Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

PRIMEIRA PARTE - Natureza jurídica da Ação Católica

   

CAPÍTULO I - Doutrina sobre a A. C. e o mandato da Hierarquia

 

Origem dos atuais organismos da A. C.

A primeira questão que devemos examinar versa sobre a natureza jurídica da A. C.. Anteriormente ao Pontificado de Pio XI, a expressão “ação católica” era usada para designar genericamente o apostolado leigo, e todos os esforços desenvolvidos, neste campo, para a recristianização do indivíduo, da família e da sociedade. Assim, podiam legitimamente usar o título de obras de ação católica todas as organizações que se dedicassem a este mister. Durante o Pontificado de Pio XI, foram instituídas organizações com a finalidade especial de promover e articular sistematicamente o apostolado leigo, e a estas organizações novas deu a Santa Sé o nome de Ação Católica. Assim, grande número de tratadistas passou a fazer uma distinção entre as novas organizações chamadas “Ação Católica”, as únicas a ter o direito de usar este nobre título com letras maiúsculas, e “ação católica”, designação genérica para as atividades de apostolado leigo anteriores à fundação da A. C., bem como para as organizações de apostolado sobreviventes depois da fundação desta, que continuaram alheias aos seus quadros fundamentais.

Natureza jurídica da A. C.: o mandato da A. C.

Qual a natureza jurídica[1] das organizações da A. C.?

Costuma-se afirmar que, ao criar estas novas e importantíssimas organizações de apostolado leigo, e ao convocar todos os fiéis para que nelas se inscrevessem, Pio XI formulou um mandato inequívoco e solene, que conferiu ao laicato inscrito na A. C. uma posição nova dentro da Igreja.

Noções sobre o mandato

Expliquemos melhor esta doutrina. Como se sabe, Nosso Senhor Jesus Cristo mandou a Pedro e aos demais Apóstolos que continuassem sua obra pregando a todos os povos a Boa Nova, introduzindo-os, pelo Batismo, na vida da graça, e governando-os dentro desta vida até a posse da bem-aventurança eterna. A expressão imperativa da Vontade do Divino Mestre – que constitui um mandamento, em latim “mandatum” – acarretou para os Doze e para seus sucessores uma obrigação, um ônus, um encargo e ao mesmo tempo um poder. Com efeito, obrigados pelo Divino Mestre a pregar a Verdade, distribuir os Sacramentos e governar as almas, tudo quanto fizessem no desempenho desse encargo, fá-lo-iam pela vontade do Redentor, o que os tornava seus autênticos representantes e embaixadores, mandatários investidos em toda a autoridade que de direito, e propriamente, Nosso Senhor Jesus Cristo teve no desempenho de sua missão na terra. Assim este “mandamento” de fazer apostolado é propriamente uma procuração imperativa que faz dos Apóstolos verdadeiros “mandatários”.

Sentido eclesiástico e civil de “mandato”

Insistimos, entretanto, em uma diferença digna de nota: enquanto as procurações correntemente utilizadas na vida civil são livremente exercidas pelo mandatário, que pode a qualquer momento demitir-se, o mandato dado a São Pedro e aos Apóstolos era imperativo e impunha uma dupla obrigação, isto é, a de aceitar a procuração e a de a pôr em exercício conforme a Vontade do Divino Mandante. Os poderes recebidos por São Pedro e os Apóstolos se transmitiram ao Sumo Pontífice e à Hierarquia Eclesiástica, de século em século, e fazem dos atuais governantes da Igreja os legítimos sucessores dos Doze.

Caráter hierárquico da A. C., deduzido do mandato

Traçadas estas noções preliminares, volvamos agora os olhos sobre a história do grande e luminoso pontificado de Pio XI. Acentuam muitos tratadistas da Ação Católica que a premência das circunstâncias em que a Igreja vivia então – e que infelizmente estão longe de haver cessado – levou o Pontífice a:

1 – ordenar a todos os leigos que pugnassem na obra do apostolado;

2 – fundar uma organização dentro de cujos quadros e debaixo de cuja hierarquia interna todo este trabalho tinha de ser feito;

3 – e, implicitamente, dar a essa organização a mesma obrigação, impor a mesma tarefa, encargo ou ônus imposto a cada um de seus membros.

Entre estes fatos, assim historiados, e o mandato de Nosso Senhor Jesus Cristo à Hierarquia, se indicaram dois pontos de contato:

1 – de analogia: as situações eram semelhantes, já que a Hierarquia procedera para com a Ação Católica de um modo que, evidentemente, fazia lembrar a atitude de Nosso Senhor ao constituir em autoridade os Doze;

2 – de participação: a Hierarquia transmitira poderes à Ação Católica. Que poderes? Evidentemente não de outra fonte senão dos que recebera. Assim, os poderes ou funções transmitidos seriam de natureza hierárquica, isto é, “participavam do apostolado hierárquico da Igreja”, segundo a definição de Pio XI.

