Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

 

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O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda. - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

QUARTA PARTE

Atitudes da Ação Católica na expansão da doutrina da Igreja

CAPÍTULO I - Como apresentar a Doutrina Católica

Há uma grande diversidade de almas

A primeira observação que ocorre a qualquer pessoa dedicada ao estudo das almas, é a imensa variedade que entre elas estabeleceu o Criador. A alma humana é uma das mais belas e eminentes obras da criação, e, dado que Deus estabeleceu uma tão grande variedade nos seres de categoria inferior, não poderia deixar de enriquecer com variedade imensamente maior as almas espirituais criadas à Sua imagem e semelhança. Esta diversidade das almas, que encontrou na literatura de todos os povos observadores dos mais penetrantes, em nenhum lugar se manifesta de modo mais objetivo e eloqüente do que na Sagrada Escritura. Todas as paixões capazes de agitar o homem aparecem ali na plenitude de sua intensidade patética. Uns se movem pelo afeto, outros pelo amor às riquezas, outros ainda pelo ódio, pela paixão do mando, pela sede da ciência, pelas emoções da arte, etc.. A esta grande variedade natural corresponde uma grande variedade de atitudes da alma perante Deus. Enquanto algumas parecem mais inclinadas a adorar a Bondade de Deus, outras são mais sensíveis ao deslumbramento de seu poder, à profundeza de sua ciência, etc.

E implicitamente deve haver uma grande variedade de atitudes no apostolado

De tudo isto se deduz que é absolutamente impossível esperar que as várias pessoas, entregues à faina do apostolado empreguem sempre em sua linguagem os mesmos termos, e, em sua ação os mesmos métodos. Além da impossibilidade natural, que existe em se esperar efeitos idênticos de causas diversas, soma-se a isto um empecilho sobrenatural. Com efeito, a graça, “que não destrói a natureza, mas a eleva e santifica”, longe de destruir a variedade das almas, as acentua em certo sentido, de sorte que, se de um ponto de vista nada há mais parecido do que dois Santos, de outro ponto de vista nada há mais diferente.

Esta diversidade de caráter entre as pessoas que se entregam ao apostolado, longe de desservir à Igreja, é um meio providencial para que ela possa, com igual eficácia, dirigir-se a todas as almas.

Enquanto algumas se movem sobretudo pela doçura, outras se movem principalmente pelo temor; enquanto umas se sentem tocadas pela simplicidade, outras se empolgam pelo fulgor do gênio unido à Santidade; enquanto, a umas, Deus chama à conversão pelo sofrimento, a outra Deus atrai pelo caminho das honras e das consolações. Se, obedecendo às tendências modernas de padronização e de racionalização, quisermos ter apenas apóstolos de um só feitio, teremos fracassado lamentavelmente. Porque a riqueza da obra criada por Deus não se deixará comprimir nem depauperar pelas elaborações arbitrárias de nossa imaginação, e pelo panorama subjetivo que tivermos feito da realidade.

Errará a “técnica de apostolado” que não tomar em consideração esta verdade fundamental

Entretanto, é a este erro, que arrastam certas concepções por demais estreitas, que, da técnica do apostolado, correm em alguns círculos da A.C.. Aceitando-se os métodos preconizados em tais círculos, dir-se-ia que a imensa variedade das almas existentes fora da Igreja se reduz a um só tipo de pessoas, idealmente bem intencionadas e cândidas, em cujo interior nenhum obstáculo voluntário se ergue contra a Fé, e que um simples equívoco de ordem meramente especulativa e sentimental mantém afastadas da Igreja.

Estabelecida esta concepção arbitrária, toda sabedoria pastoral se reduz a iluminar as inteligências e a granjear simpatias, o que deve ser feito evidentemente aos poucos, com extremos de tato, em doses diluídas, para que essas almas, “subindo lentamente de claridade em claridade, se reconciliem com o íntimo de si próprias, e cheguem por fim, quase sem o perceber, e como que através uma engenhosa armadilha, à posse da verdade e da transparência interior”.

