Plinio Corrêa de Oliveira

 

A dinamite de Cristo

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de novembro de 1938, N. 321

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Os velhos e maravilhosos cronistas medievais, profundamente imbuídos do verdadeiro senso sobrenatural da História, distribuíam a seus personagens títulos simbólicos que designavam a função por eles desempenhada nos planos da Providência. Átila era o “flagelo de Deus”, vindo de sua longínqua e ignorada Panonia para reduzir à austeridade e à penitência, pelo terror e pelo sofrimento, o rebanho de Cristo, por demais esquecido de seus deveres. Um outro era o “arauto de Deus”, incumbido de afervorar a piedade decadente dos fiéis, pela pregação universal da doçura inefável do amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. O cruzado era a “espada de Deus” destinada a defender, contra o islã bárbaro e agressor, o rebanho de Cristo ameaçado. E assim por diante, uma nomenclatura ao mesmo tempo ingênua e sublime, áurea no seu conteúdo, cândida na sua forma, esmaltava as narrativas históricas com a riqueza inesgotável de sua policromia.

Se procurássemos aplicar à História do Brasil o velho processo simbólico dos cronistas medievais, e representar por meio de uma figura a obra que, dentro dessa história, Jackson realizou, sentiríamos sério embaraço. Jackson não poderia ser propriamente chamado o “gládio de Deus”, porque o gládio é necessariamente frio e cortante, e Jackson, se era às vezes cortante, nunca em sua vida foi frio. A técnica de guerra medieval não dispunha de instrumentos capazes de simbolizar condignamente a obra de Jackson. Só dentro dos recursos estratégicos de nosso século podemos apontar um símile adequado. Jackson foi a dinamite de Nosso Senhor Jesus Cristo.

* * *

O Brasil nunca atravessou uma quadra mais asfixiante, sob o ponto de vista espiritual, moral e intelectual, do que os longos anos de estagnação que precederam o apostolado jacksoneano. Essa situação era o reflexo, talvez, do que ocorria no mundo inteiro. Erraram crua e crassamente os que quiseram responsabilizar por este estado de coisas os políticos que então dirigiam o Brasil. Os erros dos políticos foram muito mais influenciados pela situação psicológica e espiritual do país naquela época do que o país foi influenciado pelos inegáveis dislates dos dirigentes da coisa pública. A crise era espiritual e moral, e os que procuraram dar-lhe solução por meio da substituição dos homens ou da reforma das instituições políticas, erraram crassamente.

No que consistia a crise? Tristão de Athayde, cujo nome não pode deixar de ser mencionado sempre que se escreve sobre Jackson, Tristão de Athayde, em suas obras, descreveu magnificamente o otimismo terra-a-terra, o sensualismo imprevidente e faustoso, o profundo anarquismo das inteligências e das vontades, no apogeu da era vitoriana. Depois da guerra, na Europa, esses sentimentos tão esplendidamente estáveis, tão presuntuosamente indestrutíveis, tão imperturbavelmente otimistas, tiveram que ceder sob a ação conjugada de dois fatores diversos. De um lado, as altas esferas da inteligência sofriam uma reação cada vez mais enérgica contra o evolucionismo que era a medula da mentalidade vitoriana. De outro lado, a grande hecatombe de 1914-1918, enchendo a Europa de dores, ruínas, e de mendigos quebrou definitiva e irremediavelmente o padrão psíquico do homem de “avant-guerre”. De um lado, averiguava-se que o evolucionismo era falso, e que o mundo poderia não caminhar gradual e inelutavelmente na senda do Progresso com P maiúsculo. Do outro lado, verificava-se a veracidade desta afirmação pelo fato de que o Progresso com P maiúsculo parecera ter cedido definitivamente seu lugar na velha Europa, gasta e chagada pela guerra, a uma agonia que os espíritos mais previdentes não podiam deixar de ver, e cujos sintomas, pelo desemprego, pelas lutas de classe, pelas dificuldades morais e econômicas de toda a ordem, faziam sofrer intensamente as multidões desvairadas.

