Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Guerreiros da Virgem

 

A Réplica da Autenticidade

 

A TFP sem segredos

Capítulo IV

“Lavagem cerebral” e “seita”: palavras-slogans portadoras de grande carga emocional, mas vazias de conteúdo real

1. “Lavagem cerebral”: uma acusação inexplícita, mas habilidosamente insinuada

Embora a expressão “lavagem cerebral” não figura nem no livro Guerreiros da Virgem, nem no resumo que dele publicou “OESP” em 30 de junho, de fato a impressão que o sr. J.A.P. quer criar é a de que seu cérebro foi “lavado” durante os anos que freqüentou a TFP.

Na reportagem de “OESP” de 30 de junho, no  tópico subordinado ao título Meu cérebro foi tomado, a acusação de “lavagem cerebral” se corporifica por inteiro. Numa linguagem altamente emocionada e criadora de suspense, conforme a melhor tradição dos romances policiais, o sr. J.A.P. procura apresentar-se como sendo “dominado” progressivamente por uma força misteriosa que o compele a agir contra a  sua vontade: Os contatos cada vez mais regulares com os membros da organização induziam-me a encarar o mundo de forma repulsiva e, lentamente, a mudar meus hábitos. ... Eu me transformava, todos percebiam, eu percebia; mas era incapaz de reagir, pois meu cérebro, seis meses depois daquela primeira noite, já estava dominado por princípios da TFP. Esses princípios iriam pautar minha vida nos seis anos seguintes, iriam arrancar-me de minha família, iriam consagrar-me escravo da Virgem, iriam tornar-me discípulo e servo do profeta, iriam, enfim, conduzir-me à beira da loucura” (“O Estado de S. Paulo”, 30-6-85).

O autor se apresenta, pois, como “dominado”, coagido a atuar de determinada forma, e incapacitado de “reagir”, por força de “princípios” que ele imagina instilados ou inoculados de fora para dentro, misteriosamente, em seu cérebro, por um processo predominantemente psicológico, em que a lógica seria instrumentalizada para desempenhar um papel secundário. Uma vez instalados nele, tais princípios o compeliam, segundo afirma, a portar-se irresistivelmente de um determinado modo.

Ele aceita, assim, um pressuposto que é também o de todas as teorias de “lavagem cerebral”, como também de “manipulação mental”, de “controle da mente” etc. Isto é, que existem técnicas psicológicas capazes de extirpar da mente humana as convicções que alguém professa, substituindo-as em seguida por convicções da exclusiva escolha do extirpador. Bem como de confiscar inteiramente o livre arbítrio do homem, fazendo deste último um robô totalmente sujeito ao confiscador.

2. O misterioso processo mental a que a TFP teria sujeitado o sr. J.A.P.: conto da carochinha? “show”?

O sr. J.A.P. realça muito, em seu livro, a incapacidade de reagir ao processo de integração na TFP: “Minha vida parecia transcorrer normalmente, embora já pudesse sentir que algo mudava dentro e fora de mim. Sabia que mudava e estava de mãos atadas para impedir que o processo de transformação avançasse e se completasse por inteiro. Pouco a pouco, assimilava com menos resistência as novas idéias, que se refletiam em meu procedimento. Era vulnerável a essas idéias, e meus aliciadores sabiam muito bem explorar meus pontos fracos” (GV p. 17).

Por que se sentia o sr. J.A.P. “de mãos atadas”? Que força misteriosa lhe “dominara o cérebro” e o tornava “incapaz de reagir”? dessa força fala longamente o autor de Guerreiros da Virgem, em termos tais que fica claramente insinuada a existência, nos ambientes da TFP, de algo à maneira de uma “lavagem cerebral”: “Havia uma força no ar, indescritível, impalpável, que impulsionava todos a pensarem do mesmo modo, a usarem os mesmos argumentos, a terem as mesmas reações diante de um fato corriqueiro ou de algum acontecimento espetacular. Havia uma força, disseminada nos ambientes da TFP, que influenciava por osmose os que os freqüentassem. Os símbolos, o mobiliário e a decoração traziam significados que, mesmo que não os percebesse, o espectador, de uma forma ou de outra, com muita ou pouca intensidade, os absorveria inconscientemente” (GV p. 48).

E depois de se perguntar que força era essa, capaz de vencer as resistência, o sr. J.A.P. prossegue: “Não encontrava a resposta. Havia algo demasiadamente forte ao meu redor, que meus sentidos percebiam, mas que minha razão não conseguia discernir, diante do que minha vontade não tinha como reagir. O que justificava que um punhado de jovens trocassem seus sonhos de uma vida confortável e segura pelo comportamento austero, pelo futuro incerto, pelo presente marcado pela incompreensão da sociedade, pelo presente repleto de renúncias contínuas?” (GV p. 48).

Causa estranheza que o sr. J.A.P. “descreva” tão pormenorizadamente essa ação misteriosa, da qual afirma ter sido vítima, mas ao mesmo tempo não tenha procurado para ela alguma explicação científica.

Com efeito, deveria ele temer que um leitor qualquer, posto diante dessa descrição – para cuja veracidade o autor não tem e não pode ter provas – passe adiante, dizendo, com um sorriso cético: “Qual, isto não passa de um conto da carochinha”...

Sendo a objetividade dessa narração indispensável para a força persuasiva do libelo do sr. J.A.P., seria absolutamente do interesse deste procurar, em fonte científica contemporânea, uma afirmação de que essa estranha operação, da qual se diz vítima, é considerada viável pelos especialistas.

Ora, ele disto se exime enigmaticamente. – Por quê?

Várias hipóteses são possíveis. Uma consiste em que a espetacular montagem publicitária obtida pelo sr. J.A.P., para seu  libelo, parecia deixar ver que, tão logo publicado Guerreiros da Virgem, algum especialista em Psiquiatria ou Psicologia Social, de confiança do seu autor, saísse a público, de modo não menos espetacular, proclamando que o fenômeno descrito, porém não qualificado pelo sr. J.A.P. – compreensivelmente, já que não entende de Psiquiatria nem de Psicologia Social – se explica inteiramente à luz da ciência: é uma característica “lavagem cerebral” ou “manipulação mental” etc., etc.

A intervenção de tal especialista, como um verdadeiro Deus ex-machina, seria de belo efeito publicitário.

E tal especialista, o sr. J.A.P. poderia encontrá-lo, em nosso País, na pessoa de algum crédulo e retardado seguidor da teoria da “lavagem cerebral”.

Não há elementos para provar que tal show esteja preparado. Mas se o livro do sr. J.A.P. tivesse sido escrito com intenção de dar azo a esse show, seu texto seria, em suas linhas mestras, precisamente como é.

Em todo caso, essa hipótese abre flanco, por sua vez, a uma objeção que o sr. J.A.P. poderia fazer: se este show estava preparado, por que não foi lançado até o momento?

É uma pergunta explicável. Entretanto, o sr. J.A.P. está, mais do que ninguém, em condições de respondê-la...

Teria ele julgado prudente esperar a publicação desta refutação?

3. “OESP” parece explicitar a acusação que o sr. J.A.P. preferiu deixar apenas insinuada

De qualquer modo, o que se passa na TFP, segundo formula claramente o sr. J.A.P., é um maquiavélico e irresistível processo de domínio cerebral com a conseqüente inoculação de novas idéias e novos comportamentos. O que falta para caracterizar a tão famosa “lavagem cerebral”? – Nada...

Aliás, que era um processo de “lavagem cerebral” o que o sr. J.A.P. pretendeu descrever, lê-se expressamente em “OESP”, na matéria publicada em sua edição de 2 de julho de 1985. Segundo o matutino, o sr. J.A.P. “contou [sic] o ambiente de terror e a lavagem cerebral a que foi submetido”.

Fiel à técnica de exposição já comentada (cfr. Cap. II e Cap. III, 3), o sr. J.A.P. não formula em termos explícitos essa acusação a um tempo impressionante (para o grande público mal informado)  e desacreditada (no mundo científico).