O “recuo estratégico”, único processo de apostolado

Daí decorre toda uma tática que, uma vez adotada oficialmente na A.C., seria a canonização da prudência carnal e do respeito humano. O primeiro princípio da sabedoria consistiria em evitar sistematicamente qualquer coisa que, legitimamente ou não, pudesse causar a menor diversidade de opinião. Colocado em um ambiente acatólico, deveria o membro da A.C. salientar apenas, e sobretudo no começo, os pontos de contato entre ele e as demais pessoas presentes, calando cautelosamente as divergências. Em outros termos, o início de qualquer manobra de apostolado consistiria em criar largas zonas de “compreensão recíproca”, entre católicos e não católicos, situando-se ambos em terreno comum, neutro e simpático, por mais vago e largo que este terreno fosse.

Como assaz freqüentemente os incréus não professam senão um minimum muito reduzido de princípios comuns com os nossos, mandariam a caridade e a sabedoria que em nossas obras se ocultasse o cunho religioso, atraindo-os assim de modo sub-reptício à prática da Religião. Exemplifiquemos. Seria preferível falar, nos documentos de propaganda da A.C., simplesmente em “verdade”, “virtude”, “bem”, “caridade”, em sentido absolutamente a-religioso. Se, em certas situações, for possível avançar mais, dever-se-á falar em Deus, mas sem pronunciar o nome adorável de Jesus Cristo. Sendo possível, falar-se-á em Jesus Cristo, mas sem mencionar a Santa Igreja Católica. Falando-se em Catolicismo, dever-se-á fazê-lo de maneira a dar idéia de que se trata de uma Religião acomodatícia e de contornos doutrinários imprecisos, que não acarretam uma profunda separação de campos. O que, tudo, implica em dizer que a linguagem agnóstica do Rotari, a linguagem deísta da Maçonaria, a linguagem pã-cristã da Associação Cristã de Moços são outras tantas máscaras, de que a A.C. se deverá servir conforme as circunstâncias, considerando-as mais eficazes para o apostolado do que uma linguagem desassombradamente católica.

Como conseqüência rigorosa, repelem certos elementos, de modo formal, passam sob silêncio, parecem esquecer e ignorar, todas as passagens da Sagrada Escritura, todas as produções dos Padres e Doutores, todos os documentos pontifícios, todos os episódios da hagiografia católica, de que ressalte a apologia do denodo, da energia, do espírito de combatividade. Procura-se ver a religião com um olho só, e quando o olho que vê a justiça se fecha para deixar apenas aberto o que vê a misericórdia, este imediatamente se perturba, e arrasta o homem à temerária presunção de se salvar, a si e aos outros, sem méritos.

A Cruz de Cristo não afugenta os neófitos da A.C.

Outra grande preocupação consiste em ocultar tudo quanto possa dar ao não católico ou indiferente a idéia de que a Igreja é uma escola de sofrimentos e sacrifícios. As verdades austeras são rigorosamente proscritas. Não se fala de mortificação, nem de penitência, nem de expiação. Só se fala nos deleites da vida espiritual. Por isto, reputam pouco hábil, para não dizer inteiramente inábil, tentar obter a simpatia dos incréus narrando-lhes, por exemplo, a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O que desejam é que se fale única e exclusivamente do Cristo-Rei, do Cristo Glorioso e Triunfante. As humilhações do Horto e do Gólgota afugentariam as almas. Só as delícias do Tabor, poderiam efetivamente atrair. Certo Sacerdote narrou-nos, uma vez, que na Sacristia de uma velha Irmandade ainda semi-maçonizada encontrou afixado o seguinte cartaz: “É proibido falar do Inferno”. A mesma proibição vigora nesses círculos [1]. É por isto também, que tendem a considerar a Semana Santa muito mais como uma comemoração gaudiosa que faz prenunciar os triunfos da Páscoa, do que um conjunto de cerimônias destinadas a fazer compungir os fiéis, na compaixão com o Redentor, e na lamentação dos próprios pecados.

Essas doutrinas são errôneas porque pressupõem um panorama falso

A primeira observação que temos de formular a respeito de tantos erros, é que eles procedem do pressuposto falso de que todas ou quase todas as almas afastadas da Igreja se encontram na mesma situação psicológica, isto é, que sem obstáculos interiores outros que não os puramente intelectuais e sentimentais aguardam a terapêutica estratégica da A.C., a fim de se salvarem. E por isto é falsa a idéia de que só um método de apostolado pode servir à A.C., isto é, o método das meias verdades, das meias tintas e das meias palavras.

