Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

16 de janeiro de 1978

"Irridebit"

 

Era uma vez um povo inteligente e forte, que habitava uma linda região. Tudo lhe facilitaria a existência, rumo a um futuro glorioso, não fossem os séculos incontáveis de barbárie que sobre ele pesavam. Com a barbárie, crenças primitivas e toscas, costumes pagãos, o vício de viver às expensas dos vizinhos, por meio de guerras de rapina.

Era tudo isto por volta do ano 1000. Espantado com a idade que atingira, o mundo civilizado se imaginava velho. E alguns extravagantes pensavam até que ia acabar.

Ora, o mundo — e mais precisamente, o Ocidente — estava nascendo para todas as glórias da civilização que em seguida nele brilhou.

Um pouco por toda parte, homens de valor começavam a conduzir os povos por sendas que iriam ter à prosperidade e à grandeza.

Entre estes homens, muitos santos. Pois os homens de destaque daquele tempo coincidiam na convicção de que, em substância, o mais alto valor de um homem consiste em ser santo. Um guerreiro, um sábio, um monarca ou um papa só dariam toda a sua medida quando sua sabedoria, seu heroísmo, sua capacidade de governar as almas ou as nações fossem levados ao zênite pela inigualável força da propulsão da santidade.

Estamos perto do ano 2000. O mundo se achava então no ano 1000! Como tudo mudou! Onde estão hoje, à testa das grandes atividades humanas, os homens túmidos de seiva cristã que iam soerguendo o mundo no ano 1000?

Mas — objetará alguém — como é maior o progresso do mundo nesta expectativa final do ano 2000!... — Não me detenho nessa fofa e prolixa questão. A respeito dela, quem vê claro não precisa de explicações. E para quem não vê claro, as explicações não adiantam.

Estátua de Santo Estêvão, em Budapest 

De qualquer forma, naquele remoto ano 1000, a Igreja tinha a felicidade de ser governada por um grande papa: Silvestre II. Seus desvelos pastorais — oh, quão autênticos! — cobriam todo o mundo civilizado e perscrutavam o mundo bárbaro, à procura de almas para converter. Assim, divisou ele, no seio daquele povo bárbaro, uma verdadeira flor surgida das noites da barbaria. Era o jovem Duque Estevão, que pedia à Igreja, para si o título de rei, e para sua terra — a Hungria, há pouco convertida — a graça da instituição de uma Hierarquia eclesiástica.

Silvestre II mandou para as margens do Danúbio, com sua paternal aquiescência, uma obra-prima como melhor não a poderia fazer a ourivesaria do tempo. Era uma coroa régia em que, encastoadas no ouro, refulgiam pérolas e pedras preciosas de várias cores. O jovem rei cingiu a coroa com o propósito inflexível de realizar as esperanças do Pontífice. E do ano 1000 até nossos dias, nenhum rei da Hungria foi maior do que ele. A Igreja o canonizou. Fixou-lhe uma festa no seu calendário. E de então para cá, nessa festa, em todo orbe se evola, dos corações dos fiéis, a mesma súplica: "Santo Estêvão, rogai por nós".

Durante esses mil anos, a coroa de Santo Estêvão foi aceita ininterruptamente, pelo povo húngaro, como símbolo da própria soberania do país. Só era acatado como chefe autêntico deste, quem a possuísse.

E isto ficou assim bem exatamente até nossos dias.

Coroa de Santo Estêvão

Tudo isto dito, passemos — ou antes, despenquemos — do panorama de iluminura da Hungria de Santo Estêvão, para o panorama de pesadelo da Hungria de Janos Kadar. Santo Estêvão, sob o augusto e paternal influxo de Silvestre II, de um lado. De outro lado, Janos Kadar, teledirigido por Brejnev. Poderia ser mais vertiginosa a queda?

Os comunistas do mundo inteiro pretendem que, com a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas em fins de 1944, e o estabelecimento do regime comunista ateu no país, o povo foi libertado do jugo de suas estruturas tradicionais. E conheceu, com a verdadeira liberdade — isto é, a do comunismo — a verdadeira luz, isto é, a do ateísmo. De 1945 para cá, o regime comunista húngaro não tem feito senão coarctar a liberdade religiosa, e empregar todas as formas de pressão, psicológicas e policiais, para extirpar do espírito nacional tudo aquilo de que a coroa fora um símbolo.

Entretanto, os fatos provam que o esforço dos dominadores vem sendo de fraco rendimento.

