Plinio Corrêa de Oliveira

 

Medalhões

 

 

 

 

 

 

Legionário, N° 300, 12 de junho de 1938  Bookmark and Share

Não sei o sentido popular da palavra “medalhão” é conhecido em todo o Brasil. O certo é que, porém, ele está  largamente difundido em São Paulo, onde não há ninguém que o ignore. Em última análise, a alcunha de "medalhão" se aplica a todo indivíduo cujas aparências vistosas contrastem dolorosamente com a realidade. Certos intelectuais com mais fama do que talento, certos artistas com mais nomeada do que virtuosidade, certos políticos com mais arrogância do que influências, certos capitalistas com mais empáfia do que dinheiro, tudo isto, na gíria popular, é chamado “medalhão”.

Evidentemente a palavra “medalhão” comporta graduações, como a palavra “grã-fino”. Logo que começou a ser utilizada no público a antipaticíssima palavra “grã-fino”, aplicava-se ela a certos specimens de nossa altíssima sociedade (altíssima por que riquíssima, e só por isso), notáveis pela fidelidade com que reproduziam os modelos  de Paris e de Londres. Aos poucos, a  palavra se foi generalizando, e cada indivíduo de uma determinada escala social começou a chamar “grã-fino” o outro que pertencesse à categoria mais alta.

 

Este artigo foi feito para focalizar mais um erro a ser corrigido. Abandonemos de vez o culto dos “medalhões”. Nossa causa não lucra em se enfeitar com quinquilharia, e principalmente com quinquilharia de segunda classe.

 

Assim, para o engraxate, grã-fino era o modesto empregado que passava diante dele  e que dele se diferenciava tão somente por ter as mãos limpas e usar colarinho surrado. Para o comerciário grã-fino  era o filho de patrão... às vezes um mero almofadinha de subúrbio. Para o filho do patrão, grã-fino era o colega de estudos que tinha um Ford 1934 ou mesmo 33. Por sua vez, o dono do Ford 34 ou 33 considera grã-fino o outro colega, que tinha um escangalhado v.8. E assim por diante chegaríamos até aos automóveis de primeira classe, e à autêntica fauna granfinesca de nossos salões ricos.

Com o “medalhão”, até certo ponto deu-se o mesmo. O conceito de medalhão, que primitivamente só se aplicava  a certas altas figuras  da politicagem, da literatice ou do banqueirismo, se generalizou. Para um homem do povo, “medalhão” era o vizinho, velho funcionário aposentado que vivia de suas parcas rendas e se dava ao luxo arrogante de comprar um charuto por semana, insolentemente fumado na porta da farmácia mais próxima. Para o “medalhão” da porta da farmácia, “medalhão” era o vizinho Dr. X, homem que gozava da singular prerrogativa social de ter um título de bacharel, e até – suprema ventura! – de ter sido íntimo do ex-senador Y ou do ex-prefeito Z, a quem dera uma das filhas ou dos filhos como afilhado de casamento. Para o Dr. X por sua vez, “medalhão” era o seu conhecido Dr. Z., homem que já fora político e, como se não  bastasse essa honra olímpica, tinha no cofre algumas economias e na garagem um automóvel do velho, velhíssimo, tipo Berliet ou Mercedes com buzina de borracha. E assim por diante, até o autêntico medalhonismo de alto plano.

No entanto, a palavra “medalhão” não tem um sentido tão variável quanto a palavra “grã-fino”. Qualquer cafajeste de subúrbio pode ser chamado grã-fino hoje em dia pelos que têm menos dinheiro ou menos posição (...) do que ele. Mas a palavra medalhão tem, a despeito de sua plasticidade, uma constante invariável, e que se poderia até dizer inexorável: não se concebe um “medalhão” que não seja, simultaneamente, vistoso e inútil.

E, exatamente por isto, de modo geral, o povo chama de “medalhão” todo o indivíduo com fama feita e com valor nulo. Fixemos esta constante, que ela nos será preciosa para entender o que se segue.