Enganar-se-ia, porém, quem supusesse que, com isto, a era do otimismo estaria encerrada para a América. Enquanto a Europa parecia afundar-se no caos, raiava sobre a América o zênite do esplendor wilsoniano. Os Estados Unidos tinham atingido seu apogeu. Diante de um mundo decrépito, faminto e cambaleante, eles se apresentavam com todo o prestígio da juventude, da riqueza, e do poder. Em última análise, fora sua intervenção que provocara a vitória. Nação até então ignorada ou ao menos relegada a um segundo plano pela “morgue” do Velho Mundo, a jovem república inebriava-se com o gáudio de ver seu Presidente decidir de todas as questões mundiais naquela velha Europa ainda tão cheia de prestígio, lado a lado com as maiores celebridades políticas e militares do Universo. Mais ainda: à opinião norte-americana impressionara profunda e deliciosamente ver o seu Presidente ser, nas negociações do Tratado de Versailles, o que fora o grande Metternich no Tratado de Viena: o árbitro da política mundial e o ditador da paz.

O prestígio da jovem e pujante república, e de seu famoso Presidente, transbordava do campo político para o da vida particular. E os milionários yankees que começaram a fluir em número sempre crescente a Paris, logo depois da guerra, gozavam de um prestígio inconteste, que lhes permitia levar para os pagos natais, como troféus dos grandes triunfos sociais obtidos na Europa, todos os escombros daquelas grandes e magníficas coisas que acabavam de ruir. E mais de um milhardário instalou em sua casa de nouveau-riche, com idêntico orgulho, lado a lado, alguma grã-duquesa russa, algum objeto que pertenceu a Maria de Médicis, ou algum famoso quadro de Rubens ou de Ticiano, tendo comprado a primeira pelo casamento, e os últimos nos vendedores de antiguidade; uns e outros, porém, com o único e exclusivo peso do dinheiro.

Até 1914, os americanos do Norte eram os parentes caipiras e envergonhados dos europeus. Depois de 1914, eles passaram a ser os parentes ricos, a quem os primos, aristocráticos mas “arrebentados”, espreitam no canto das ruas para pedir, submissa e reverentemente, dinheiro para comprar cigarros ou consertar as solas furadas dos sapatos.

Este sentimento de superioridade extravasou dos Estados Unidos para a América inteira. E foi realmente entre 1918 e 1928 que a opinião pública viveu, com todos os seus sintomas, o otimismo despreocupado e jactancioso da era vitoriana. Esse decênio foi, para nós, o da “vida flauteada”, dos gastos fabulosos, do café a preço alto, das viagens incessantes à Europa, das orgias e da despreocupação. A era wilsoniana era tão menos espirituosa e intelectual do que a era vitoriana...

Foi em pleno dia da rápida era wilsoniana que Jackson surgiu.

A estagnação mental brasileira era completa. O famoso jazz band, o shimy, o cinema e o sport, monopolizavam todos os espíritos. Os raros, se bem que apreciáveis intelectuais, então existentes, eram “rari nantes in gurgite vasto” [locução latina que se traduz por “raros nadadores no vasto mar”, que se debatem após uma tempestade, n.d.c.]. Ninguém se preocupava com eles, como aliás com tudo o que não fosse gozo plácido, jovial e – “dura veritas, sed veritas” - luxurioso da vida.

Todo o mundo era católico, todo o mundo era liberal-democrático, todo o mundo era nacionalista. Mas, tanto o Catolicismo quanto o democratismo, quanto o nacionalismo não interessavam ao povo. Os cinemas regurgitavam. Os rinques e os campos de futebol também. As multidões aplaudiam freneticamente as proezas de Tom Mix [artista de cinema em voga na época, n.d.c.] e as façanhas de Friedenreich [jogado de futebol muito conhecido à época, no Brasil, idem]. Entretanto, essas mesmas multidões, tão frenéticas no rinque, na sala de cinema e no dancing, eram frias na Igreja, onde oravam pouco e sem fervor, como também eram frias nas solenidades patrióticas e cívicas, às quais compareciam de mau humor, e de cujo significado intrínseco se desinteressavam totalmente.

O que era mais triste do que tudo, neste panorama, era o conformismo dos católicos. Não apenas dos de rótulo, mas ainda de muitos dos fervorosos. Nunca faltou ao Brasil, mercê de Deus, um pugilo de bravos e autênticos batalhadores da Fé. Mas como era incompreendido, ignorado, ou até injuriado seu apostolado!

Foi dentro deste cenário que Jackson surgiu. E surgiu com a missão providencial de dinamitar a pedreira cinzenta e informe da despreocupação do ambiente, semeando inquietação e luta na placidez letal e vergonhosa do Brasil de então.