Não contestamos que esta ou aquela alma fora da Igreja, se encontre na situação acima descrita, e que algumas destas almas – não todas – podem ser conduzidas à verdade pela utilização deste método todo de contemporizações e dilações.

Há, porém, grave erro em supor que a grande generalidade dos que se encontram fora da Igreja dela estejam afastados por preconceitos meramente intelectuais e equívocos emocionais.

Queira-se ou não se queira, o pecado original, mesmo no homem batizado, não deixou apenas na inteligência, mas ainda na vontade e na sensibilidade graves e lamentáveis efeitos, em conseqüência do que todos os homens sentem uma inclinação para o mal, que só conseguem vencer por meio de lutas, por vezes heróicas. Para demonstrá-lo não devemos procurar exemplos nas lutas que, contra suas próprias inclinações, são forçados a desferir os pecadores que começam a emergir de uma vida toda cheia de vícios. Basta correr os olhos pelas vidas dos Santos, para se ver que estes, as vezes depois de anos inteiros vividos na observância das mais austeras virtudes e até depois de haverem adquirido um elevado grau de intimidade com Deus, foram forçados a praticar contra si mesmos as maiores violências, a fim de não cometerem ações altamente censuráveis. São Bento, retirado do mundo e já todo entregue às contemplações divinas, teve de rolar sobre espinhos, a fim de apagar a concupiscência que o arrastava ao pecado. São Bernardo, atirou-se em um lago, a fim de obter a mesma vitória. Bispo, Doutor da Igreja, fundador de uma Congregação Religiosa, Santo Afonso de Ligório, aos noventa anos de idade, ainda sentia em si as investidas da concupiscência. Por aí se compreendem os embaraços que o pecado original cria ao cumprimento da doutrina católica por parte dos fiéis, embaraços estes tão grandes, que a moral católica é decididamente superior às exclusivas forças humanas, e é heresia sustentar que é possível ao homem, com suas próprias forças, e sem o auxílio sobrenatural da graça, praticar de modo durável a totalidade dos mandamentos. Resumindo tudo quanto dissemos, e para que se veja que não exageramos, concluamos com palavras de Leão XIII. Disse o grande Papa que seguir a moral católica “é uma ingente tarefa, que exige muitas vezes grande esforço, energia e constância. Com efeito, apesar da renovação da natureza humana pelos benefícios da Redenção, subsiste em cada um de nós uma espécie de doença, de enfermidade e de corrupção. Apetites diversos atraem o homem vigorosamente para este ou aquele lado, e as seduções exteriores levam facilmente sua alma a procurar antes o que lhe agrada do que a seguir os mandamentos de Jesus Cristo. É-nos, pois, necessário reagir e lutar, com todas as forças, contra nossas paixões. Nessa luta contra si mesmo, deve cada qual estar disposto a suportar os obstáculos e os sofrimentos por causa de Cristo. É difícil rejeitar os objetos que têm tanto atrativo e encanto; é duro e penoso desprezar o que se chama os bens do corpo e da fortuna, a fim de se conformar com a vontade soberana do Mestre, que é Cristo; mas é necessário que o cristão tenha paciência e coragem até o fim, se ele quer viver cristãmente o tempo de sua vida” (Encíclica “Tametsi Futura Prospicientibus”, 1 de novembro de 1900). Na Escritura, são muitos os textos que corroboram esta afirmação do grande Leão XIII: “... os sentidos e os pensamentos do coração do homem são inclinados para o mal desde a sua mocidade” (Gen., VIII, 21), adverte o Espírito Santo.

Falamos até aqui só dos obstáculos criados ao homem pelo pecado original. Quanto mais procedentes serão nossos argumentos, se também tomarmos em consideração as tentações diabólicas!

Se a vida do fiel implica em tantas lutas, fácil será compreender-se a aversão que no infiel despertam a simples perspectiva de sua observância, e os consideráveis obstáculos que sua vontade deve enfrentar antes de fazer, juntamente com a inteligência, o ato de Fé. Daí decorre que, se muitos fiéis, sustentados embora pela superabundância de graças existentes dentro da Igreja não perseveram no caminho da virtude, chegam às vezes a apostatar e a se transformar até em inimigos cruéis de Jesus Cristo, os infiéis, confortados com graças muitas vezes menores, muito mais facilmente serão levados contra a Igreja ou contra os católicos a uma atitude de má vontade mais ou menos consciente, mais ou menos explícita, rancorosa por vezes, que está muito longe da atitude de pomba sem fel, que em certos círculos da A.C. se supõe ser a única em que se encontram os infiéis.