Assim, menos explícito e mais cauteloso do que seus colegas de “OESP”, que depois se incumbiriam de glosar o que ele dissesse, o sr. J.A.P. pareceu desejoso de dar a impressão de que nem sequer percebeu ter sofrido uma “lavagem cerebral”. Ele se limita, singelamente, a narrar fatos que, por coincidência, falam por si. E é o próprio leitor que conclui aquilo que o autor, ingênuo e cândido, parece nem ter percebido:  que se trata de uma “lavagem cerebral” patente, indiscutível.

E assim fica alcançada, através da exposição aparentemente despretensiosa do sr. J.A.P., a meta ferozmente difamatória que ele tinha em vista. Ou seja, denunciar a TFP à opinião pública, como seita malfazeja, destroçadora das inteligências e das vontades dos que a freqüentam e lhe aceitam as doutrinas.

Esse seria o efeito que o depoimento hábil do sr. J.A.P. tentaria produzir sobre o leitor desprevenido e ignorante do que seja “lavagem cerebral”.

Porém, ser hábil não é tão fácil quanto imagina o sr. J.A.P.. Entre as múltiplas cautelas a tomar, quando se executam habilidades dessas, figura – precisamente – a de não deixar ver excesso de habilidade. Pois quando tal excesso se manifesta, transparece o caráter artificial da manobra e, portanto, se revela a inautenticidade de dois predicados indispensáveis para que uma narração alcance crédito: a imparcialidade e a naturalidade.

É precisamente o que acontece com Guerreiros da Virgem. Não há no livro um só fato que não tenha por fim revestir de credibilidade sua acusação contra a TFP. Dir-se-ia que o autor leu algum pocket-book sobre “lavagem cerebral”, e “arranjou” o enredo de modo a encaixar todo o ocorrido no esquema de uma “lavagem cerebral” típica.

Mas sua narração, que visa parecer desprevenida, acaba por parecer encomendada.

Com efeito, seu próprio silêncio sobre “lavagem cerebral” deixa ver o artificial da narração. Esta se parece por demais com uma operação de “lavagem cerebral” (como a descrevem os que nela ainda crêem), o que torna evidente que a conhecia. Por que, então, não formula ele claramente a conclusão a que sua narração procura conduzir? Qual a segunda intenção que se oculta por trás de tanta candura?

4. “Lavagem cerebral”, método pretensamente irresistível para mudar convicções e comportamentos

Para saber se alguém exerce sobre outrem as técnicas de “lavagem cerebral”, cumpre definir previamente o que entendem por tal os que admitem sua possibilidade.

Lavar algo – uma vidraça ou as pedras que revestem uma parede, por exemplo – é exercer sobre esse algo uma ação que retira dele elementos negativos – nos casos exemplificados, o pó e a fuligem – e o deixa limpo. Poder-se-ia falar, analogamente, de uma gaveta que fosse esvaziada e limpa, ficando assim livre o espaço para nela se colocar o que se queira.

A função da parede, da vidraça ou da gaveta é,  pois, meramente passiva, quer quando se tira algo de sobre elas – ou, no caso da gaveta, de dentro dela; quer quando – ainda no caso da gaveta – se lhe põe algo dentro.

Analogamente, “lavar” o cérebro de um homem seria exercer sobre este uma ação pela qual – mediante prolongados maus-tratos, ameaças, subalimentação e trabalho extenuante – o deperecimento físico e o terror deixam a pessoa em estado de inteira passividade intelectual.

Uma vez obtida tal passividade, a vítima já não teria meios de se defender contra novas crenças que lhe queiram incrustar na alma. As convicções que antigamente possuía haveriam sido “lavadas” pela redução de seu espírito à passividade total. Desde que seu torcionário – ao qual se vai submetendo como a guia único e prestigioso – lhe ensine idéias opostas, elas penetrariam em seu cérebro e ali ficariam alojadas, como peças em um mosaico, ou objetos colocados numa gaveta vazia.

Para o êxito dessa operação, o “lavador” de cérebro deve usar, além das técnicas de opressão e pânico já mencionadas, algumas outras. Convém que ele afaste por inteiro o paciente da atmosfera em que vivia anteriormente, que lhe dê outros companheiros, outras atividades, que o circunscreva num ambiente em tudo afim com as idéias que estão sendo “colocadas” e com o novo comportamento que lhe está sendo imposto.

A “lavagem cerebral” poderia lograr dessa forma seus resultados integrais.

E isto – note-se – definidamente sem que a inteligência e a vontade da vítima tenham podido opor a tal processo um obstáculo intransponível.

5. “Lavagem cerebral” e conversão – diferença fundamental

No que o processo assim sumariamente descrito se diferencia da conversão, no sentido corrente do termo, isto é, da ação do entendimento e da vontade pela qual alguém renuncia a convicções religiosas, filosóficas, políticas, artísticas ou outras que tenha possuído, e assume face a qualquer dessas matérias uma posição oposta, seja esta modificação levada a cabo só por ele próprio, seja com a ajuda de outrem? E também à mudança de comportamento – seja individual, seja social – de maneira a que a pessoa passe a reprovar práticas e atitudes que antes aceitava?

Essencialmente – abstração feita da ação primordial da graça – a diferença está em que, na conversão, o convertido é o agente. Outros (progenitores, Sacerdotes, mestres, apóstolos ou ativistas de qualquer natureza) podem exercer sobre ele influência maior ou menor, podem falar à sua razão e impressionar a sua sensibilidade com o intuito de lhe solicitar a vontade para um sentido ou outro, mais profundamente ou menos. Mas o juiz que dá ganho de causa livremente a esta ou aquela escola, a este ou aquele sistema, é sempre e necessariamente a própria pessoa, com a sua inteligência e a sua vontade.

Na “lavagem cerebral”, pelo contrário, a mente humana “lavada” seria mero paciente, entregue totalmente à mercê de um hábil “lavador” de cérebro, sem possibilidade de resistir a ele.

Como se vê, segundo essa versão pseudo-científica, existiria um método capaz de, a não querendas do paciente, inserir neste uma personalidade fabricada de fora. A ação dos agentes inseridores encontraria a resistência da personalidade anterior da vítima, preexistente à “lavagem cerebral”.

Com esse apoio dos inseridores, a personalidade artificial acabaria vencendo a  personalidade natural.

O indivíduo teria então mudado inteiramente de personalidade. A bem dizer já não seria o mesmo. Teria sido vitoriosamente concluído o processo da “lavagem cerebral”.

A antiga e venerável metáfora de São Paulo sobre o “homem velho” que luta no íntimo da alma com o “homem novo” tem, com o fenômeno descrito segundo esta última concepção, uma analogia toda ocasional, e de mera superfície. Na realidade, uma está nos antípodas da outra [1].

Com efeito, na concepção católica, da qual os textos justificativos abundam no Antigo e no Novo Testamento, tanto a tendência para o bem quanto para o  mal estão invisceradas no homem. Toca a este, no uso do seu livre arbítrio, dar ganho de causa a uma ou outra solicitação, por uma decisão personalíssima que se passa no recôndito da alma.

A ação sobrenatural da graça reforça no homem a tendência ao bem. E assim o “homem novo” vence, no católico fiel à graça. A ação preternatural do demônio, por sua vez, pode reforçar a tendência ao mal. Se esta prevalecer, terá vencido o “homem velho”. Mas, em qualquer caso, uma ou outra ação – sobrenatural ou preternatural – solicita, mas não força a vontade do homem, o qual sempre conserva o livre arbítrio.

Segundo a concepção da “lavagem cerebral”, pelo contrário, os dois “homens” em oposição no interior do paciente de nenhum modo são relacionados com Deus, a graça, o demônio e a tentação. O panorama é totalmente naturalista. E nem sequer é mencionado o livre arbítrio humano.