Primeiramente, lançou ele uma grande inquietação no espírito dos que se julgavam bem com Deus e a Igreja, porque acendiam ao Criador uma vela, aliás pequena e de cera falsificada, enquanto um braseiro de círios, acesos com suas próprias mãos e sempre renovados, ardia aos pés de Mamon, e de Afrodite. Como um novo cadet de Gascogne, verdadeiro e autêntico Cyrano de Bergérac do Catolicismo, Jackson investiu truculentamente contra essa gente, e no vigor fulminante de seu ataque, deixou-os ao mesmo tempo atônitos e iracundos.

Depois sua investida foi contra Rousseau e todo o liberalismo. Não era mais possível aos católicos, adorar a deusa Razão oculta sob os véus transparentes e impudicos da “Igualdade, Liberdade, Fraternidade”. Era preciso romper com o liberalismo socializante que dominava a época. (...) Era preciso romper com todos os ídolos que desvairaram o Brasil Imperial e Republicano. Jesus Cristo não se podia assentar nesse novo Panteon, ao lado de divindades falsas e espúrias. Cristo, para ser Rei, só o quer ser sem divisões nem partilhas. E o católico não Lhe pode votar um coração dividido com Mamon, Afrodite e os ídolos satânicos da Revolução. Para tornar clara esta afirmação, aliás sempre e sempre proclamada pela Hierarquia Eclesiástica e por um núcleo de católicos integrais e convictos, Jackson fez obra de alta cirurgia espiritual. Cortou, talhou e retalhou à torto e à direita. Sangrou o próximo em abundância. E atraiu atrás de si um verdadeiro tropel de indignados.

Jackson, no amorfismo da sociedade de então, foi um reivindicador estrepitoso e épico dos direitos da Igreja. Foi ele quem separou o joio do trigo, os católicos autênticos dos não autênticos, os leais e generosos daqueles que pensavam poder “filar” o Céu, fazendo evolar sua alma, diretamente, de um corpo entregue a todas as corrupções até o seio da bem-aventurança eterna.

Certamente, Jackson não foi o primeiro a proclamar estas verdades que a Igreja nunca se fartou de repetir. Mas seu apostolado recebeu de Deus o dom de atingir o Brasil inteiro, e de fazer efetivamente o que raramente, antes disto, tinha sido operado na massa da opinião, isto é, a fixação nítida das fronteiras que separam a Igreja do Mundo, o Reino de Cristo do de Satanás, a Verdade do Erro, a Luz das trevas.

Quando Jackson morreu, há precisamente dez anos, um imenso clamor de ódio o perseguia. Todos aqueles a quem havia galhardamente enfrentado, o odiavam a fundo e com rancor. De seu truculento apostolado, parecia resultar apenas um fato: a irritação daqueles a quem procurara esclarecer.

A Providência, porém, se encarregou de, com o tempo, desmentir esta impressão errônea e estultamente superficial. O Apostolado de Jackson ecoou pelo Brasil inteiro, e, do Norte ao Sul, do fundo do sertão ao litoral, almas e almas, formando legiões e multidões, acorreram sob a bandeira autêntica e exclusivamente católica que esse grande paladino levantara. Um renascimento católico imenso acompanhava e brotava da obra de Jackson de Figueiredo. Uma primavera de energia, de galhardia espiritual, de santa e heroica combatividade, brotava no Brasil.

Na realidade, os pusilânimes e os estultos só viram na obra de Jackson o ódio que despertou. Os que, entretanto, não veem as coisas com um olho só, apontam na explosão do grande dinamiteiro de Cristo a causa mais fundamental – humanamente falando – do admirável “renoveau” [rejuvenescimento, n.d.c.] por que o Brasil está passando.

Entre as almas deslumbradas pelo fogo do grande meteoro espiritual que foi Jackson, figura Tristão de Athayde. Esse grande apóstolo não foi atraído ao Catolicismo senão pelo trágico clarão de incêndio com que Jackson iluminava e esclarecia, aos olhos dos incrédulos, as magnificências da Esposa de Cristo.

Seria estulto se quiséssemos ver na obra de Jackson um sol sem manchas. Ela teve, talvez, o mal decorrente da hipertrofia de suas qualidades. Sem embargo disto, foi à grande explosão da dinamite espiritual de Jackson que devemos o desbastamento do terreno e a remoção dos escombros sobre os quais marcha hoje, em glorioso desfile de vitória, a mocidade católica do Brasil.


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