Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

A Gaita, a Jandaia e o Realejo

 

 

 

 

 

 

Catolicismo, N° 567 - Abril de 1998 (*)

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Resido e trabalho em Higienópolis [na capital paulista]. São aos milhares os ruídos indesejáveis que neste bairro se propagam de sol a sol. Entre eles distingo, de quando em vez, a gaita arcaica, porém tão caseira, afável e simpática com que anuncia sua presença um afiador de facas. Passo a passo percorre ele as ruas oferecendo os seus préstimos por essa forma sonora, tal qual já o faziam, entre 1920 e 1930, os seus colegas e predecessores no bairro - então nobre e confortavelmente residencial - dos Campos Elíseos.

A tradição é uma força e uma potência. E entre outras maravilhas que opera, está a de impregnar de poesia e de encanto até mesmo o velho som de uma gaita de outrora, que seria menos simpática se não fosse velha e se não trouxesse à memória recordações de antanho. Conservar vida e encanto até mesmo do arcaico, qual a força capaz disto, senão a Tradição?

Os ares da Higienópolis, ao mesmo tempo familiar e um pouco hierática e pomposa daqueles tempos, eram percorridos de quando em vez pelas ondulações musicais partidas de um realejo robusto mas ordinário, que tocava alguma alegre música de Strauss - se não me engano - e com o mesmo espírito vienense, leve e despreocupado desenvolvia os acordes da "Giovinezza". O queixudo Duce tão dramático, por certo faria uma das suas mais amarradas carrancas se ouvisse assim interpretado o seu hino.

Seja como for, ignorando Strauss e totalmente despreocupadas com o Duce, de uma ou outra casa as domésticas do tempo ("as criadas" se dizia numa fórmula menos jurídica e mais familiar) se precipitavam para a rua à procura do homem do realejo. 

 

É que este trazia consigo uma gaiola feia em que mal cabia uma jandaia gordalhona. A jandaia - uma espécie de minipapagaio verde, lento e mudo - era a melhor colaboradora do homem do realejo e a mais firme torcida das criadas. Estava ela adestrada a pegar pelo bico, ao som do realejo e por ordem do dono (um "dono" que dá "ordens" outra coisa que vai morrendo neste mundo, que tem cada vez menos donos e mais gerentes e no qual cada vez menos se obedece a ordens), uns papeluchos dobrados, nos quais o hábil encenador escrevera vaticínios otimistas. Sôfregas, as criadas pagavam uma moeda e em troca recebiam da jandaia o vaticínio que se punham a ler imediatamente. Depois voltavam para casa alegres, levando consigo o sonho da semana: válido até que uma decepção o matasse ou até que viessem de novo com o homem, o realejo e a jandaia, novos vaticínios e novos sonhos.

Ainda hoje, o realejo percorre de vez em quando Higienópolis. Jamais tive tempo de ir à janela para ver se será conduzido pelo mesmo homem, e se na gaiola ainda está a jandaia gordalhona. Provavelmente sim, pelo menos quanto à jandaia. Pois dizem que os papagaios, coitados, vivem mais do que os homens. E - lembro de passagem - é bem certo que não terão depois um Céu para compensá-los das gaiolas e das agruras da vida.

(*) Excertos de artigo escrito pelo Prof Plinio para a "Folha de São Paulo" de 21 de outubro de 1977.


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