Ademais, sempre segundo a teoria da “lavagem cerebral”, os fatores dessa luta não são Deus, o homem e o demônio, a natureza e a graça, mas os técnicos da “lavagem cerebral” e a mentalidade natural anterior. As reações desta última parecem ser meramente instintivas. Talvez como as de um organismo animal sujeito a um tratamento veterinário. E, ao que parece, pelo menos no caso da “lavagem cerebral”, o “tratamento” sempre prevaleceria sobre o “animal”, isto é, o paciente cujo cérebro está sendo “lavado”.

Por fim, e em conseqüência, a nova concepção resultante dessa “lavagem cerebral” teria todas as condições de estabilidade no cérebro lavado. E ela poderia ficar metida para todo o sempre no paciente, sem que, nesta prodigiosa substituição, tivesse entrado em algo o livre arbítrio. Para não falar da inteligência, cujo papel é pelo menos nebuloso, na hipótese folhetinesca da “lavagem cerebral”.

Ora, essa operação mediante a qual um ser humano ficaria privado inteiramente de seu livre arbítrio, e incapaz de resistir a uma ação externa que vise mudar suas idéias e seu comportamento, não corresponde a nenhuma realidade. É um mito.

6. Metáfora expressiva que correu o mundo

A expressão “lavagem cerebral” nasceu em 1950, quando o jornalista norte-americano Edward Hunter Jr. descreveu, para os leitores do “The Miami Daily News” e do “The Leader Magazine”, um  método que os comunistas chineses estariam utilizando para obter espetaculares “conversões” à sua ideologia, de adversários ferrenhos dela, especialmente missionários católicos e opositores políticos do regime.

Traduzindo livremente uma expressão chinesa, o jornalista cunhou, para designá-lo, a locução “lavagem cerebral” (“brainwashing”), de inegável valor expressivo.

Essa metáfora – pois se trata de uma simples metáfora, e nada mais do que isso – estava destinada a ter grande sucesso. Durante alguns anos esteve ela muito em voga. E foi largamente utilizada na imprensa de todo o Ocidente, para explicar confissões de culpas feitas, perante tribunais comunistas, até por prisioneiros de grande valor pessoal, como o falecido Cardeal Josef Mindszenty.

Com o fim da Guerra Fria, em princípios dos anos 60, a expressão foi pouco a pouco saindo de moda, e acabou por desaparecer quase completamente do noticiário.

Porém, em meados da década de 70, haveria ela de voltar às luzes da ribalta, já agora figurando em contexto completamente diverso.

A “lavagem cerebral” passou então a ser utilizada para explicar mudanças repentinas de idéias e de comportamento, que levavam pessoas sem fé, ou tíbias em matéria de religião, à crença em Deus e uma surpreendente intensificação da prática religiosa.

Bem entendido, tudo que se diz aqui de convicções religiosas se aplica também a convicções sobre matérias filosóficas, políticas, sócio-econômicas etc.

Segundo este new-look da “lavagem cerebral”, esta não era mais empregada por governos comunistas, e sim por organizações ou grupos de fins religiosos, como também de fins políticos – não raramente de orientação direitista ou conservadora, note-se. E as vítimas não mais seriam prisioneiros, mas indivíduos – o mais das vezes jovens – aliciados por essas organizações ou grupos, e em seguida tornados vítimas de hábeis manipuladores. Em um regime de maior ou menor isolamento, sob coação física ou moral, tais vítimas teriam inteiramente “lavados” os seus cérebros.

Assim, por uma rotação digna de nota, a metáfora que fora utilizada nos anos 50 para designar uma técnica dos comunistas, passava, vinte anos depois, a ser utilizada insistentemente por setores de esquerda para hostilizar e difamar seus adversários de direita.

7. A proliferação das “seitas” e o relançamento da metáfora

Há que considerar, a respeito, a notável proliferação, nos últimos dez ou quinze anos, de organizações religiosas extravagantes que, em diversos países, mas muito notadamente nos Estados Unidos, vêm pregando mitos e modos de ser exóticos, que destoam fortemente dos hábitos e costumes atuais.

Algumas dessas organizações, geralmente designadas como “seitas” – vocábulo com conotação pejorativa evidente – têm por vezes causado crimes hediondos, que impressionaram fortemente a opinião pública, e nela provocaram justa indignação.

Mas outras não conduzem necessariamente a crimes de nenhuma espécie, nem a qualquer ilegalidade. São tão-somente a expressão de sistemas filosóficos ou religiosos novos, que um católico não pode deixar de censurar com severidade, mas que, do ponto de vista da laicidade dos Estados modernos,  e da liberdade religiosa por estes garantida nas respectivas Constituições (até mesmo, pro forma, nos países comunistas), não há como considerá-las ilegais.

A expansão dessas seitas provocou, como era natural, uma reação também forte e influente – o denominado movimento anti-seitas – que contribuiu em larga medida para o relançamento da expressão “lavagem cerebral”.

Com efeito, numerosos eram os que custavam a compreender – nesta época de conformismo – a adesão de tantas pessoas a idéias e modos de ser tão chocantemente diversos dos aceitos pela maioria de seus contemporâneos. Estar-se-ia então em presença de algo enigmático e novo, como seria uma “lavagem cerebral”. Tal era a visualização que levava muitos a serem ardorosos militantes do movimento anti-seitas.

Nasceu daí a correlação íntima dos dois termos – seita e lavagem cerebral – ambos poderosamente impregnados de carga emocional, ao mesmo tempo que indefinidos em suas conceituação, e de contornos pouco claros.

No Canadá, uma Comissão de alto nível, presidida pelo sociólogo Daniel G. Hill, foi encarregada pelo governo da Província de Ontário, em 1978, de estudar o fenômeno das “seitas” e a “lavagem cerebral” a estas atribuída. Fez parte da Comissão o Dr. Saul V. Levine, professor de Psiquiatria na Universidade de Toronto e conhecido estudioso de problemas de adolescentes, como também de movimentos religiosos.

Após 18 meses de trabalhos, a Comissão apresentou seu relatório ao governo de Toronto. Entre as conclusões a que ela chegou se destaca a seguinte: Nenhuma das fontes que o presente estudo consultou, incluindo muitos psiquiatras, pôde definir em termos legislativos funcionais conceitos como lavagem cerebral ou coerção mental. Nenhuma fonte pôde oferecer meios de distinguir entre aqueles que usam técnicas de desenvolvimento mental e similares, de modo qualificado, e aqueles que as usam de modo não-qualificado. ... Tampouco puderam – e pela mesma razão – definir o que é um culto, uma seita ou uma nova religião, para efeitos legislativos e em termos que satisfaçam os ditames da justiça(DANIEL G. HILL, Study of Mind Development Groups, Sects and Cults in Ontario / A Report to the Ontario Government, 1980, pp. 588 a 590).

Com efeito, numa perspectiva laicista, como definir seita? Na opinião de muitos, é o grupo que consegue adeptos através de “lavagem cerebral”. E que é “lavagem cerebral”? Responderão as mesmas pessoas: é o método que utilizam as seitas para conseguir adeptos...

Tal círculo vicioso burlesco não está, infelizmente, longe de ser raro, sobretudo se se analisam as críticas subjacentes em muitas ofensivas do movimento anti-seita.

Daí decorre que na atual investida contra as seitas – e é de notar que junto com estas são postos de cambulhada organizações ou movimentos oficial e por fezes até enfaticamente reconhecidos como católicos pela Igreja [2] - a metáfora da “lavagem cerebral” vem desempenhando papel de singular importância.

Ela é mesmo a principal arma de ataque do movimento anti-seitas que, por meio dela, tem por vezes obtido de tribunais licença para reduzir temporariamente à incapacidade civil maiores de idade adeptos das seitas, supostamente vítimas de “lavagem cerebral”, com o fito de os submeter a “tratamento” e os fazer retornar assim à “normalidade”.

Tal tratamento constitui a chamada “desprogramação”. Esta tem por pressuposto óbvio que os adeptos das seitas foram “programados” à maneira de um computador, pelos “lavadores” de seus cérebros.

