Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Os livros que devem ser lidos

 

 

“O Legionário”, N.º 86, 13 de setembro de 1931, p. 2

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Entre os muitos preconceitos errôneos que dominam a mentalidade das massas populares hodiernas, figura em lugar de destaque a convicção muito generalizada de que é impossível a coexistência, no espírito de um homem, de uma virilidade real com uma religiosidade sincera.

Dá-se com este preconceito o mesmo que se deu com o imundo casario que entulhava, no Egito, os lugares em que, em séculos passados, se erguiam os templos magníficos que os faraós elevavam à glória de seus deuses.

A ação lenta de forças naturais soterrara gradualmente muitos dos monumentos da lendária civilização egípcia. E quando este soterramento ficou mais ou menos completo, sobre os últimos vestígios dos monumentos dos faraós veio lançar-se uma rede inextricável de barracas e cortiços destinados a abrigar a vasa da população egípcia.

Quando alguns denodados egiptólogos empreenderam o estudo da história da pátria de Cleópatra, não tiveram outro recurso senão arrasar completamente quarteirões inteiros de cortiços, para fazer emergir do seio da terra, onde jaziam sepultados, os magníficos monumentos da arte egípcia, em toda a beleza de suas linhas, na beleza estupenda de sua concepção artística genial.

Imitando os egiptólogos, é necessário que nos esforcemos por arrasar os preconceitos mesquinhos com que a mentalidade hodierna cerca e deforma a idéia de “homem”.

E, uma vez executada esta obra de desobstrução, poderemos então ressurgir, no espírito público, a majestosa e máscula concepção cristã de virilidade.

 

Conceito de virilidade

A simples análise racional da expressão “viril” indica claramente a inanidade dos preconceitos modernos (veiculados especialmente pelo cinema e pelo excesso do esporte) a este respeito.

Ser másculo significa ter todas as qualidades próprias ao homem, para que este desempenhe integralmente os deveres ditados por sua alta finalidade religiosa, moral e social.

É evidente que o esforço que se desenvolva para produzir no homem qualidades estranhas à sua finalidade será ou inútil, ou nocivo.

Por outro lado, é bem evidente que as qualidades serão tanto mais preciosas para o homem - e, portanto, tanto mais másculas - quanto mais altas forem as finalidades humanas que elas visem conseguir.

Os diversos fins de um homem não têm todos importância igual. Pelo contrário, a razão demonstra que eles se subordinam uns aos outros, numa hierarquia completa.

Para cada finalidade do homem existem virtudes adequadas. E tanto mais necessárias ao homem - e portanto mais máscula será a virtude - quanto mais elevada for a finalidade que lhe corresponder.

Se existe um Deus, o primeiro dever do crente será de lhe prestar reverência e homenagem. E a violação deste dever primordial será, para o homem, uma infração máxima à virtude da virilidade.

Aos olhos dos próprios descrentes, portanto, deve ser tido o crente que não cumpre seus deveres como indivíduo “inviril”.

E, como uma conseqüência lógica, tanto mais viril será o crente quanto mais cabalmente der desempenho a seus deveres religiosos.

Vêm em seguida os outros grandes deveres do homem, que marcam como que outros tantos degraus na escada da virilidade: os deveres em relação à família, em relação à pátria, em relação à humanidade, em relação a si próprio.

O cumprimento destes deveres é árduo. Ora exige os grandes esforços que caracterizam os heróis, ora reclamam trabalhos obscuros e perseverantes, sem poesia, sem grandeza, todos feitos de abnegação ignorada e de banalidade absoluta.

Para o desempenho destas grandes missões, que fazem da vida de cada homem, quando bem compreendida, um poema de beleza incomparável, são necessárias certas disposições que são o pedestal de toda a virtude ou virilidade sólida.

 

A força de vontade

Vem, em primeiro lugar, a força de vontade, que é o alicerce de todas as demais virtudes. Em seguida vem todo o longo cortejo de virtudes viris, que em última análise são um simples corolário da força de vontade: sobriedade, perseverança, domínio de si mesmo, prudência, coragem, audácia, generosidade, etc.

Todos estes atributos não constituem virtudes diferentes; são apenas as cintilações multicolores de um mesmo brilhante: o vigor da vontade auxiliada pela graça.

A par destas jóias puríssimas, que podem fazer do caráter de um homem um verdadeiro escrínio, há imitações mais ou menos grosseiras, que são meras deformações do senso moral, pérolas “tekla”, que tentam hoje em dia substituir completamente as antigas virtudes, imitando-as servilmente no aspecto exterior, mas diferenciando-se profundamente delas na sua essência.

Assim, quando o temperamento é exaltado, quando uma pessoa não sabe refrear os excessos de um sistema nervoso doentio, as explosões de sua vontade desgovernada passam por força de vontade. Como se se pudesse confundir um rio que sai de seu leito para tudo inundar e tudo destruir, com a água fertilizante que corre em leitos certos, fecundando toda uma região.

Quando o estouvamento da inteligência não vê o perigo, é fácil para uma pessoa afrontar os maiores riscos. E então confunde-se o desatino vulgar de uma inteligência defeituosa com a coragem do herói.

