Plinio Corrêa de Oliveira

 

Cristãos acatólicos

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 24 de julho de 1938, N. 306, 1a. pág.

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Nosso século é muito menos diferente do século passado do que geralmente se imagina. Na aparência, o contraste entre a geração de Gambetta, Cavour e Disraeli, e a de Hitler, Mussolini e Roosevelt, é enorme. Na realidade, porém, se [se] examinarem bem de perto os princípios e os atos de uns e de outros, ver-se-á que as antíteses se restringem a um número relativamente reduzido de pontos. Mesmo quando os políticos de nossos dias parecem destruir a obra de seus antecessores, eles obedecem muitas vezes, de modo mais ou menos explícito e consciente, a preconceitos e opiniões que nossos pais também já nutriam. Não há dúvida, por exemplo, de que o Estado totalitário de Hitler faria tremer de horror qualquer alemão liberal do século XIX, e que a democracia semi-ditatorial de Roosevelt seria fulminada por Jefferson ou Lincoln com um anátema indignado. No entanto, não é menos certo que os princípios do Estado totalitário se encontram em gérmen nos autores que inspiraram o século XIX, e que, na extensa galeria dos chefes de governo liberais do século passado, bem poucos se encontrarão que não tenham aplicado, uma ou outra vez, contra seus adversários políticos, processos que a "Gestapo" do III Reich não desdenharia.

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"Onde, fora da Igreja Católica, se encontra o tipo de ‘homem cristão’ na plenitude que os Santos da Igreja atingiram?"

É exatamente isto que se dá também em Religião.

Renan e toda a sua escola intoxicaram o século XIX com o veneno subtil de um pseudo-entusiasmo pela figura maravilhosa do Filho do Homem. Repudiaram nEle a Divindade proclamada, no entanto, pelos traços inconfundíveis de sua Personalidade moral não menos do que pelos milagres historicamente demonstráveis e cientificamente insofismáveis, que espalhou à profusão. Aquele que, pela Judéia, "pertransit benefaciendo", passou fazendo o bem. Mas, a despeito dessa negação, se esforçaram por celebrar, com louvores ditirâmbicos, a grandeza moral de Jesus rebaixado de Homem-Deus e Redentor a um filósofo mais ou menos poético, que teria um lugar de destaque ao lado de Sócrates, Platão, Buda e Zoroastro, na lista dos maiores homens que a humanidade produziu.

Deste acervo de erros, cuja simples descrição é penosa para a pena de um jornalista católico, um ponto, entre outros, é muito de se reter: sendo Nosso Senhor Jesus Cristo um simples homem, todas as virtudes que praticou e todas as verdades que revelou são meramente humanas. Quer isto dizer que o homem, pelo simples esforço de sua razão e de sua vontade, pode elevar-se às culminações morais de Nosso Senhor, ou ao menos subir livremente um trecho de encosta maior ou menor, na grande escalada intelectual e moral que o Evangelho aponta.

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Deste modo meramente humano de considerar a grandeza divina do Salvador e os proveitos temporais de seu ensinamento, uma coisa, como vimos, fica de fora: é o seu aspecto capital, de cunho nitidamente religioso e sobrenatural.

Esta posição teve corolários políticos muito nítidos, já no século passado. O burguês que apreciava na Igreja exclusivamente seu aspecto de freio das ambições desregradas das massas; o marido ateu que tolerava a piedade católica no lar, pois que essa piedade gerava boas esposas e bons filhos; o educador sem Fé que achava (benfazeja) a prática da moral de Cristo nos adolescentes (e só neles, note-se) para libertá-los da jogatina e da embriaguez, toda esta gente, em última análise, repudiando o sobrenatural e portanto o Cristianismo, queria fruir só os frutos temporais que este produz em quantidade. No fundo, tudo isto é mentalidade à Renan, e só.

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No entanto, do século XIX para nossos dias, "muita água correu para o mar". Os problemas se fizeram cada vez mais agudos, as revoluções mais intensas, e as crises mais profundas.

Por isto, e porque a impiedade perdeu terreno, manifestamente, no espírito das massas, ninguém mais, hoje - ou ao menos muito pouca gente - se diz anticristã com todas as letras, nos arraiais anticomunistas.

Isto não obstante, a velha fobia liberal à disciplina da Igreja não morreu. E, no vocabulário de muitos estadistas, moralistas e sociólogos modernos, fez fortuna a palavra "cristão", empregada para designar uma solidariedade (é o termo) com o Evangelho, que não implicaria em nenhum ato de Fé, ou no máximo em uma vaga crença, em uma vaga sobrenaturalidade que se dá como auréola ao Salvador.

O "cristianismo" de uma importante facção, o hitlerismo não é senão isto. E "isto", em última análise, não é senão o livre-exame do protestantismo.

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"Por mais que se diga, se repita ou se proclame o contrário, só à luz do sobrenatural divino da Igreja pode [se] manter a flor do autêntico espírito cristão"

Essa aplicação característica da palavra "cristão" se encontra - quem diria? - também sob a pena nada nazista do Sr. Plinio Barreto. São da autoria desse jornalista, talvez sem igual no Brasil pelo talento, as seguintes linhas:

"Outros traços, todos precisos e nítidos, separam os dois tipos de homem. A conclusão do Sr. Amoroso Lima é que o tipo da humanidade perfeita é o que a Igreja Católica nos apresenta. Todos que aceitam esse tipo devem ‘procurar inserir no mundo moderno as qualidades sadias desse homem eterno, de modo a que a Idade Nova, para que tende o mundo de hoje, seja, se possível, uma idade em que os valores eternos prevaleçam sobre os valores efêmeros’.

"Conquanto de aparência sectária, a conclusão pode ser bem recebida por todos quantos, libertos de quaisquer servidões religiosas, desatados de todos os laços confessionais e rebeldes aos dogmas da Igreja, consideram o homem cristão, o homem em que o espírito domina a matéria, o homem que reconhece as hierarquias espirituais e a elas se submete, como o tipo ideal da criatura humana, como o modelo por que todos os seres racionais se devem compor. O homem cristão é o homem esculpido pela própria Razão. Só ele pode conquistar para si, na terra, a pequenina dose de felicidade que ela é capaz de proporcionar e concorrer para que os seus irmãos também conquistem a que lhes cabe. Os racionalistas mais intransigentes podem seguir de mãos dadas com o Sr. Amoroso Lima até ao extremo do caminho. Só terão que se apartar dele no momento em que arrebatado nas asas da fé, deixa a terra e se lança nos ares em demanda do céu".

Como se vê, S. S., "ad instar" de muitos pensadores do século XIX e das direitas européias contemporâneas, é adepto de um cristianismo sem Fé e sem Igreja, que é explicitamente acatólico.

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Que frutos esperar de tal "cristianismo"?

Não nos parece conveniente discutir. Um fato apenas: onde, fora da Igreja Católica, se encontra o tipo de "homem cristão" na plenitude que os Santos da Igreja atingiram? Onde o Francisco de Assis? Qual o Führer cristão que lave as chagas dos leprosos como São Luís e Santa Isabel? Qual o benfeitor cujo coração arda com o amor compassivo dos pobres de um Vicente de Paulo?

É em vão. Por mais que se diga, se repita ou se proclame o contrário, só à luz e ao calor do sobrenatural divino da Igreja, pode medrar a flor preciosa do autêntico espírito cristão. Para ser cristão, só há um caminho: a Igreja Católica.


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