Daí, nas pugnas apostólicas, um ambiente de luta que, vivida de nossa parte santamente, e por vezes satanicamente da parte de nossos adversários, existirá até a consumação dos séculos. Com efeito, diz a Escritura que “os justos abominam o homem ímpio, e os ímpios abominam aqueles que estão no caminho reto” (Prov., XXIX, 27). É a realização da irredutível inimizade, criada pelo próprio Deus, e por isto mesmo fortíssima, que separa dos filhos da Virgem Santíssima, os filhos da serpente: “Inimicitias ponam inter te et mulierem”.

Por isso, “contra o mal está o bem, e contra a morte, a vida; assim também contra o homem justo está o pecador. Considera assim todas as obras do Altíssimo. Achá-las-ás duas a duas, e uma oposta a outra” (Eclesiástico, XXIII, 15). E a isto se reduz a generalidade dos “equívocos sentimentais”, de que, na concepção errada que vimos combatendo, os infiéis seriam antes vítimas do que réus. Nas vésperas de sua conversão, o grande Agostinho ainda sentia obstáculos morais fortíssimos, que eram suscitados pela concupiscência, e em suas admiráveis “Confissões” nos narra a luta titânica que teve de travar antes de chegar ao porto que é a Igreja. É este o depoimento que, em via de regra, os convertidos prestam a respeito de sua conversão, operada em geral através de lances verdadeiramente trágicos, em que a razão luta contra a inclinação veementíssima dos sentidos para o mal. O número de almas que, sem esforço e sem luta, e quase sem sentir, se convertem, é muito mais raro e isto porque é infelizmente muito maior o número de homens escravizados por paixões de toda ordem.

E por isto excluem o emprego de recursos de importância relevante

Ora, quando a vontade por esta maneira se aferra ao próprio erro, é muito freqüente verificar-se que só uma descrição objetiva e apostolicamente franca da fealdade de seus atos pode chegar a produzir o efeito desejado. Neste sentido, os exemplos são inúmeros na Sagrada Escritura, e as objurgatórias dos Profetas contra os pecados de Babilônia, de Nínive e do próprio povo de Deus, longe de procurarem “um terreno comum” constituem uma terrível separação de campos, em que, à claridade deslumbrante da verdadeira moral, se contrapõe, em contraste cruel, toda a abjeção do paganismo ou todo o negrume da ingratidão dos filhos de Deus.

Seria um grave erro pretender que o Novo Testamento suprimiu estas manifestações cruas da verdade. Aos que lhe vieram pedir o caminho da virtude, não respondeu São João Batista procurando criar o famoso “terreno comum”. Pelo contrário, lhes disse: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura? O machado já está perto da raiz das árvores. Toda a árvore, pois, que não dá bom fruto será cortada e lançada no fogo” (S. Math. III, 7, 10).

A Herodes disse francamente São João Batista o famoso “non licet tibi”, que lhe custou a vida. Era nociva esta tática? Não. O Evangelho nos diz que, pelo contrário, grande era seu prestigio junto a Herodes que o defendia contra seus inimigos: “E Herodias armava-lhe (a João) muitas ciladas e queria fazê-lo morrer; porém, não podia porque Herodes temia João, sabendo que ele era varão justo e santo; e defendia-o, e pelo seu conselho fazia muitas coisas, e ouvia-o de boa vontade” (S. Marcos, 6, 19-20). Evidentemente tanto os Profetas quanto São João Batista tomaram atitudes inspirados pelo Espírito Santo e no desejo de obter as maiores vantagens para essas almas transviadas: logo não podem ter errado.

De que Nosso Senhor se utilizou

Também Nosso Senhor, se açoitou os vendilhões do Templo, fê-lo no interesse de suas almas, e quando aos fariseus chamou de raça de víboras e sepulcros caiados, teve a intenção de causar benefícios a estas almas transviadas. O mesmo se deu com os escandalosos, dos quais disse, certamente no misericordioso intuito de deter alguns à beira do pecado, que melhor seria que lhes fosse amarrada uma mó ao pescoço, e fossem atirados ao fundo do mar. E quando encheu de ameaças as cidades ingratas de Jerusalém, Corozaim e Betsaida, fê-lo com o intuito de precaver todos os povos futuros contra o mesmo pecado de ingratidão.