Conseqüências concretas:

Perdoem-nos os leitores a monotonia das enumerações que fazemos: não há processo melhor para projetar tanta luz quanto possível sobre assuntos que, de si, são sutis e complexos, e facilmente induzem em confusão os espíritos. Assim, enumeremos agora as conseqüências de ordem prática que decorreriam de tudo quanto ficou exposto:

a) – quanto às demais organizações do laicato

1 – criando um organismo especial para o exercício deste mandato, o Santo Padre Pio XI tornou bem claro que este mandato não tocava aos organismos de apostolado pré-existentes, mas apenas à estrutura jurídica da A. C.;

2 – isto posto, só por meio de sua inscrição neste organismo, e agindo em união com ele, realiza o fiel a tarefa apontada pelo Pontífice, e assim só o membro da A. C. tem mandato;

3 – e, assim, não têm mandato quaisquer das associações estranhas aos chamados “organismos fundamentais” da Ação Católica e todos os membros daquelas associações que, pessoalmente, se não tenham inscrito em um dos ditos “organismos fundamentais”;

4 – do mandato conferido aos organismos fundamentais da A. C. decorreria que todas as outras associações preexistentes, sempre que realizassem qualquer das finalidades da A. C., se conservariam, ao sobreviver, em terreno a esta outorgado, o que implica em afirmar que deveriam desaparecer:

5 – e, como a Santa Sé quis proceder paternalmente e não aplicar a pena capital a entidades outrora beneméritas, tem insinuado, – ao mesmo tempo que lhes dispensa de quando em vez elogios – que sua era passou, indicando assim aos leigos zelosos e inteligentes, “bons entendedores para os quais meia palavra basta”, que evitem inscrever-se e trabalhar em tais associações, já hoje em estado pré-cadavérico;

6 – concedem alguns que poderiam sobreviver as associações de caráter estritamente piedoso, pois que, dizem, a A. C. não cuida de piedade; outros entendem que a A. C. a tudo basta, e que mesmo tais associações são inteiramente supérfluas e devem morrer: se “non sunt multiplicanda entia sine necessitate”, cessou para elas a razão de ser;

7 – uns e outros pensam, entretanto, que o apostolado só pela A. C. deve ser desempenhado, e que, enquanto não acabam de morrer, as demais associações de apostolado devem exercer atividades modestas, apagadas e sem relevo, as únicas compatíveis com o processo involutivo de quem declina para a sepultura;

8 – há quem não chegue tão longe e entenda que realmente as associações preexistentes aos atuais quadros jurídicos da A. C. não devem morrer, nem abandonar o apostolado, mas ocupar com suas obras e trabalhos uma posição inteiramente secundária, pois que, não exercendo um apostolado “mandado”, devem apenas ceifar as raras espigas que a foice dos ceifadores credenciados ainda deixou, por excesso de trabalho, no campo do Pai de família.

b) – quanto à Hierarquia

Estas são as conseqüências concretas que, lógica ou ilogicamente, decorrem das doutrinas que vimos expondo, no que se refere às relações da A. C. com as demais associações católicas. Entretanto, ainda mais importantes são os efeitos que dai decorrem para o terreno das relações da A. C. com a Hierarquia:

1 – Entendem uns que a palavra “participação” deve ser tomada em seu sentido mais exato e estrito, e que o mandato outorgado pelo Santo Padre Pio XI incorporou os membros da A. C. à Hierarquia da Igreja;

2 – Entendem outros que os membros da A. C. não participam da Hierarquia, mas do apostolado da Hierarquia, ou que, em outros termos, sem pertencer à Hierarquia exercem funções de caráter hierárquico, assim como, por exemplo, o sacerdote que recebe o poder de crismar exerce funções episcopais, sem entretanto, ser Bispo;

3 – Em uma e outra opinião se têm fundado muitos comentadores para sustentar que a A. C. ficou investida em uma autoridade tal, que os leigos a ela filiados dependem diretamente dos Bispos, de quem receberam mandato, e de nenhum modo dos Párocos ou Assistentes Eclesiásticos, que não têm poder de conferir cargos hierárquicos. Na Itália, houve quem sustentasse que, outorgado pelo Sumo Pontífice o mandato, só dele e não do Episcopado dependiam os membros da A. C., que recebiam suas ordens da Junta Central Romana, que funciona sob a autoridade imediata do Santo Padre.

Insistimos ainda em duas outras conseqüências importantes que dai costumam ser tiradas:

c) – quanto à organização e métodos de apostolado da A. C.

1 – o mandato dá ao apostolado da A. C. uma fecundidade irresistível, não no sentido figurado e literário da palavra, mas em seu sentido próprio e etimológico;

2 – assim dotada de invencíveis recursos para a santificação de seus próprios membros, bem como para atrair os fiéis a ela estranhos, ou mesmo os infiéis, a A. C. deve ter métodos de organização interna e apostolado exterior inteiramente diversos de quanto até aqui se praticou.

Deixando estas duas últimas questões, bem como o problema das relações da A. C. com as demais organizações, para capítulos ulteriores, comecemos a tratar da essência jurídica da A. C., e de suas relações com a Hierarquia Eclesiástica.

Observações importantes

Não quereríamos, entretanto, encerrar este capítulo sem acentuar que é extremamente difícil qualquer esquematização dos erros que existem sobre a A. C.. Como são freqüentemente frutos de paixões ora mais, ora menos vivazes, há uma grande multiplicidade de posições intermediárias que podem ser tomadas. Por isto, procuramos apontar apenas, e de modo aliás tão completo quanto possível, as posições mais características, refutadas as quais caem por si as intermediárias.


[1] Sempre que empregamos a expressão “natureza jurídica”, fazemo-lo no sentido de “constitutivo formal”.


 

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