Assim, o governo húngaro manteve enclausurado, por anos, na embaixada dos Estados Unidos em Budapeste, o cardeal Mindszenty, primaz da Hungria. Este prelado velho, isolado, e sobre o qual se fizera, na terra de Santo Estêvão, o mais pesado silêncio, perturbava o sono dos governantes, entretanto apoiados em todo o poderio de seus canhões, de sua censura e de sua polícia. E não repousou tranqüilo enquanto não conseguiu de Paulo VI que utilizasse a Obediência — única força diante da qual o grande cardeal anticomunista se inclinou — para removê-lo da Hungria.

Isso não bastou. O governo comunista conseguiu então, mais uma vez com o apoio da Santa Sé, que todos os bispos húngaros lhe jurassem fidelidade. Era a Hungria de Kadar, ou antes, a pseudo-Hungria de Kadar, a apoiar-se sobre os restos ou as aparências da Hungria de Santo Estêvão, para tentar sobreviver.

O último lance dessa política acaba de jogar-se agora.

Todos sabem que, em vésperas da ascensão do regime comunista na Hungria, húngaros cujos nomes os jornais não publicam, evitaram que caísse sob as garras do invasor o próprio símbolo da legitimidade de todo o poder na Hungria, isto é, a coroa de Santo Estêvão. Foi ela, assim, confiada a um poder terreno, o maior e mais rico que a História conheceu.

Entretanto, continuavam a dormir desassossegados os procônsules de Brejnev em Budapeste. Pois o povo da Hungria se obstinava em não lhes reconhecer o poder a esses adventícios sobre cuja fronte a coroa de Santo Estêvão não brilhava.

Como conseguiriam eles com seus canhonetes, meter medo nos supercanhões americanos, para lhes extorquir a relíquia incomparável?

Não é certo que Brejnev tenha recebido essa consulta. Se a recebeu, é certo que sorriu. E disse: "Ora, os canhões! Haverá coisa mais velha e mais inútil, nesta época de "détente", de "Ostpolitik", de Carter e de Paulo VI? A lábia facilmente obterá deles as concessões que tanto desejam fazer-nos".

E aí estão os fatos. Para ajudar os comunistas húngaros a se manterem no poder, o mais alto potentado da mais poderosa democracia do Ocidente entrega a Kadar a coroa, a relíquia, que fora confiada à nação americana como depósito de honra. Carter manda o secretário de Estado Vance que a entregue, em cerimônia aparatosa, precisamente ao homem que é o contrário do rei evangelizador, ou seja, o déspota materialista.

A tal propósito, um porta-voz do Vaticano emitiu um comentário que vale por um sussurro ambíguo, e talvez ligeiramente envergonhado. Mas para demonstrar a todos os húngaros que a Igreja concordava com a entrega da relíquia ao ditador comunista e ateu, estava presente, ao ato da entrega da coroa o cardeal Leckai, arcebispo de Ezstergom. O sucessor — "horresco referens" — do cardeal Mindszenty.

Ambos — Vance e Leckai — como a bradar aos húngaros, aos olhos de Deus, do mundo e da História: "A Igreja e o Estados Unidos apoiam que vossas cervizes de batizados, e com elas as vossas glórias de povo soberano e cristão, sejam esmagadas pelos comunistas ateus, procônsules de Moscou".

Estamos certos de que incontáveis húngaros, dentro e fora da Hungria, de sua parte replicaram a esse brado, nas lágrimas da indignação: "Santo Estêvão, rogai por nós".

No fundo da alma, incontáveis brasileiros — parte dos quais adormecidos pela apatia que vai invadindo os setores mais sadios da opinião — dizem o mesmo.

Essa súplica não terá subido ao Céu, em vão. Introduzindo a relíquia na Hungria, Kadar criou uma circunstância preciosa para que seja ainda mais ardente a intercessão de Santo Estêvão por seu povo. Com o auxílio inadvertido de Carter e de Paulo VI, entrou na Hungria a coroa-símbolo, a coroa-relíquia, cuja presença poderá talvez atrair para o país legiões de Anjos, e rios de graças, de modo a que o povo húngaro sacuda o jugo sob o qual jaz.

Meu pensamento se volta para os artífices da volta da coroa. E uma frase me vem aos lábios: "Qui habitat in coelis irridebit eos". Deus se rirá deles: di-lo a Escritura (Ps. 2,4).

"Irridebit": é bem a palavra!