Quando o abrasamento das paixões leva o homem a se entregar sem reservas à faina de amontoar fortunas com que as satisfazer, este sibarita camouflé [gozador da vida disfarçado, n.d.c.] pode facilmente passar por homem trabalhador.

E, em geral, os heróis que o cinema nos aponta, ou que os romances incensam, não passam de caracteres cheios de vícios com aspecto de virtude. Como certas vitrines de joalherias populares, podem tais homens, com o exibicionismo desenfreado de suas quinquilharias morais, deslumbrar o populacho. Mas só logram despertar o riso e a compaixão dos verdadeiros psicólogos, que não se iludem com o brilho falso destas falsas pedrarias, nem com o esplendor ilusório de uns pobres pedaços de vidro polido.

 

Há coragem e coragem...

A coragem do herói que conhece o perigo, mas que o afronta por amor a um sublime ideal, não pode ser comparada à imprudência de um ladrão que não se importa de correr os maiores riscos para dar largas à sua desonestidade.

A coragem do soldado que afronta a morte por amor à pátria, ou do mártir que desafia os tormentos para confessar a Fé, não é a mesma coragem do adúltero que, com risco de sua própria vida, penetra clandestinamente na casa de seu amigo para consumar, na escuridão da noite, a ruína de um lar!

Não! A Igreja nunca sancionará o torpe conceito que erige em coragem o despudor, e que entroniza como herói o homem amoral, que ousa afrontar todos os perigos e sujeitar-se a todas as baixezas para satisfazer a solicitação de seus instintos.

A triste coragem que faz do homem um monstro, e da canalhice uma virtude, é bem a coragem do mundo pagão em que vivemos.

Mas que rufem os tambores; que a pátria chame para o campo de sacrifício todos os seus filhos, e veremos que não é o “herói” pagão que melhor sabe imolar seu egoísmo, e que com mais espontaneidade sabe oferecer-se como holocausto à grandeza do país!

 

O livro que deve ser lido

É o que nos mostra, eloqüentemente, o livro de Dom Du Bourg (1).

Gabriel Mossier, oficial de cavalaria francesa, cingia a rutilante couraça do Corpo de Dragões a que pertencia, em vésperas de uma das maiores batalhas da guerra franco-alemã.

No meio dos preparativos febris das vésperas de batalha, o brilhante oficial lembra-se dos princípios religiosos de sua infância. Antes de morrer, quer reconciliar-se com Deus. E, dada a permissão dos superiores, vai, com um companheiro, fazer um retiro de um dia em uma Trapa vizinha.

Mudança de ambiente. Já não se ouve mais o barulho incessante de um grande exército que se apresta para a luta. Já não se vêem mais as fardas marciais dos filhos da França que se dispõem para morrer.

No meio de um silêncio que nada quebra, e de uma paz inalterável, um grupo de monges, vestidos de branco, trava em silêncio os grandes combates de Deus.

Emudecido o mundo exterior, Gabriel sente que dentro dele também um grande tumulto se ergue. E, dividido contra si mesmo, passava a ser um campo de batalha. Era o conflito entre a educação religiosa de sua infância, que surgia despertada bruscamente, à beira da morte, neste oásis de piedade, e o peso acabrunhador dos longos anos de caserna, passados no olvido das práticas religiosas.

A batalha foi dolorosa. E quando, no dia imediato, voltava ao Exército, alguma coisa em Gabriel Mossier morrera em face da morte: era o homem irreligioso da caserna, que fora estrangulado pelas recordações de seu tempo de menino.

Fora árdua a batalha. O heroísmo de Mossier, durante o combate, valeu-lhe uma brilhante promoção.

Mas, feita logo depois a paz, outros eram seus planos. Do combate entre o oficial dos Dragões e as recordações da infância, surgira uma terceira personalidade: o trapista.

A infância de Mossier já era uma recordação. Mas o apelo do passado dá a Mossier uma concepção real de seus erros. E o fervor de sua contrição restituiu à sua alma a brancura que desaparecera com a infância.

O seu tempo de caserna também já era uma mera recordação. Mas, despindo a farda, uma coisa lhe ficara do oficial: a coragem.

Do menino, ficara a Fé. Do oficial, o heroísmo. Herói e crente, Mossier se transformou quase insensivelmente em...

 

Trapista

Uma longa série de anos, todos passados na maior mortificação, eis o resumo de sua sublime vida sacerdotal que, rica em admiráveis detalhes, denota a ascensão constante de uma alma a Deus.

Desta narrativa edificante, e tornada atraente pelo talento literário de Dom Du Bourg, que uma lição nos fique: religiosidade e coragem, Fé e virilidade são coisas inseparáveis. E se os preconceitos vulgares das pessoas incultas nos acoimarem de pusilânimes, acolhamo-nos à sombra do exemplo de um Gabriel Mossier (1835-1918). E, fortificados com seu exemplo, digamos: “Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que dizem” (2).


Notas:

(1) DOM DU BOURG, Du Champ de Bataille à la Trappe, Perrin & Co. Edit., Paris, 1925.

(2) Cfr. Lc. 23, 34.


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