Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

7 Dias em Revista

 

 

 

 

 

 

Legionário, N° 779 , 13 de julho de 1947

  Bookmark and Share

A semana passada foi talvez a mais importante de post-guerra. Ela consumou a separação do mundo contemporâneo em dois grandes blocos ou sistemas, separados entre si pelos interesses econômicos, pela rivalidade política, e pelo abismo das divergências ideológicas. Não há mais um mundo, mas dois mundos. As nações que vivem sob a influência do plano Marshall constituem uma humanidade. As nações que vivem à sombra da ditadura comunista são outra humanidade. Nada as une, tudo as separa.

Quem lucra com isto? E quem perde? Não se trata de saber aqui qual dos dois blocos é mais forte. Trata-se de saber se alguém lucrou com esta imensa cisão.

Certamente, duas potências monarcas não podem governar uma. Com efeito, cada uma destas potências passou a ser o centro de uma verdadeira constelação de povos. Politicamente falando, o mundo tem hoje dois pólos, um em Moscou e outro em Washington. De um certo modo, Washington e Moscou dividem entre si o governo do mundo. Claro está que isto representa (considerado só o dia de hoje, e feita qualquer abstração do dia de amanhã, com suas consideráveis incertezas) uma vantagem tanto para Washington quanto para Moscou.

Dois grandes impérios não podem coexistir no mundo, pelo mesmo motivo por que dois monarcas não podem governar uma mesma monarquia. Assim dividido o mundo de hoje os próximos anos serão de ativa preparação da guerra que forçosamente ensanguentará o mundo de amanhã.

O perigo russo tem tudo para ser reconhecido como um genuíno "perigo": a) traz consigo a perspectiva de males sem conta; b) esta perspectiva é grave, próxima, concreta, acessível ao espírito de todos os homens sensatos e não apenas de lunáticos e sonhadores.

Para fazer face a este perigo os EE.UU. estarão na necessidade, muito justificada, de coordenar cada vez mais a ação do povos no sistema Marshall. Quem diz "coordenação" diz necessariamente sacrifício de autonomia. E quem diz sacrifício de autonomia para uns, diz necessariamente extensão de hegemonia em benefício de outro ou de outros.

Assim, o perigo vermelho tornará inevitável que se consubstancie, se solidifique, se corporifique.

Em sentido contrário, quanto mais se corporificar a hegemonia yankee, tanto mais os soviéticos terão pretextos para dominar, espezinhar e aniquilar os povos que giram em sua constelação. Muito intencionalmente falamos de hegemonia americana e de escravidão soviética. A influência comunista está longe de constituir uma grande hegemonia firmada em interesses comuns; é uma escravidão no sentido mais estrito e sombrio do termo. A iminência do perigo americano servirá aos soviéticos de pretexto para justificar uma ditadura férrea que, aliás, com ou sem pretexto, fatalmente instituiriam nos países por eles ocupados.

A conseqüência de tudo isto consiste em que, possivelmente, o mundo assistirá a formação de dois super-Estados como pródromo de uma guerra da qual sairá um só e único super-Estado. A não se modificar de maneira imprevista o curso das coisas - eventualidade com que sempre se deve contar nestes dias que correm - é este um dos aspectos mais claros e mais profundos dos acontecimentos gigantescos a que estamos presenciando.

* * *

Evidentemente salta aos olhos uma questão: os povos anticomunistas não poderiam constituir uma grande liga de nações irmãs em prejuízo de sua própria autonomia?

A questão é cheia de dificuldades. De um lado, o anseio pela autonomia é uma das paixões mais justas e nobres do espírito humano. Do outro lado ninguém pode negar que a autonomia, na situação em que estamos, pode prestar-se a abusos, e que qualquer abuso pode determinar a vitória do comunismo no grande embate a que daqui a alguns anos assistiremos. Como sair desta cruel alternativa?

Esta questão interessa aos ingleses. A Inglaterra tem velhos hábitos de domínio, e desliza agora, de maneira mais ou menos gradual, para uma condição secundária. Contudo, ainda lhe resta muita riqueza, muita influência, muita consciência de sua própria grandeza, e muita esperança de uma recuperação futura. Para fazer face ao comunismo, é possível que ela aceite uma diminuição de seu poder mundial e até de sua autonomia econômica e política. Provavelmente, ela não a aceitará, porém, sem algum peso de coração, e sem uma ou outra tentativa de estabelecer a linha comum anticomunista numa base menos onerosa para si.