Em documentada monografia recentemente divulgada no Brasil pela revista de cultura “Catolicismo”, sob o título “Lavagem cerebral” – um mito a serviço da nova “Inquisição terapêutica” (no 409, janeiro de 1985), uma Comissão de Estudos da TFP norte-americana mostra que por trás da ofensiva anti-seitas se ergue, nas fímbrias do horizonte, qual novo Adamastor, um terrível espectro: o de uma ditadura de cunho psiquiátrico.

8. Seitas: mero caso patológico, ou problema muito mais profundo?

Para um católico, a palavra seita tem um significado muito claro. No seu sentido teológico, ela pode ser definida como “um grupo de alguns homens que se desligaram da Igreja universal com a intenção de defender obstinadamente a excelência de alguns dos princípios que lhes são próprios e de os professar abertamente” (J. CARROL, verbete Secta, in Dictionarium Morale et Canonicum, publicado sob a direção de Mons. Pietro Palazzini, Officium Libri Catholici, Romae, 1968, p. 252).

Esse significado de seita – importa notar – encontra fundamento na certeza da Fé, de que a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, é a única Mestra e Guardiã da verdade revelada.

Um relativista, que ponto de referência doutrinário tem para conceituar uma seita? Nenhum. Para quem não admite a existência de verdades filosóficas ou teológicas absolutas, a noção de seita não pode corresponder a nenhuma realidade definível em termos doutrinários, uma vez que toda escola ou corrente de pensamento se cinge a um conjunto de opiniões tão defensáveis quanto quaisquer outras.

Para um relativista o termo “seita” é, portanto, tão-só um rótulo pejorativo, um insulto que ele afixa nos movimentos religiosos ou filosóficos que não lhe caem no goto...

A explicação dessa rotulação arbitrária – freqüentemente motivada por antipatias de fundo ideológico – é buscada, então, na Psiquiatria e na Psicologia. E todo o complexo problema das seitas, com suas matizadas implicações teológicas, filosóficas, sociológicas, fica reduzido dessa forma a um simples tema de patologia.

O mencionado estudo da TFP norte-americana observa judiciosamente que se fica assim diante de um arremedo de “Inquisição”, o qual se arroga o direito de emitir juízos e fulminar condenações, com critérios flutuantes e meramente subjetivos, em nome de uma suposta normalidade mental.

Certo seria aquilo que os médicos e psicólogos (os de certa orientação, já se vê) considerarem sadio; e errado, “herético” e digno de repressão seria aquilo que eles diagnosticarem como doentio, malfazejo para a sanidade mental etc. E o espectro de uma ditadura psiquiátrica se ergue desse modo no horizonte, num horizonte quiçá não muito distante.

9. “Lavagem cerebral”, mito que nega a existência do livre arbítrio

A doutrina que constitui o pressuposto filosófico de todas as teorias de “lavagem cerebral” é precisamente o determinismo, que nega o livro arbítrio do homem. Segundo esta concepção, o homem, manipulado por um fator externo que lhe atue direta e irresistivelmente sobre a inteligência e a vontade, não tem condições de, livremente, preservar sua inteligência e sua vontade dessa ação maléfica.

De acordo com a doutrina católica, pelo contrário, o homem é uma criatura racional dotada de livre arbítrio. Ou seja, dispõe ele da capacidade de discernir a verdade do erro, de optar pelo bem ou pelo mal. É este o ensino invariável da Igreja, que São Tomás de Aquino exprime nos seguintes termos:

“Diz a Exritura: ‘Deus criou o homem desde o princípio e deixou-o na mão de seu conselho’ (Eccli. XV, 14). Isto é, conforme a Glosa, ‘na liberdade do arbítrio’.

“O homem tem livre arbítrio; do contrário seriam inúteis os conselhos, as exortações, os preceitos, as proibições, os prêmios e as penas. E isto se evidencia considerando que certos seres agem sem discernimento; como a pedra que cai e, semelhantemente, todos os seres sem conhecimento. Outros, porém, agem com discernimento, mas não livre, como os brutos. Assim, a ovelha, vendo o lobo, discerne que deve fugir, por discernimento natural, mas não livre, porque esse discernimento não provém da reflexão, mas do instinto natural. E o mesmo se dá com qualquer discernimento dos brutos. – O homem, porém, age com discernimento; pois, pela virtude cognoscitiva, discerne que deve evitar ou buscar alguma coisa. Mas esse discernimento, capaz de visar diversas possibilidades, não provém do instinto natural. Pois  a razão, relativamente às coisas contingentes, pode decidir entre dois termos opostos, como se vê nos silogismos dialéticos e nas persuasões retóricas. Ora, os atos particulares são contingentes e, portanto, em relação a eles, o juízo da razão tem de se avir com termos opostos e não fica determinado a um só. E, portanto, é forçoso que o homem tenha livre arbítrio, pelo fato mesmo de ser racional” (Suma Teológica, I, 1. 83, a. 1).

É tão profundo e tão entranhado na natureza humana o livre arbítrio que, segundo a doutrina católica, a vontade de um homem não é direta e imediatamente acessível à ação de um agente estranho, seja ele outro homem, seja mesmo um anjo. Diretamente sobre a alma do homem, só Deus pode agir.

É o que mais uma vez explana São Tomás, com a clareza costumeira, ao responder negativamente à pergunta de se os anjos poderiam mover a vontade humana: “A vontade – diz o Doutor Angélico – pode ser imutada de dois modos. – Interiormente; e então, como o seu movimento não é senão a inclinação para a coisa querida, só Deus, que dá à natureza intelectual a virtude para tal inclinação, pode imutá-la. Pois assim como  a inclinação natural procede de quem dá a natureza, assim a inclinação da vontade só pode proceder de Deus, que causa a vontade. – De outro modo, a vontade é movida pelo exterior. E isto, no anjo, se dá de uma só maneira, a saber, pelo bem apreendido pelo intelecto. Por onde, a causa de ser alguma coisa apreendida como bem desejado, move a vontade. De modo que só Deus pode mover eficazmente a vontade: o anjo, porém, e o homem podem movê-la persuadindo-a, como antes se disse. - Mas além deste modo, também a vontade do homem é movida pelo exterior, e isso pela paixão referente ao apetite sensitivo; assim, pela concupiscência ou pela ira a vontade é inclinada a querer um certo objeto. E então, também os anjos, na medida em que podem provocar essas paixões, podem movê-la; não porém necessariamente, porque a vontade sempre fica livre de consentir na paixão ou lhe resistir” (Suma Teológica, I, q. III, a. 2).

É, portanto, impossível alguém exercer sobre outrem uma ação irresistível, que lhe modifique, contra a própria vontade, o pensamento e o comportamento.

10. “Lavagem cerebral”, slogan publicitário que nenhum cientista de alto nível toma a sério

A esta conclusão, tão límpida do ponto de vista da teologia católica e da sã filosofia, também chegaram, pesquisando no campo próprio de sua especialidade, modernos psiquiatras, psicólogos e sociólogos de repercussão mundial.

Usada inicialmente por jornalistas, de maneira desinformada e sensacionalista, a expressão “lavagem cerebral” generalizou-se a ponto de haver quem tachasse de tal até a propaganda comercial, o processo de aprendizado nas escolas e os programas de aperfeiçoamento de funcionários nas empresas... É o que observa judiciosamente a referida monografia da Comissão de Estudos da TFP norte-americana, “Lavagem cerebral” – um mito a serviço da nova “Inquisição terapêutica”, alicerçada em 38 especialistas de fama mundial nos campos da Psicologia, Psiquiatria, Sociologia e outras ciências sociais.

Assim, por exemplo, a psicóloga social Trudy Solomon, da National Science Foundation, mostra que se abusou do conceito de “lavagem cerebral” utilizando-o “para designar praticamente qualquer forma de influência humana” (TRUDY SOLOMON, Programming and Deprogramming the Moonies: Social Psychology Applied, in DAVID G. BROMLEY and JAMES T. RICHARDSON [ed.], The Brainwashing / Deprogramming Controversy, The Edwin Mellen Press, New York-Toronto, 1983, p. 166).