Quanto à Apologética, basta folhear as grandes páginas dos Padres e Doutores, basta examinar por exemplo a magnífica sobranceria com que Santo Agostinho põe a ridículo todas as misérias do paganismo, na “Cidade de Deus”, para que se compreenda como a sabedoria dos melhores apologetas tem julgado indispensável este método, certamente muito diverso da criação de um “terreno comum”, para a conveniente defesa da Santa Igreja.

Como em geral as Escrituras, e particularmente o Novo Testamento, costumam ser lidos com deplorável unilateralidade, citaremos no último capítulo desta obra uma série de textos que constituem um repúdio do uso sistemático da famosa tática do “terreno comum”.

Cujo repúdio a Santa Sé condenou

Não seria completa a análise deste assunto, se, às reflexões que fizemos, não acrescentássemos outra. Praticada a título excepcional, a tática que examinamos pode ser considerada um legítimo e industrioso expediente de caridade. Transformada em regra geral de ação ela degenera facilmente em respeito humano e em hipocrisia, atraindo sobre nós o desprezo de nossos adversários. A Santa Sé condenou expressamente esse erro. Eis o que, a respeito desta tática de perpétuo recuo, disse o Santo Padre Leão XIII:

“Recuar diante do inimigo e conservar o silêncio quando de todas as partes se elevam clamores tão fortes contra a verdade, é atitude de homem sem caráter, ou que duvida da verdade de sua Fé. Em qualquer caso, tal conduta é vergonhosa e faz injúria a Deus; ela é incompatível com a salvação de cada um e com a salvação de todos; ela não traz vantagens senão aos inimigos da Fé; porque nada desperta tanto a audácia dos maus quanto a fraqueza dos bons.

“Aliás, não há quem não possa desfraldar aquela força de alma, em que se assenta a própria virtude dos cristãos; ela basta muitas vezes para desconcertar o adversário e perturbar seus desígnios. Acresce que os cristãos nasceram para o combate. Ora, quanto mais a luta for ardente, tanto mais, com o auxílio de Deus, podemos esperar a vitória: “Tende confiança, eu venci o mundo”. (Leão XIII, Encl. “Sapientiae Christianae”, de 10 de Janeiro de 1890).

Pelo contrário, as condescendências excessivas, que tocam por vezes às raias da inverdade, foram censuradas pelo Espírito Santo: “Aqueles que dizem ao ímpio “tu és justo”, serão amaldiçoados pelo povo e detestados pelas nações. Aqueles que o repreendem serão louvados e virá sobre eles a bênção” (Prov., XXIV, 24).

Com efeito, nada é mais apto a criar, de parte a parte, na luta entre adversários militantes, um ambiente de respeito e até de admiração, do que convicções profundas e vigorosas, externadas sem arrogância mas com o sobranceiro desassombro de quem possui a verdade e dela não se envergonha; declaradas de modo cristalinamente explícito, e defendidas com argumentação cerrada. Que admiração causavam aos pagãos, que enchiam o Circo Romano e o Coliseu, as profissões de Fé desassombradas dos mártires, tão opostas ao espírito do paganismo, que tão fortemente chocavam todo o ambiente, mas que ao mesmo tempo se apresentavam revestidas do esplendor da lealdade e do prestígio do sangue! Que admiração tinham os mouros pelos heróicos cruzados, que sabiam lutar como leões, mansos embora como cordeiros quando tinham diante de si um adversário ferido ou moribundo. Com que desprezo, pelo contrário, temos fulminado a propaganda protestante, que procura empregar contra nós métodos tão em voga em certos círculos da A.C.. “Espiritualistas”, “cristãos”, até “católicos livres” se têm eles intitulado, com o intuito preciso de criar os “terrenos comuns” ambíguos para pescarem em águas turvas. Não imitemos os métodos que combatemos, não façamos da perpétua retirada, do uso invariável de termos ambíguos e do hábito constante de ocultar a nossa Fé, uma norma de conduta, que, em última analise, redundaria em triunfo do respeito humano.

