pode se mover, têm medo do ímpeto que ele comunica aos soldados, têm medo do talento guerreiro dele e, por causa disso, fogem.

Esse homem considera a sua vida realizada. Ele se considera realizado bem ao contrário do ideal burguês do homem do século XX. Ele diz: "Meu Deus, eu sou uma carcaça. Eu tenho alegria de ter sido feito carcaça por amor a Vós. Vós me dais mais uma alegria, ó Deus: é de ter dado tanto medo aos meus inimigos que eles fogem todos. Simplesmente sabendo que esta pobre carcaça, que já não pode andar por si, esta pobre carcaça está no campo de batalha, os inimigos fogem! Meu Deus, como Vós fostes bom para mim! A minha vida atingiu seu objetivo. Eu vos servi, e Vos servi como um herói. E a prova disso é que os Vossos inimigos têm medo de mim. Eu Vos agradeço, ó meu Deus, eu Vos agradeço a Vossa bondade".

E depois, essa expressão deliciosa: "Eu Vos agradeço a Vossa cortesia!"

É delicioso esse conceito de Deus cortês para com sua criatura. Elegante, distinto para com Sua criatura. Tendo dito isso, como o “Nunc dimitis” do velho Simeão: “Agora chamai em paz o Vosso servo, porque a minha alma viu o seu Salvador". A alma não viu o Salvador, a alma viu a realização da vida que ele tinha querido ter na terra. Ele morreu, e sua alma foi para o Céu.

* O choque de dois conceitos que se opõem: o de que a felicidade consiste em gozar a vida, e de que a felicidade consiste em ter conhecido o verdadeiro ideal e o ter servido heroicamente

Aqui os senhores têm o choque dos dois ideais de vida. O choque dos dois conceitos que se opõem. Um é o conceito segundo o qual a felicidade nesta terra consiste em gozar a vida, e outro é o conceito segundo o qual, nesta terra mesmo, a felicidade consiste em ter conhecido o verdadeiro ideal e o ter servido heroicamente, com sacrifício, ainda que pesadíssimo. E com tanto mais alegria quanto mais pesado foi o sacrifício.

Os senhores estão vendo duas considerações, dois modos de ver que se apartam diametralmente um do outro. Uma consideração é de tal maneira grande, que ela é até incalculável. Tudo o que nós possamos excogitar, para nos dar um idéia do que é que pode ser a nossa felicidade no Céu, não é de nenhum modo suficiente para compreender o abismo de felicidade em que está imersa a última das almas do Céu. Porque é uma felicidade completa. Tem graus, mas é completa. Para cada um ela é completa. O mesmo se pode dizer do inferno.

De maneira que, ainda do ponto de vista da mera vantagem, vista do ponto de vista do prazer, do deleite, vale a pena servir a Deus, que é o Senhor de todo bem, de toda bondade e que tem meios de nos recompensar magnificamente.

* Ao contrário do "sapo", o idealista sente mais alegria em morrer após a realização de uma grande obra, do que viver em meio às coisas secundárias

Mas, há uma outra idéia que está por detrás disso. É que nesta terra mesmo, há mais alegria em morrer depois de ter realizado uma obra, em morrer depois de ter servido à causa verdadeira, há mais alegria nisso do que em viver como um paxá. Esta é a tese que os paraquedistas franceses exprimiam daquele modo que nós já comentamos várias vezes: "Mais vale a pena ser uma águia um minuto, do que sapo a vida inteira".

Quer dizer, o esplendor do vôo de uma águia, é um vôo enorme e se perde no azul, aquilo é um minuto só, se quiserem. Mais vale a pena ser águia por um minuto, dar um só vôo e morrer, do que ser ingloriamente um sapo no paul, no brejo, coaxando anos e anos e anos e anos, refocilando-se naquilo que é sujo, naquilo que é secundário, naquilo que é sem interesse. Aí os senhores estão vendo um vôo de águia que no lampejo da glória, de uma glória já voltada para o Céu, considera realizada a vida.

Pelo contrário, na concepção burguesa, a glória não representa nada. O gozo representa a razão de ser da vida. Então é preciso afastar a glória para ter exclusivamente o gozo.

* Reflexos da mentalidade "sapa" em toda civilização moderna

Os senhores encontrarão reflexos dessa mudança de mentalidade em toda a civilização moderna. Na política internacional, por exemplo, os senhores lêem os políticos de há cem ainda, eles faziam guerras por causa de questões de glória. E havia relações internacionais em que o conceito de glória da nação entrava em jogo, como fator preponderante nessas relações.

Pelo contrário, se os senhores consideram as relações das nações hoje, elas são relações exclusivamente comerciais. Não entra em jogo questão de glória, de renome, de honra, nada disso. É comércio. E as nações, a bem dizer, vão se transformando em empresas comerciais. A diplomacia é um negócio, as nações vão se transformando em empresas. Por quê? Porque a idéia do gozo material está invadindo tudo.

Os senhores tomam as relações entre as pessoas. Antigamente eram relações em que entrava, por exemplo, o distinguir alguém, o honrar alguém, o elogiar alguém, o realçar alguém tinha um grande papel. Hoje não. As relações são negócios ou cumplicidade no vício; não há outro estilo de relações.

Os senhores não ouvem mais dizer, por exemplo, fulano foi visitar sicrano por uma questão de prestígio. Prestígio é um conceito que está morrendo. Negócio e lucros é o conceito que está se afirmando. É exatamente a abolição de todos os valores morais e a afirmação apenas da utilidade penetrando na vida.

* Privado longamente dos bens da alma, o homem começa a ter sede dos mesmos

É esse novo tom de coisas que entra e que representa a vitória do materialismo. E, ao mesmo tempo, a derrota e a queda do establishment. Por que? Porque o que se dá é o que se dá na Rússia também. Esses bens da alma, quando a gente fica longamente privados deles, os povos começam a sentir fome deles e não se agüentam mais sem eles. Então começa a vir uma nova era histórica que pede a restauração dos bens da alma.

Nós estamos num período de que houve uma saturação criminosa. Nós caminhamos para um ponto onde essa saturação deve morrer, e a apetência das grandes coisas deve voltar com uma fome de leão.

Nota: Para aprofundar no tema das Cruzadas, clicar na imagem abaixo


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