Segundo a mesma especialista, “a lavagem cerebral era vista como um dispositivo e todo-poderoso, um método irresistível e mágico para obter o controle total da mente humana. ... Na realidade, o intenso uso e o abuso do conceito praticamente o esvaziaram de qualquer valor” (op. cit., ib.).

Papel destacado no esvaziamento do mito coube – sempre segundo o estudo da TFP norte-americana – aos psiquiatras Drs. Lawrence E. Hinkle Jr. e Harold G. Wolff, consultores do Departamento de Defesa do Governo dos Estados Unidos.

Elaboraram eles em 1956 um importante relatório sobre os métodos de interrogação e doutrinação utilizados pelas Polícias Políticas dos países comunistas. Dentro do maior rigor científico, concluíram que a “lavagem cerebral” dos comunistas não tinha nada de novo nem de misterioso, não era irresistível, nem tampouco apresentava qualquer fundamentação científica. Além do mais, era de pequena eficácia, quer quanto ao número de vítimas realmente modificadas por ela, quer quanto à duração de seus efeitos nessas mesmas vítimas. Em suma, não passava de aplicação, de forma talvez mais requintada, certamente mais brutal, de métodos policiais correntes, elaborados empiricamente.

Essas conclusões desmitificavam a versão, então muito corrente no grande público, de que  a “lavagem cerebral” seria um método infalível de produzir “zumbis”, de transformar seres racionais em autômatos incapazes de pensar.

Logo depois de Hinkle e Wolff, outros dois cientistas americanos – o psiquiatra Dr. Edgard Schein e o cientista social Albert D. Biderman, consultor da Força Aérea dos Estados Unidos – pesquisando cada qual por si, chegaram a análogas conclusões.

O Dr. Thomas Szaz, do Upstate Medical Center, da Universidade de Nova York, autor de numerosos livros e líder de uma corrente psiquiátrica, é incisivo e irônico em suas declarações.

“Que é ‘lavagem cerebral’? Existem, como o termo sugere, dois tipos de cérebros, os lavados e os não lavados? Como saber qual é um e qual é o outro? De fato, é muito simples.

“Como muitos outros termos dramáticos, ‘lavagem de cérebro’ é uma metáfora. Uma pessoa não pode lavar o cérebro de outra por meio da coerção ou da conversa, do mesmo modo que não pode fazer alguém sangrar com uma observação cortante. Se não existe a lavagem cerebral, o que quer dizer a metáfora? Serve para designar a mais universal das experiências e dos atos humanos, a saber, a influência de uma pessoa sobre a outra. Contudo, não chamamos lavagem cerebral a todos os tipos de influência pessoal ou psicológica. Reservamos o termo para as influências que desaprovamos” (RICHARD E. VATZ & LEE S. WEINBERGER [ed.], Thomas Szasz primary values and major contentions, Prometheus Books, New York, 1983, p. 135).

O psiquiatra britânico James A. C. Brown, ex-diretor do Instituto de Psiquiatria Social de Londres, é autor de conceituado livro sobre as modernas técnicas de persuasão, no qual estuda detidamente a “lavagem cerebral”, confrontando-a com as referidas técnicas (Techniques of Persuasion – From Propaganda to Brainwashing, Penguin Books, Middlesex, England, 1979). Ele também é categórico em suas afirmações:

“A noção de que a percepção subliminar, a lavagem cerebral ou qualquer outro artifício possa produzir na mente humana e de modo permanente, uma idéia completamente estranha a esta, e assim influenciar o comportamento, deve ser repelida como absurda” (op. cit., p. 221).

“Toda a falácia sobre a lavagem cerebral (se por isto se entende que uma ideologia possa ser implantada de modo permanente na mente de uma pessoa, independentemente de suas crenças primitivas e das circunstâncias exteriores) é uma noção estranha, implícita no livro de Sargant, ‘Battle for the Mind’, de que uma idéia é uma ‘coisa’ localizada no cérebro, que pode ser implantada ou retirada à vontade” (op. cit., p. 253).

“A violência direta ou a ameaça de violência podem produzir a submissão à vontade de outro indivíduo ou grupo; mas os pensamentos são criados e modificados sobretudo pela palavra, falada ou escrita. Assim, embora na chamada ‘lavagem cerebral’ as palavras possam ser complementadas por um tratamento físico constrangedor, e na publicidade comercial por música ou imagens agradáveis, é evidente que mesmo nesses casos as armas essenciais são verbais, ou, de qualquer modo, simbólicas, e os resultados procurados são de ordem psicológica. De maneira geral, e com poucas exceções, transformações psicológicas exigem técnicas psicológicas, e é principalmente com essas influências, antes que com a obediência externa acarretada pelo emprego exclusivo da força, que nos preocuparemos neste livro” (op. cit., p. 9).

Com efeito, por ser o homem uma criatura racional, é impossível mudar-lhe as convicções sem se dirigir à sua razão. É o que comenta C. A. Mace, no prefácio do citado livro do Dr. Brown: “O homem tem uma capacidade para raciocinar e ser influenciado pela razão, que um tigre faminto, por exemplo, não possui. É interessante e significativo o fato de que os propagandistas religiosos e políticos, bem como os agentes de publicidade, se esforcem tanto para conceber argumentos (capciosos) dirigidos à razão do homem. Estes argumentos constituem um testemunho involuntário da racionalidade do homem(op. cit., p. 7).

Ora, essa racionalidade do homem é negada por quem afirma ser possível, prescindindo de qualquer argumentação racional, “remodelar coercitivamente a visão política de um indivíduo a fim de que abandone suas crenças anteriores”,  e levá-lo a “aceitar como verdadeiro o que ele previamene aceitava como falso e a considerar falso o que antes via como verdadeiro”, o que constitui, segundo o cientista social norte-americano Albert Somit, o objetivo visado pela “lavagem cerebral” (cfr. ALBERT SOMIT, verbete Brainwashing, in International Encyclopedia of the Social Sciences, The McMillan Co. & The Freee Press, 1968, vol. 2,p. 138).

11. A teoria da “lavagem cerebral”, uma ameaça para a própria instituição do Direito

Em meados da década de 70, um caso mundialmente comentado permitiu que o assunto “lavagem cerebral” passasse para o campo dos tribunais civis, voltando à baila nos meios de comunicação social e provocando polêmica entre os especialistas.

Patricia Hearst, jovem herdeira de uma poderosa cadeia de jornais, foi seqüestrada em 1974 por um grupo terrorista. Aderindo à ideologia de seus captores, tornou-se uma perigosa guerrilheira urbana, e chegou a participar de ações armadas. Presa afinal pela Polícia, foi levada a julgamento em princípios de 1976.

A defesa, apoiada pela rede de jornais da família Hearst, procurou explorar ao máximo a tese da “lavagem cerebral”. Sustentava o advogado F. Lee Bailey, defensor de Patricia, com base em psiquiatras contratados pela família da moça, que esta agira inconscientemente, pois seu cérebro fora “lavado”. Pelo que não podia ser condenada.

Por trás desse processo, o que estava em jogo era todo o edifício do Direito. Foi o que ponderou, com todo o propósito, o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Sanford Kadish, em declarações à revista “News-week”  (What is brainwashing?, 1º-3-76, p. 31): “[Essa hipótese] abre as portas para abusos e ameaça os fundamentos do Direito, na medida em que este se baseia no livre arbítrio e na responsabilidade”.

