Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 4 de abril de 1971

O coelho

Dos três princípios afirmados no nome da TFP — Tradição, Família e Propriedade — só é contestado com certa insistência o terceiro, isto é a propriedade. A contestação procede antes de tudo — como é natural — das correntes socialistas e comunistas, que negam a propriedade individual. Contudo, também em certos setores empresariais e em alguns grupos católicos, surge ela de quando em vez. E isto é muito menos natural.

Com efeito, o empresario é, por definição, um proprietário. E não se compreende como possa alguém estar cômoda e opulentamente aboletado na situação de proprietário... e, ao mesmo tempo, ser contra a propriedade. Tal contradição se parece com a de um monarca que fosse republicano, ou um presidente da república o qual se afirmasse anarquista. Em tais hipóteses, seria clamoroso que o monarca não abdicasse sua coroa, ou o presidente não renunciasse à chefia do Estado. Não é menos clamoroso que o proprietário não renuncie a seus bens. Em favor de obras de caridade, por exemplo.

O caso dos católicos contrários à propriedade privada também é estranhíssimo. Em primeiro lugar porque, em muitos deles a animadversão em relação à propriedade privada mais transparece do que aparece. Ou seja, mais ela filtra através de insinuações, de críticas veladas, de inesperadas conivências com a esquerda, do que se afirma de modo peremptório. — Por que este mistério? Se são a favor dela, por que jamais a defendem? Por que suas simpatias correm sempre para os que a atacam? E por que suas antipatias se voltam unicamente contra os que a defendem?

Há, cumpre dizê-lo, católicos que vão mais longe, e afirmam, às escâncaras, que a Igreja está inteiramente desvinculada, em nossos dias, do instituto da propriedade privada. Afirmam eles que o comunismo, enquanto regime social e econômico é tão aceitável pela Igreja quanto outro qualquer. E que a única razão dos conflitos ocorridos até aqui, entre a Igreja e o comunismo, provém do fato de que este último tem perseguido a Religião. Cessadas as perseguições, a Igreja aceitará de viver em inteira harmonia com os Estados comunistas. Como até há pouco viveu placidamente no Estado capitalista, antes da Revolução Francesa se sentiu à vontade no Estado monárquico-centralista, e ainda mais remotamente , isto é, na Idade Média, cooperou intimamente com o Estado feudal. Ora, também a posição destes católicos esquerdistas é desconcertante. Pois propriedade individual — com estas ou aquelas modificações acidentais — é apontada pelos documentos pontifícios como uma instituição decorrente da própria ordem natural das coisas, no que esta tem de fixo e invariável. Como uma instituição legítima, portanto, e que deve durar enquanto o mundo for mundo. Como um direito sagrado, decorrente para o homem do fato de ser homem. Um direito, pois, que nenhum Estado pode abolir sem entrar em frontal e gravíssimo conflito com a moral católica.

Por isto mesmo, mais estranhável ainda é que certos católicos qualifiquem a propriedade individual como uma injustiça dos outros tempos, que a Igreja teve a fraqueza de apoiar, mas da qual deve dessolidarizar-se, a esta altura da evolução humana. Porventura foi, então, uma fraqueza de Deus afirmar a propriedade individual em dois mandamentos do decálogo, "não furtarás" e "não cobiçarás os bens do próximo"? E foi uma fraqueza de Nosso Senhor Jesus Cristo corroborar o decálogo para todo o sempre, afirmando que "enquanto não passar o céu e a terra, não desaparecerá da lei um só jota ou um só til" (S. Mateus, V, 18)?

O mais curioso é que entre este "antiproprietismo" patronal e seu congênere "católico" há convergências profundas.

Os empresários "antiproprietistas" procuram justificar sua atitude em termos de encíclicas. E os católicos "antiproprietistas" em termos de economia.

Uns e outros parecem pensar que o mundo caminha para uma situação esotérica que eles já conhecem, porém ainda não ousam revelar-nos. Essa situação não seria idêntica ao comunismo, porém incluiria a abolição da propriedade individual. Isto é, concluímos nós, seria genuinamente comunista.

Que coelho está para sair das mangas ou do bolso do colete desses enigmáticos prestidigitadores?

* * *

Nada de bom auguramos desse coelho. Todo o mistério que se faz antes de o mostrar, afinal, à admiração dos povos, só pode despertar suspeitas.

Já antes de ele aparecer na cena, o coelho se nos prenuncia portador de calamidades. É preciso, pois, fazer o possível para obrigar o coelho a continuar na manga ou no bolso dos prestidigitadores.

Para tanto, nada melhor do que citar alguns ensinamentos pontifícios sobre a propriedade privada. A um tempo desconcerta os empresários e silencia os católicos da grei "antiproprietista".

* * *

E para que não se diga que esses ensinamentos são obsoletos (o que é um ensinamento pontifício obsoleto?), começo desde logo por um texto de João XXIII:

João XXIII: "...o direito de propriedade privada, mesmo em relação a bens empregados na produção, vale para todos os tempos. Pois depende da própria natureza das coisas, que nos diz ser o indivíduo anterior à sociedade civil, e, por este motivo, ter a sociedade civil por finalidade o homem. De resto, a nenhum indivíduo se reconheceria o direito de agir livremente em matéria econômica se não lhe fosse igualmente concedida a faculdade de escolher e de empregar os meios necessários ao exercício deste direito. Além disto, a experiência e a História atestam que, onde os regimes políticos não reconhecem aos particulares a posse mesmo de bens de produção, aí é violado ou completamente destruído o uso da liberdade humana em questões fundamentais. De onde se patenteia, certamente, que a liberdade encontra no direito de propriedade proteção e incentivo" (Encíclica "Mater et Magistra", A. A. S. Vol. LIII, pág. 427).

Por ele se vê a legitimidade e a perenidade do regime de propriedade privada. E se prova, com uma luminosa simplicidade, como a supressão da propriedade privada importa na mais completa tirania.

No próximo artigo, fornecerei ao leitor outras citações.


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