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Quem conhece um pouco nosso Brasil - é provável que os outros países não estejam atrás - sabe perfeitamente que há umas certas fábricas de fabricar fama, manejadas por certos elementos. Estas máquinas têm a peculiaridade de produzir toda espécie de pseudo-notabilidades: grandes artistas, médicos oraculares, advogados admiráveis, engenheiros insuperáveis, músicos inexcedíveis, tudo isto pode ser facilmente fabricado para embair o povo incauto. E estas famas assim fabricadas têm uma resistência que zomba dos mais evidentes insucessos. O médico poderá mandar para a outra vida seus doentes até por um simples defluxo, o advogado poderá atirar involuntariamente à enxovia os mais inocentes dos seus clientes; o engenheiro poderá fazer ruir o mais aparatoso dos prédios; o artista poderá infligir ao bom gosto do próximo o mais inclemente dos tratamentos; nada disto tem importância: insultez le soleil, il brillera quand même [insultai o sol, ele brilhará do mesmo modo].

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Para a Ação Católica, o Santo Padre só quer valores espirituais autênticos. Por que não estender este critério a todas as associações?

 

Infelizmente, o brasileiro é um apaixonado dos “medalhões”. Se eu acreditasse em atavismo, eu veria um prenúncio desta nossa disposição na boa vontade com que nossos índios trocavam os mais preciosos objetos em troca de quinquilharia ordinária que os colonizadores lhes ofereciam. Não há país do mundo mais amigo de quinquilharia humana do que o Brasil. Certamente, outros o igualam. Nenhum, porém, pode excedê-lo. Porque o medalhonismo entre nós não é uma mania e nem mesmo um vício: é uma doença.

Desta mania, infelizmente, não são isentos muitos católicos cuja formação religiosa é deficiente. Confiando, para o apostolado, mais nos valores humanos do que nos sobrenaturais, estão sempre à procura de algum “homem importante”, para colocar à testa de suas organizações. E, infelizmente, indo à cata de valores humanos, em geral, ainda para cúmulo da desgraça, se deixam impressionar por valores... inteiramente sem valor, ainda mesmo sob o ponto de vista humano. É esta a pura realidade.

Esta atitude precisa acabar. Do contrário, teremos sempre que lutar com o peso de certas presenças pomposas e inúteis, que servem apenas para encher de ranço um ambiente que deveria estuar de energia e de Vida.

Enquanto tivermos a preocupação de colocar, nans nominatas, os Drs., os coronéis, ou os “honrados comerciantes” em posição de destaque apenas para efeito ornamental, não poderemos caminhar com passo célere.

Por isto mesmo, é preciso insistir sempre, e sempre com muita pertinácia, na atitude sensata que a Santa Sé prescreve quanto à Ação Católica, e que nós devemos generalizar a todas as outras associações religiosas: a qualidade fundamental para que alguém exerça cargos de grande responsabilidade não é a fama, mas a competência. E essa competência se mede, antes de tudo, pela virtude e em segundo lugar pelas qualidades de chefe e pela agudeza da inteligência e do senso prático. O que não for isto é medalhonismo, isto é aparência vã, estagnação, e finalmente decadência.

A meu ver, a guerra ao culto dos medalhões deve ser uma das maiores preocupações dos católicos no momento atual.

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No entanto, tenho uma ressalva a fazer. Por uma generalização muito do espírito democrático de nossa época, chegou-se ao absurdo de equiparar aos “medalhões” certas pessoas que conquistaram merecidamente os galões do generalato, e de lançar a pecha de incompetência a quem quer que sobressaia no meio de seus companheiros, por longos decênios de serviços prestado à Santa Igreja, e por uma idade provecta.

Sem dúvida, é na categoria dos de idade não pequena - digamos assim - que se recruta a maior parte dos “medalhões”. Isto, no entanto, não quer dizer que a causa católica, ainda hoje, não encontre mais preciosas dedicações em elementos que encaneceram no serviço da Igreja. Só mesmo em nossa época anarquizada se veria o absurdo de considerar a idade como uma circunstância vexatória, quando uma velhice digna é uma das mais respeitáveis e legítimas auréolas que o homem pode ambicionar neste mundo.

Se a guerra dos “medalhões” é uma necessidade, convém, no entanto, que ela seja feita com critério. Exterminemos o joio. Cuidado, porém, com o trigo!

 

Nota: Os negritos são deste site.

 


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