Também o Dr. Walter Reich, professor de psiquiatria, Diretor do Programa de Educação e Treinamento Psiquiátrico no prestigioso National Institute of Mental Health, de Washington, e Diretor do Programa de Ciências Médicas e Biológicas na Washington School of Psychiatrics, apontou o perigo de psiquiatras se apresentarem como “peritos” em “lavagem cerebral” no decorrer de processos judiciários, uma vez que não há estudos científicos e formas de comprovação suficientes para habilitar tais perícias. A propósito dessa incursão em campo tão contestado, alertava o Dr. Reich: “Duas importantes instituições estão ameaçadas: o Direito, que terá de rever seus fundamentos filosóficos, e a Psiquiatria forense, que poderá perder a credibilidade tão penosamente conquistada. ... O direito criminal se baseia no pressuposto da responsabilidade pessoal de cada um sobre seu comportamento; e isto, por sua vez, se baseia na presunção do livre arbítrio. ... A idéia de que os seres humanos têm uma vontade que governa livremente seu comportamento, parece ser essencial para o funcionamento do Direito criminal. Sem este conceito seria impossível sustentar a responsabilidade pessoal e, portanto, também a sociedade. Se o livre arbítrio fosse um mito, então aquilo que sustenta e protege a sociedade seria um mito” (WALTER REICH, Brainwashing, Psychiatry, and the Law, “Psychiatry”, vol. 39, novembro de 1976, no. 4, pp. 400 a 403).

Essa nota do conhecido psiquiatra teve grande repercussão, sendo freqüentemente citada pelos autores que tratam do tema da “lavagem cerebral”, quer do ponto de vista jurídico, quer do sociológico ou do psicológico.

No caso de Patricia Hearst, prevaleceu o bom senso, e ela foi condenada, pelo Tribunal do Júri, a sete anos de reclusão.

12. “Manipulação do subconsciente”, outro conceito vazio de conteúdo científico

Se, no rigor de uma análise científica, “lavagem cerebral” não existe, não se poderia talvez falar de algum outro tipo mais capcioso de “controle da mente” que, sem chegar aos extremos de brutalidade que caracterizam a primeira, inibissem o exercício do livre arbítrio humano, de modo que a mente fosse efetivamente dominada por ação de agentes externos?

A. Um conceito intimamente conexo com o de “lavagem cerebral”

Em Guerreiros da Virgem assevera o sr. J.A.P. que, “embora manipulado e numa idade em que não era responsável por meus atos, entrei [na TFP] porque queria entrar” (GV p. 200).

Diga-se de passagem que a declaração é espantosa no Brasil, onde os adolescentes habitualmente se destacam pela precocidade.

Não era responsável por meus atos”: tal afirmação, genérica  e sem matizes, importa em declarar que a irresponsabilidade dele era irrestrita, abrangia todos os atos.

É claro que aos 15 anos – idade em que o sr. J.A.P. ingressou na TFP – o adolescente não dispõe de toda a responsabilidade do homem maduro. Mas para várias coisas já pode ter uma definida e incontestável responsabilidade própria [3]. Como a de se filiar por sua iniciativa – suposto consentimento paterno – em uma sociedade de fins ideológicos como a TFP. Aliás, transposto o limiar não tão distante, por onde se passa dos 17 para os 18 anos, o jovem já pode ser eleitor, ingressando livremente em partidos políticos, participando assim da vida pública. E ademais pode ser emancipado por seus pais, adquirindo conseqüência os direitos da maioridade legal.

Tudo isso faz ver até que ponto o sr. J.A.P. se engana, julgando-se um adolescente ou jovem típico no Brasil.

Diz ele que foi “manipulado”. Manipulado no quê? Como? Por quem?

Fica obviamente insinuada uma terrível operação que a TFP teria executado em seu interior, servindo-se de recursos fraudulentos e maquiavélicos: algo do gênero de uma “lavagem cerebral”.

Essa impressão torna-se mais clara em outro texto do sr. J.A.P., extraído já não do seu livro, mas do depoimento que prestou a “OESP” de 30 de junho:

“Minha adesão à TFP exigiu – como à maioria de seus membros – um longo processo. A partir da primeira abordagem – na rua, escola ou igreja -, éramos submetidos a um tratamento científico. ...

Deixei-me manipular, muitas vezes conscientemente, muitas vezes não”.

E “OESP” de 13 de agosto, ao noticiar o lançamento em São Paulo de Guerreiros da Virgem, é ainda mais explícito: “Na obra, Pedriali descreve desde as técnicas de aliciamento a que foi submetido, até os conflitos que teve de superar para deixar a organização, com sua gradual reintegração à sociedade. Ele detalha, por exemplo, a aplicação científica do aliciamento de adolescentes, da manipulação do subconsciente, da observação constante e dos tratamentos de choque”.

É curioso que o articulista de “OESP” empregue a expressão “manipulação do subconsciente” e não “manipulação mental” (“mind manipulation”), usual entre os especialistas.

Mera coincidência?

O fato é que, a ter algum sentido, a expressão “manipulação do subconsciente” se relaciona de perto com a de “lavagem cerebral”. E é, como se verá, tão inconsistente e tão vazia como ela.

É justamente do desgaste da expressão “lavagem cerebral” que se originaram expressões mais ou menos equivalentes, todas vagas e pouco definidas, como “manipulação mental”, “controle da mente”, “reforma do pensamento”, “persuasão coercitiva” etc.

Todas estas sugerem que, com meios muito menos drásticos do que os utilizados na apregoada “lavagem cerebral” (a qual comportaria prisão, espancamento, torturas físicas e morais, administração de drogas etc.), se conseguiria chegar ao  mesmo pretenso resultado, ou seja, a violação e o confisco do pensamento e da vontade do homem.

B. Manipulação: palavra que quer dizer tudo e não quer dizer nada

Que significa propriamente “manipulação”?

Segundo os dicionários correntes da língua portuguesa significa, entre outras coisas, preparar com a mão, imprimir forma a alguma coisa com a mão. Mas não mencionam eles aplicações necessariamente pejorativas. O Dictionnaire du Français Contemporain (Larousse, Paris, 1966), inclui dos sentidos pejorativos: transformar por operações suspeitas (por exemplo, manipular estatísticas) e realizar manobra que vise enganar, fraudar (por exemplo, manipulações eleitorais).

Nestes sentidos, já entrou também para o português corrente. Diz-se, por exemplo, que um órgão de imprensa manipula as notícias antes de apresentá-las ao público. Isto é, “arranja” os dados de tal forma que a notícia saia de acordo com os pressupostos ideológicos ou a linha política do jornal. Acusa-se um governo de manipular os índices de inflação, a propaganda comercial de manipular os consumidores, criando neles necessidades artificiais ou impingindo-lhes produtos de segunda categoria como sendo os melhores etc.

Outro dicionário francês moderno, o Petit Robert (PAUL ROBERT, Dictionnaire Alphabétique Analogique de la Langue Française, Société du Nouveau Littré, Paris, 1979) já registra em manipulation o significado de “domínio [emprise]  oculto exercido sobre um grupo (ou um indivíduo)”.

E é manifestamente neste sentido que o utiliza “OESP”, bem como seu redator sr. J.A.P. em relação à TFP.

Assim, a palavra “manipulação”, de uns tempos a esta parte, veio tomando aos poucos um sentido “talismânico” (cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1974, 5ª ed., pp. 49 a 59). E passou a ter um significado cada vez mais amplo e indefinido, que lhe é conferido sobretudo por hábeis formas de utilizá-la. Poder-se-ia dizer que essa mesma palavra vem sendo cada vez mais “manipulada” em sua significação...

Ela pode significar tudo e ao mesmo tempo nada. Quando utilizada de modo a criar suspense e mistério, se transforma numa terrível “arma semântica”. Difama e pode tornar suspeita qualquer pessoa ou grupo contra o qual seja lançada, à maneira de uma acusação evidente que dispensa provas.

Provas, para quê? – Tal como acontece com outras palavras de efeito “talismânico”, basta dizer que tal ou tal atitude é manipuladora, para que muitas pessoas – com base apenas em sensações inexplícitas que adquiriram não sabem como nem onde, e impressionadas pela carga emocional que acompanha o uso da palavra – julguem que de fato a acusação está demonstrada sem necessidade de provas.

O que fica freqüentemente insinuado, na utilização talismânica da palavra, é que manipulação envolve um tipo de influência maléfica e coercitiva sobre as pessoas. Maléfica porque oculta e inadvertida, visando tão-só atender a algum interesse inconfessado do manipulador. E coercitiva porque subjuga a vontade das vítimas que, o mais das vezes, nem teriam recursos para se defender contra tal forma de influência soez.