O mesmo poderia ser dito do grande bloco latino. No conjunto das nações anti-soviéticas, o elemento anglo-saxônico e protestante está tendo sobre o elemento católico e latino uma supremacia evidente. A França tem recuperado muito de seu poder, mas sua situação não pode ser igualada por oras aos Estados Unidos e nem mesmo à Inglaterra. A fortiori, o mesmo se pode dizer da Itália. A Espanha e Portugal vivem oficialmente isolados do resto do mundo. Entre si, França, Itália e Espanha tem relações pouco cordiais. Tudo isto não obstante, a própria inferioridade de posição em que elas se encontram cria entre elas uma linha de interesses comuns. Se elas se unirem, terão por força a simpatia da América Latina e católica. Tudo isto, que agora representa influências dispersas e fragmentadas, pode ainda significar muito.

* * *

É o que Peron parece ter percebido. E, por isto mesmo acaba ele de proclamar espetacularmente a independência econômica da Argentina no próprio prédio histórico onde se lavrou a ata da independência política daquela República. Independência em relação a quem? Evidentemente em relação aos Estados Unidos. Em seu sensacional discurso, Peron, de modo embora velado, se põe como o reivindicador da autonomia das nações latino-americanas e, mais ainda, de todo o mundo latino.

Que repercussão terão suas palavras, não no noticiário dos jornais, mas no curso profundo dos acontecimentos políticos? É difícil dizê-lo.

De todos os pontos de vista, a atitude de Peron é um enigma. A quem aproveita ela? Todos sabemos que a Inglaterra teve sempre grande influência na Argentina. É certo que Peron teve seus desaguisados com Londres e já não passa por ser um grande amigo em Downing Street. Digamos, porém, a título de hipótese que esses desaguisados sejam mais aparentes do que reais e desejados pelo próprio gabinete de St. James para certos fins políticos. Digamos, ainda, que estes fins consistam em que, desligada a Argentina aparentemente de Londres, ela tome uma atitude anti-yankee que não pareça de modo nenhum influenciada pela Inglaterra, mas de que a Inglaterra seja a inspiradora real. O que sucederá? Os Estados Unidos ficarão desfalcados de um potencial econômico considerável, e seu sistema político-planetário funcionará com a irregularidade e intermitência de um relógio quebrado. Londres lucrará até certo ponto com isto. E contudo sua atitude continuará sendo tão cordata na aparência, que nada impedirá a Inglaterra de receber as vantagens do plano Marshall.

A política tem destas...

* * *

Nada disto, porém, é indiscutível. Pode-se, por exemplo, alegar que Peron é um totalitário evidente; que ele proteja na Argentina importantes remanescentes do nazi-fascismo; que ele mantém com Franco relações de uma cordialidade evidente; que ele aspira a fazer, não o jogo da Inglaterra, mas do que se convencionou chamar o "cripto-fascismo". Este último está longe de ter perdido toda a sua importância política. Na Itália, ele sacode as massas. Na França, trama revoluções. Na Espanha, veste manto real para sobreviver. Peron não será, na realidade, um candidato a leader mundial de todas estas forças?

* * *

Mas em última análise, será conveniente que esmiucemos todas estas questões? Será útil, oportuno, razoável, diante de um inimigo comum tão execrável e tão ativo quanto a URSS, lembrar todas estas causas de divisão e consequentemente de enfraquecimento do bloco anti-soviético?

É o que nos perguntamos nós mesmos. Esta pergunta serve para apreciarmos outra face do "problema Peron". Se tudo isto traz consigo o risco de dividir os anticomunistas e de favorecer implicitamente a URSS, é o caso de se perguntar se Peron não obedece a sugestões soviéticas.

O problema é por demais profundo e complexo para formarmos juízo sobre ele desde já. Uma coisa, porém, é certa. A "Questão Peron" é uma das mais nebulosas e difíceis do mundo contemporâneo.

* * *

Notemos, por fim, que a URSS e os EE.UU. irão fazer uma verdadeira "corrida" para englobar às suas respectivas esferas de influência a Ásia e a África. A URSS procurará desagregar o Império britânico e francês. França e Inglaterra reagirão. Os EE.UU. tenderão a absorver dentro de sua orbita certas nações semi-independentes como a Pérsia.

No meio desta confusão, o imenso potencial pan-árabe poderá servir de fiel da balança. Mas, de outro lado, [problema tipográfico] (...)


ROI campagne pubblicitarie