A uma associação, que desejava reformar seus estatutos a fim de ocultar seu caráter católico, e assim obter maiores vantagens, escreveu Pio X: “não é leal nem digno ocultar, cobrindo-a com uma bandeira equívoca, a qualidade de católico, como se o Catolicismo fosse mercadoria avariada que devesse entrar de contrabando. Que a União Econômico-Social desfralde portanto corajosamente a bandeira católica e se atenha firmemente aos estatutos atuais. Poder-se-á obter assim o objetivo da Federação? Agradeceremos por isso ao Senhor. Será vão nosso desejo? Ficarão ao menos uniões católicas, que conservarão o espírito de Jesus Cristo e o Senhor não deixará de as abençoar” (Carta ao Conde Medolago Albani). O mesmo pensamento repetiu-o o Santo Padre Pio X em carta ao Padre Ciceri, de 20 de outubro de 1912: “a verdade não quer disfarce, e nossa bandeira deve ser desfraldada.”

Diz a Escritura nada haver de novo sob o sol. Infelizmente, sobretudo quanto aos erros, esta afirmação é verdadeira. Os erros se repetem periodicamente. Assim, no pontificado de Pio X, o presente problema parecia estar muito em evidência. Não só no que diz respeito ao apostolado de obras – vimos como a União Econômico-Social atraiu sobre si uma censura a este respeito – mas também no terreno da ciência se colocava a questão. Muitos cientistas católicos, levados pelo desejo de evitar o quanto possível atritos com os cientistas naturalistas, se deixavam iludir pela esperança de que, com certas concessões, seria possível desenvolver um apostolado frutuoso. Também no terreno político, muitos homens públicos julgavam que, passando sob silêncio a reivindicação de certos direitos da Igreja, ou ao menos reivindicando-os de modo muito limitado, obteriam uma era de paz para o Catolicismo.

O suavíssimo porém zeloso Pontífice desfez estas ilusões, em termos que bem podem servir à solução de nosso problema, que em essência é o mesmo. Ouçamo-lo: “ainda mais grosseiro é o erro dos que, no falso e vão anseio de obter a paz para a Igreja, dissimulam os interesses e os direitos dela, sacrificando-os a interesses particulares, diminuindo-os injustamente, e pactuando com o mundo que “está inteiramente imerso no mal”; tudo isto sob pretexto de conquistar os fautores de novidades e reconciliá-los com a Igreja. Mas desde quando pode haver acordo entre a luz e as trevas, entre Cristo e Belial? Sonhos de espíritos doentes: jamais se cessa de forjar tais quimeras, e jamais teremos o direito de esperar que se cesse de o fazer enquanto tivermos soldados covardes, sempre dispostos a fugir atirando de lado suas armas, desde que avistam o inimigo, a saber, no caso, o perniciosíssimo inimigo de Deus e dos homens” (Pio X, Encíclica “Communiur Rerum”, 21 de abril de 1909). Evidentemente, concebe Pio X, casos em que “às vezes”, seria justa alguma condescendência. Por isso, em outro tópico da mesma Encíclica, usando embora muitas precauções de linguagem, que grifaremos, o Santo Padre acrescenta: “Não quer isto dizer que não se possa, às vezes, ceder sequer um pouco de seus direitos: é isto permitido dentro de certa medida, e a salvação das almas pode exigi-lo”.

Em outra Encíclica o Santo Padre volta a tratar novamente do assunto, dizendo: “é grave o erro daqueles que pensam bem merecer da Igreja e trabalhar para a salvação eterna dos homens, permitindo, por uma prudência toda ela mundana, largas concessões a uma pretensa ciência, com a vã esperança de ganhar, o mais facilmente possível, o amigo do erro. A verdade é una e indivisível, eternamente a mesma, e não se submete aos caprichos dos tempos: “Christus heri et hodie, ipse et in saecula”.