Em outros termos, manipulação seria uma forma de “coerção mental” muito análoga a “lavagem cerebral”.

Não deixa de ser desconcertante, por sinal, que em certos órgãos de comunicação social se fale tanto em manipulação, nesta época de domínio tirânico da televisão. Tal meio de influenciar penetra livremente em todos os lares, e induz crianças e adultos, por vezes nações inteiras, sem que o percebam claramente (mas não sem darem seu consentimento, ao menos remoto, pois é voluntariamente que se expõem a tal influência), a modificarem radicalmente este ou aquele costume e, mesmo, sua própria psicologia. A tal ponto chega, em muitos casos, esta dependência da televisão, que seu efeito foi comparado ao de uma droga (cfr. MARIE WINN, The Plug-in-Drug, Bantam Books, Nova York, 2ª impressão, 1978, 258 pp.). Tudo isto – é de notar – sem protesto global e eficaz da grande maioria dos responsáveis. Com que lógica, pois, temer tanto a manipulação e os manipuladores?

C. É um erro imaginar o homem como mero receptor passivo das influências de seu ambiente

Assim como a idéia de “lavagem cerebral” parte de um falso pressuposto – a negação da liberdade natural e “inconfiscável” da inteligência e da vontade do homem – também os que utilizam expressões correlatas, tais como “manipulação mental”, “controle da mente”, “persuasão coercitiva” etc. partem de erro análogo.

Com efeito, negam eles algo de si evidente. Ou seja, que toda pessoa está, em relação a  seu ambiente, num processo cognoscitivo e volitivo de interação. Todos influenciam a todos. Mas a todos é dado, se quiserem, conhecer e rejeitar as ações que recebem. E, portanto, não se pode imaginar uma influência como que mecânica e irresistível em sentido único, como se o homem pudesse ser reduzido duravelmente a mero receptor passivo de informações, influências e pressões.

É o que explica a já citada psicóloga social Trudy Solomon, da National Science Foundation, de Washington. Após destacar que conceitos como “controle mental”, “reforma de pensamento”, “persuasão coercitiva” etc. não passam de reencarnações da desprestigiada expressão “lavagem cerebral”, mostra ela que praticamente toda forma de influência humana pode ser abrangida por tais designações:

“Pouco depois de sua introdução – diz ela – o conceito de lavagem cerebral era aplicado a uma variedade de contextos, incluindo técnicas de doutrinação ... e a fenômenos do passado como a Inquisição e certos processos de bruxaria. Por causa das conotações predominantemente más e negativas que rapidamente ficaram associadas com a expressão lavagem cerebral, foram inventados vários derivados semânticos mais neutros, como controle da mente, coerção mental, reforma do pensamento, persuasão coercitiva e menticídio. É nestas últimas encarnações que o conceito de lavagem cerebral tem sido usado ao longo dos anos, para designar praticamente toda forma de influência humana, inclusive o hipnotismo, a psicoterapia, os meios de comunicação de massa, a propaganda, a educação, a socialização [isto é, a integração das pessoas na sociedade], a educação das crianças, as mudanças de comportamento e uma miríade de formas conexas de técnicas de mudança de atitude e de comportamento” (TRUDY SOLOMON, Programming and Deprogramming the Moonies: Social Psychology Applied, in DAVID G. BROMLEY and JAMES T. RICHARDSON, The Brainwashing / deprogramming controversy: sociological, Psychological, Legal and Historical Perspectives, The Edwin Mellen Press, New Tork-Toronto, 1983, pp. 165-166).

Depois de citar o papel de Kurt Lewin na teorização do comportamento humano sob a influência social, da interação que se dá entre a pessoa e a influência do meio social, a psicóloga afirma que “do ponto de vista cognoscitivo, o indivíduo submetido a técnicas de influência social dentro do contexto de um grupo é visto como sendo um organismo ativo, continuamente empenhado em estruturar e avaliar as informações que recebe” (TRUDY SOLOMON, op. cit., p. 172).

Portanto, carece de qualquer fundamento a idéia, muito explorada sensacionalisticamente, de um indivíduo que sofre passivamente a influência de um grupo social sem ter noção disso, e sem capacidade para apreciar as informações que lhe chegam.

* * *

Resta ainda uma pergunta: por que o sr. J.A.P. teria baseado todo o seu libelo contra a TFP numa acusação tão desacreditada no meio científico – embora ainda impressione o grande público mal-informado – como a de “lavagem cerebral” ou “manipulação mental”?

Presumivelmente porque ele, egresso desta Sociedade, não lhe acompanhou com a necessária atenção as publicações. E ignorava a matéria estampada em “Catolicismo” de janeiro último. Ou talvez tenha tomado conhecimento dela, e, por essa razão, achou mais prudente não lançar a acusação de frente – empregando a expressão cientificamente desacreditada – e preferiu fazê-la do modo indireto e capcioso já comentado páginas atrás.

13. Mais uma laboriosa tentativa de explicação científica: o suposto processo iniciático da TFP se daria através do manuseio do fenômeno da “interação social” ou “interação grupal”

Todo o amplo corpo de acusações que o sr. J.A.P. faz à TFP pode, como já se viu no Cap. II, ser condensado numa única frase: a TFP seria uma seita iniciática que, através da “lavagem cerebral”, produziria efeitos danosos sobre seus adeptos.

É em torno dessa acusação central que se estruturam, como vértebras em torno da espinha dorsal, todas as demais acusações do autor.

Ora, nessa acusação central é de primordial importância o conceito de “lavagem cerebral”. Sem esse misterioso e irresistível processo de mudar, de fora para dentro, as convicções de alguém, desmorona o próprio eixo do libelo acusatório.

Importaria, pois, sumamente ao sr. J.A.P., tão empenhado no afã de demolir a TFP, ser claro, preciso e insofismável quanto à natureza desse misterioso processo.

Mas, como o leitor pôde constatar, é precisamente o contrário que se dá. Foi mesmo necessária toda uma argumentação para concluir que era realmente uma “lavagem cerebral” – ou um sucedâneo como uma não definida “manipulação do subconsciente” – que o sr. J.A.P. tinha em vista ao escrever seu livro.

Com efeito, ele se esquiva cuidadosamente de empregar essas expressões, que só foi possível obter na pena de propugnadores seus, calorosos mas desavisados.

Dado que Guerreiros da Virgem, se não é veraz, é contudo um livro bem redigido – o sr. J.A.P. levou nada menos que um ano e quatro meses para escrevê-lo (cfr. “Jornal do Brasil”, 18-7-85) – seria injusto atribuir o caráter vago de sua acusação à falta de perícia do jovem autor, cujo talento tanto entusiasmou leitores como o seu aliás fogoso apologista Prof. Roque Spencer Maciel de Barros (cfr. “O Estado de S. Paulo”, 29-10-85).

Descartada a hipótese de imperícia, resta a de que a ambigüidade na acusação foi desejada. E, neste caso, bastante bem alcançada.

Que razão terá havido para isto?

Já se aludiu aqui, como possível explicação, ao desgaste do mito da “lavagem cerebral”, e da mal sucedida reprise desta sob o rótulo de “manipulação mental” (“mind manipulation”).

De qualquer forma, a sistemática omissão da expressão “lavagem cerebral” está a  indicar que o sr. J.A.P. teme que tal imputação lhe seja atribuída. E este temor o terá levado por certo a excogitar outras explicações para atender alguma interpelação que neste sentido lhe seja feita. Pois – seu livro também o prova – agilidade e destreza são predicados que não lhe faltam.

Qual seria essa eventual explicação? O propósito de levar a presente refutação até os últimos confins do horizonte carregado de difamações, que o sr. J.A.P. põe ante os olhos do leitor, empresta algum interesse a essa pergunta.

Mas, esquadrinhando o texto do sr. J.A.P., ressaltam tantas hipóteses, todas elas de possibilidade remota, que o espírito se perde em conjecturas valendo tanto, ou tão pouco, umas quanto as outras. Pelo que, só resta aguardar o que o sr. J.A.P. tenha a dizer a propósito.

Se não, pondere o leitor estas duas conjecturas equivalentes:

1. O sr. J.A.P. responderia que ele não quis, ao descrever o suposto processo iniciático da TFP, senão constatá-lo e torná-lo público. Não quis explicá-lo.

Mas, suposto isto, que grau de probabilidade apresenta sua narração, a qual, sem esta explicação, fica ainda mais frouxa e desalinhada?

E como explicar que uma acusação tão balofa haja encontrado o apoio sensacionalista de um jornal que se preza de circunspecto como o “OESP”?

2. Pode-se supor, ainda, que o sr. J.A.P. saia a público precisando que o conteúdo do processo iniciático do qual teria sido vítima consistiria, pelo menos em parte (e neste caso, qual a outra parte?), no manuseio do chamado fenômeno de “interação social” ou “interação grupal”, largamente estudado em Sociologia e Psicologia Social. Ou seja, na estimulação recíproca de pessoas que formam um grupo social, com a conseqüente modificação mútua do comportamento dos indivíduos dentro do grupo e por ação do grupo.

Esse fenômeno ofereceria então uma explicação científica para que o sr. J.A.P. procura dramatizar e apresentar como misterioso, e que, na realidade, é o mais banal e corrente dos fenômenos sociais: as pessoas se influenciam umas às outras, desde o   nascimento até o último instante (por exemplo, o agonizante que aceita a sugestão de um parente para se confessar; ou apenas para tomar mais uma injeção). E as pessoas em grupo são influenciadas não só pelos membros individualmente, mas pelo conjunto, o grupo.

Correlato com esse, e decorrente dele, é o fenômeno mais particular do conformismo, pelo qual alguém abandona as próprias crenças e comportamentos, para adotar os do grupo, como resultado da pressão real ou imaginária deste.

A admitir que esta seja a explicação científica que o sr. J.A.P. tem para o que ocorre na TFP, cumpre observar que o conformismo não é um fenômeno inevitável, conforme deixa claro o psicólogo social norte-americano Dr. Charles A. Kiesler, cujas palavras interessa transcrever.

“Todos pertencemos a grupos de pessoas. Além disso, tais grupos influem em nós. Nosso comportamento e nossa atitude se modificam à medida que interagimos com os outros. Um grupo deseja que o indivíduo que dele participa atue como os outros e acredite no que os outros acreditam. Por isso, o resultado final da influência do grupo é que nossas crenças e nossas ações serão mais semelhantes às de outras pessoas do grupo. Às vezes, um membro de nosso grupo terá mais influência em nós do que outros. ... Se cada membro do grupo influi nos outros e é influenciado por eles, os participantes se tornam cada vez mais semelhantes entre si quanto à atitude e quanto à ação. Portanto, em muitos grupos, cada participante muda suas atitudes e ações a fim de que estas sejam mais semelhantes às dos outros, e, no conjunto, o grupo se torne mais uniforme em comportamento e crença.

Evidentemente, isso não ocorrerá com todas as pessoas. Se você participa apenas nominalmente de um grupo, os seus membros podem não exercer qualquer influência sobre você. Ou, se você participa de um grupo apenas porque isso é necessário (por exemplo, se os seus pais insistem para que você entre num clube de que não gosta) você pode resistir a todas as tentativas de influência. Apenas descrevemos o que pode acontecer como consequencia de participação num grupo” (CHARLES ADOLPHUS KIESLER & SARAH B. KIESLER, Conformismo, Editora Edgard Blücher/EDUSP, São Paulo, 1973, pp. 2-3).

Adiante, o Dr. Kiesler estabelece uma distinção entre dois tipos de conformismo, o do “céptico obediente” e o do “crente verdadeiro”: “Esses dois tipos de conformismo foram denominados, pelos psicólogos sociais, obediência e aceitação íntima. A obediência refere-se ao comportamento explícito que se torna mais semelhante ao comportamento que o grupo deseja que seus membros apresentem. O termo refere-se às ações explícitas, independentemente das convicções íntimas do ator. Quando falamos de ‘apenas obediência’, queremos dizer que a pessoa se comporta como o grupo deseja que o faça, mas, na realidade, não acredita naquilo que está fazendo. Vale dizer, acompanha o grupo, sem que intimamente concorde com este. A aceitação íntima refere-se a uma mudança de atitude ou crença, e na direção das atitudes e crenças do grupo. Nesse caso, a pessoa pode, não apenas agir de acordo com os desejos do grupo, mas também mudar suas opiniões, de forma que passe a acreditar naquilo em que o grupo acredita. Este termo tem seu paralelo na expressão ‘mudança de atitude’ usada em estudos de comunicações persuasivas” (idem, pp. 3 a 6).

Como se vê, esse processo, a que é tão claramente possível resistir, não se identifica com a ação irresistível que o sr. J.A.P. afirma ter sofrido na TFP. E assim essa laboriosa hipótese também rui por terra.


 

[1] Diz São Paulo: “Fostes ensinados ... segundo a verdade que está em Jesus, a vos despojardes, pelo que diz respeito ao vosso passado, do homem velho, o qual se corrompe pelas paixões enganadoras. Renovai-vos, pois, no espírito do vosso entendimento, e revesti-vos do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade verdadeira” (Eph. IV, 21 a 24).

[2] Presumivelmente pela mesma razão prudencial que levou o sr. J.A.P. a não utilizar a expressão “lavagem cerebral”, em Guerreiros da Virgem, a TFP não é explicitamente alvejada com a insultante designação de seita. Mas, como já se viu (cfr. Cap. II), a idéia de que a TFP seria uma seita iniciática está claramente presente no livro.

[3] A responsabilidade moral do menor de idade – a qual cresce paulatinamente com o desenvolvimento deste – é reconhecida de modo expressivo pela Igreja, entretanto tão zelosa da observância do respeito à autoridade paterna.

Com efeito, diz o Código de Direito Canônico vigente: “Cânon 98, § 2. A pessoa menor, no exercício de seus direitos, permanece dependente do poder dos pais ou tutores, exceto naquilo em que os menores estão isentos do poder deles por lei divina ou pelo direito canônico”.

Comenta o Pe. Jiménez Urresti, decano da Faculdade de Direito Canônico da célebre Universidade Pontifícia de Salamanca:

“Em matéria de direitos pré-canônicos ou de lei divina, quer dizer, o direito de seguir o ditame da própria consciência, o menor não depende de seus pais ou tutores; e o Código [de Direito Canônico] expressa esse direito algumas vezes, configurando-o, por exemplo, ao requerer e admitir dezesseis anos para o ingresso no noviciado (c. 643, § 1, 1o.); sete anos para receber por decisão própria o batismo (c. 868, combinado com cc. 865-866), e até menos de sete anos para receber a Comunhão se estiver preparado (cc. 913-914).

“Sobre os direitos canônicos, o Código exime também o menor do pátrio poder ou da tutoria em alguns casos; por exemplo, são requeridos e bastam sete anos para adquirir quase-domicílio próprio, e, se estiver emancipado, também domicílio (c. 105, § 1); catorze anos para escolher o rito ao batizar-se (c. 111, § 2) e para voltar ao rito latino anterior (c. 112, § 1, 3º); dezesseis anos para ser padrinho (c. 874, § 1 2º, e c. 893 § 1)” (TEODORO I. JIMENEZ URRESTI, comentário ao cânon 98, in  LAMBERTO ECHEVERRIA [dir.], Código de Derecho Canónico – Edición bilingüe comentada, BAC, Madrid, 3ª ed., 1983).

No mesmo sentido comenta o teólogo e canonista Pe. Jesus Hortal SJ: “Pelo direito divino, os menores não estão sujeitos ao pátrio poder naquilo que diz diretamente respeito à sua salvação” (Pe. JESUS HORTAL, comentário ao cânon 98, in Código de Direito Canônico, tradução oficial da CNBB, Edições Loyola, São Paulo, 1983).

 


 

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