“Enganam-se também, e grandemente, acrescenta o Pontífice, os que, na distribuição de socorros, principalmente em favor das classes populares, se preocupam no mais alto ponto com as necessidades materiais, e negligenciam a salvação das almas e os deveres soberanamente graves da vida cristã. Por vezes mesmo, não se envergonham de cobrir, como que com um véu, os preceitos mais importantes do Evangelho, de receio de serem menos ouvidos, ou até abandonados. Sem dúvida, quando se tratar de esclarecer homens hostis a nossas instituições e inteiramente afastados de Deus, a prudência poderá autorizar a usar certa contemporização. “Se vos for necessário cortar feridas, apalpai-as antes com mão ligeira”, diz São Gregório. Mas seria transformar uma habilidade legítima em uma espécie de prudência carnal, erigir esse procedimento em regra de conduta constante e comum; e seria também dar pouco valor à graça divina, que não favorece apenas aos Sacerdotes e ministros, mas todos os fiéis de Cristo, a fim de que nossos atos e nossas palavras comovam as almas. Uma tal prudência, S. Gregório a desconheceu quer na pregação do Evangelho, quer nas outras obras admiráveis que realizou para aliviar as misérias humanas. Ele se apegou ao exemplo dos Apóstolos, que diziam, no dia em que empreenderam percorrer o universo afim de anunciar a Cristo: “pregamos Jesus crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”. Mas, se houve tempo em que o socorro da prudência humana pôde parecer oportuno, foi certamente aquele: porque os espíritos de nenhum modo estavam preparados para acolher a esta nova doutrina que repugnava tão vivamente as paixões que por toda a parte reinavam, e chocava de frente a brilhante civilização dos gregos e romanos.

“Entretanto, os Apóstolos julgaram essa espécie de prudência incompatível com sua missão, porque conheciam o decreto divino: “é pela loucura da pregação que aprouve a Deus salvar os que cressem nele”. Esta loucura foi sempre, e ainda é, “para os que se salvam, isto é, para nós, a força de Deus”; o escândalo da Cruz forneceu e fornecerá de futuro as armas mais invencíveis; ele foi outrora e ainda será para nós um sinal de Vitória”.

“Mas estas armas, Veneráveis Irmãos, perderão toda sua força e toda sua utilidade se não forem manejadas por homens que não vivam interiormente com Cristo, que não forem impregnadas de uma verdadeira e robusta piedade, que não forem abrasados pelo zelo da glória de Deus, pelo ardente desejo de dilatar seu reino” (Pio X, Encíclica “Jucunda Sane”, de 12 de março de 1904). Neste último tópico, dá-nos o Santo Padre a razão profunda de tanta prudência carnal, de tantos expedientes contemporizadores, em uma palavra, de tanto desejo de não combater: a luta do apostolado se trava com armas sobrenaturais que só se temperam na forja da vida interior. Combalida, esquecida, diminuída esta vida interior pelas múltiplas doutrinas que em outros capítulos mencionamos, o resultado não deveria tardar a se fazer sentir no terreno da estratégia apostólica, produzindo os frutos de liberalismo e de naturalismo que aí estão.

É severamente punida por Deus

Livre-nos Deus da justa cólera que tais desvios lhe podem causar. Esta cólera pode assumir proporções assustadoras. Ninguém ignora o alto grau de esplendor a que chegou o Império Romano do Ocidente. Ora sua civilização grandiosa – uma das maiores da História – morreu precisamente pela cólera que essa eterna contemporização dos católicos para com o mal causou a Deus. Templos, palácios, termas, aquedutos, bibliotecas, circos, teatros, tudo ruiu. Por quê? Três foram, segundo Santo Agostinho, as causas da queda do Império Romano do Ocidente, e, destas, uma foi a pusilanimidade dos católicos na luta contra os desmandos do paganismo. Adotaram a tática da prudência carnal, das meias verdades e do “terreno comum”. Por isto, puniu-os Deus com uma invasão de bárbaros, que constituiu uma das mais terríveis provações de toda a História da Igreja. Pela enormidade do castigo, podemos bem medir a gravidade da culpa. Diz o Santo Doutor, no Livro I, da Cidade de Deus:

“Onde encontrar (em Roma) aquele que, em presença desses monstros de orgulho, de luxúria, de avareza, cuja iniqüidade, cuja execrável impiedade obriga Deus a esmagar a terra, segundo sua antiga ameaça; aquele, digo, que seja diante deles aquilo que deve ser, que trate com eles como é preciso tratar com tais almas! Quando seria necessária esclarecê-los, adverti-los, e, mesmo, repreendê-los e corrigi-los, muitas vezes uma funesta dissimulação nos detém, seja indiferença preguiçosa, seja respeito humano que não ousa afrontar um semblante iracundo, seja temor desses ressentimentos que poderiam nos perturbar e nos prejudicar nesses bens temporais, cuja posse nossa cupidez apetece, e cuja perda nossa fraqueza teme. Se bem que a vida do ímpio seja aborrecida pelas pessoas de bem, e que esta aversão as preserve do abismo que espera os réprobos ao sair deste mundo, todavia esta fraqueza indulgente com as iniqüidades mortais, por temor de represálias contra suas próprias faltas, faltas leves e veniais entretanto; essa fraqueza, a salvo da eternidade dos suplícios, é justiça que ela seja castigada pelos flagelos temporais; é justiça que, na imposição providencial das aflições, ela sinta o amargor desta vida que, embriagando-a de suas doçuras, a afastou de oferecer aos maus, a taça da salutar amargura.

“Se se deixa, entretanto, a reprimenda e a correção dos pecadores para um tempo mais favorável, no próprio interesse destes, de medo que eles se tornem piores, ou que impeçam a iniciação dos fracos nas práticas da piedade e da virtude, oprimindo-os, desviando-os da fé, isto não é mais instinto de cupidez, isto é prudência e caridade. O mal é que aqueles, cuja vida, testemunha de um profundo horror pelos exemplos dos maus, poupam os pecados de seus irmãos, porque temem as inimizades, porque temem ser lesados em seus interesses legítimos, é verdade, mas excessivamente caros a esses homens, peregrinos neste mundo, guiados pela esperança da pátria celestial. Porque não somente aos mais fracos, que contraíram estado conjugal, tendo filhos ou desejando ter, pais e chefes de família (aqueles aos quais o Apóstolo se dirige para lhes ensinar os deveres cristãos dos maridos para com suas esposas, das mulheres para com seus maridos, dos pais para com seus filhos, dos filhos para com seus pais, dos servos para com seus senhores, dos senhores para com seus servos); não é só a eles que o amor de certos bens temporais ou terrenos, cujo gozo ou perda lhes é por demais sensível, tira a coragem de desafiar a ira destes homens, cuja vida infame e criminosa lhes é odiosa; mas os fiéis mesmos, elevados a um grau superior, livres do laço conjugal, simples na mesa e no vestir, sacrificam muitas vezes à sua reputação, a sua segurança, quando, para evitar as insídias ou violências dos maus, eles se abstêm de os repreender e, sem todavia se deixar intimidar pelas ameaças, terríveis que sejam, até o ponto de seguir seus sinistros exemplos, entretanto, não ousam vituperar o que recusariam imitar.

Talvez tivessem salvo a muitos, cumprindo esse dever de reprimenda, que eles fazem ceder ao temor de expor sua reputação e sua vida; e isto não é mais essa prudência, que guarda uma e outra em reserva, para instrução do próximo, mas antes essa fraqueza, que se compraz com palavras lisonjeiras, com as luzes ilusórias dos julgamentos humanos, que teme a opinião do mundo, os ferimentos e a morte da carne; fraqueza encadeada por laços de cupidez e não por um dever de caridade” (os grifos são nossos).


NOTAS

[1] É importantíssimo notar que o Sagrado Concílio Tridentino ensina (c. 818) que:

“Se alguém disser que o medo da geena, pelo qual choramos os pecados e nos refugiamos na misericórdia de Deus e ao mesmo tempo nos abstemos do pecado, constitui um pecado, ou torna piores os pecadores: anathema sit”.

Este texto não tem uma aplicação imediata em nosso caso, mas o modo pelo qual o mesmo Concílio define a verdade oposta a tal erro constitui um desmentido indireto à afirmação de que não se deve pregar sobre o inferno e as punições que esperam o pecador depois da morte. Diz o Concílio: “...pecatores... a divinae justitiae timore... utiliter concutiuntur” (C. 798). Assim, ninguém pode negar que seja “útil comover os pecadores por meio do temor da justiça divina”.

Isto posto, como proibir ou de qualquer maneira se desaconselhar que tal se faça nos meios católicos, desde que, evidentemente, não se passe de um extremo para outro, isto é, de uma exclusiva contemplação da bondade de Deus, para uma exclusiva apreensão de sua severidade?

Não contestamos, é evidente, que a meditação das penas eternas seja desigualmente útil, de sorte que, proveitosíssima para uns, seja menos proveitosa para outros. De um modo geral, porém, e feita exceção de certos estados espirituais especiais, ou de casos patológicos, esse assunto tem sempre utilidade, e deve sempre ser tratado de modo claro e forte.


 

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