Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Ainda “Os direitos do homem e a lei natural”

 

 

 

 

 

Legionário, 20 de fevereiro de 1944, N. 602, pag. 3

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No suplemento em retogravura do “Estado de S. Paulo”, um autor que se quis conservar no anonimato e assina simplesmente “E. R.”, fez alguns comentários sobre os recentes debates suscitados na imprensa católica pelo livro do sr. Jacques Maritain: “Os direitos do homem e a razão natural”. Sobre este artigo, não podemos deixar de tecer alguns rápidos comentários.

O ponto de vista essencial do sr. “E. R.”, ele o exprime na seguinte frase: “A mais velha das religiões, que é a liberdade, tomou a dianteira a todas as outras. Enquanto ela subsistir, as demais também vicejarão. É por esse ângulo naturalmente que Maritain encara a Igreja”. Em outros termos o bem supremo do homem é a liberdade. Ela deve ocupar na hierarquia dos valores o mais alto lugar, ela merece um culto superior a todos os outros cultos, na pena do sr. “E. R.” ela aparece como verdadeiro ídolo.

Mas, poder-se-ia pergunta ao sr. “E. R.”, se a liberdade é o maior dos bens, onde fica a verdade? É indiferente que a religião católica seja a verdadeira, ou a budista, ou a protestante, ou a maometana? O essencial não é que o homem acerte na escolha da religião verdadeira, mas que tenha a liberdade de acertar ou de errar, conforme seu capricho? Deve-se dar ao homem, em todos os terrenos, a liberdade de fazer o bem e o mal como entenda? Então o sr. “E. R.” é um anarquista.

É só em matéria de Religião que o homem pode fazer e propagar os disparates que entenda? Neste caso, o Estado não pode cercear nenhum abuso, desde que venha envolto em pretextos religiosos?

Se o sr. “E. R.” governasse o Brasil, permitiria aqui certa religião hindu que preceitua que a viúva seja queimada viva sobre a sepultura do marido? Não? Permitiria a propaganda dos protestantes “mórmons” que apregoam a mais indecente depravação dos costumes, o franco amor livre? Também não? Mas então todas as religiões são livres de propagar o que entendem, desde que não entrem em desacordo com as concepções do sr. “E. R.”. O sr. “E.R.” responderia, provavelmente apoplético, que só os cultos compatíveis com a “ordem pública e os bons costumes” tem liberdade de difusão. Mas então há um critério doutrinário pelo qual as religiões devem ser medidas, e não pode haver ampla e irrestrita liberdade de religiões, nem a liberdade de religiões é o maior de todos os bens. Isto, evidentemente, se o sr. “E. R.” é contrário à cremação de viúvas e ao amor livre dos mórmons.

Então, no que ficamos? Há uma famosa “ordem pública”, uns famosos “bons costumes” que limitam e condicionam essa divina liberdade de que o sr. “E. R.” é tão cioso. No que consiste essa “ordem pública”? A liberdade é o mais alto de todos os valores. Mesmo assim, esses dois são mais altos que ela. Quem os define, quem os conserva em seu sentido legítimo verdadeiro? Quem preservará de caruncho ou de abalos esses dois conceitos que são os mais altos valores do homem, as duas colunas da ordem humana segundo deve entender o sr. “E. R.”?

Digamos, em qualquer caso, que o sr. “E. R.” tenha lá suas doutrinas sobre o assunto. Evidentemente, o sr. “E. R.” entenderá que essas doutrinas devem ser protegidas pela polícia. Com efeito, chefe de polícia o sr. “E. R.”, ele soltará todos os carros blindados, atirará todos os gases lacrimogêneos, trancará no fundo de todas as suas enxovias os que propagarem religiões contrárias à “ordem pública e aos bons costumes”. Ou – insistimos – emitirá (fazemos-lhe a justiça de que não permitirá) a cruel queima das viúvas...

Pelo próprio mecanismo de suas ideias, a polícia do sr. “E. R.” conhecerá, pois, de questões religiosas, avaliará as religiões segundo um critério oficial fixado pelo Estado, e proscreverá, perseguirá, impedirá as que divergem desse critério. Quem diria? Chefe de polícia, o sr. “E. R.” seria necessariamente um grande inquisidor.

E livre-nos Deus do contrário. Contradizendo-se, o sr. “E. R.” cresceria em nossa estima, e prestaria ao país insigne benefício.

Mas esse grande inquisidor que tem uma ideia certa de “ordem pública” e de “bons costumes”, uma ordem objetiva, clara, verdadeira, que ele vê com toda a evidência que é certa, que ele entende que todo homem sensato deve ver como ele ver como ele, e em consequência da qual acha que todo homem que não vê como ele não é sensato – esse grande inquisidor teria em qualquer caso sérias dificuldades a enfrentar.

O sr. “E. R.” acha, por certo, que na questão do divórcio – damos um exemplo entre mil – é lícito pender-se para um ou outro lado, e que, portanto, seria uma violência contra a liberdade, a santa divina e intangível liberdade, proibir-se, quer a divorcistas quer a antidivorcistas, que propagassem suas ideias. Com efeito, para o sr. “E. R.” tanto uns como outros se conservam no terreno da “ordem pública e dos bons costumes”.

Entretanto, os antidivorcistas em geral não pensam assim. Pelo contrário, combatem o divórcio precisamente porque o consideram nocivo não só aos “bons costumes”, mas ainda à “ordem pública”. Assim seu conceito sobre uma e outra coisa – sobre a ordem pública e os bons costumes – é diverso do sr. “E. R”. São coisas que acontecem. O sr. “E. R.” entenderá que a polícia deve proibir o que é contra os bons costumes. Os antidivorcistas também. Logo, os antidivorcistas são pela proibição da propaganda a favor do divórcio, na imprensa. O sr. “E. R.” esbraveja, briga, se insurge, torna-se até perigoso para a “ordem pública”. Tudo isto por que? Porque algum chefe de polícia antidivorcista não tem o conceito do sr. “E. R.” sobre “ordem pública e bons costumes”. Ora, como ninguém tem o direito de divergir neste ponto do sr. “E. R.”, o sr. “E. R.” se revolta, se indigna, vocifera contra a autoridade. Em outros termos, também o sr. “E. R.” tem seus dogmas, e se irrita contra quem os transgrida. Autoridade, ele os impõe. Súdito, revolta-se contra os que não os aceitam. Qual a diferença entre o sr. “E. R.” e os que aceitam os dogmas católicos? Uma só, e muito pequena: as verdades em que cremos foram reveladas por Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro, e conservadas pelo infalível magistério da Igreja. Os dogmas do sr. “E. R.” lhe foram revelados por sua razão. A diferença não é outra... e “excusez du peu”.

***

O sr. “E. R.” é, pois, muito dogmático. Mais até do que nós. Nós aceitamos dogmas. Ele os elabora. Tanto ele quanto nós achamos que a polícia deve cogitar dos que violam certos dogmas. Um dos dogmas do sr. “E. R.” é que a Inquisição é uma instituição visceralmente injusta, por mais benignos que fossem, aliás, os seus juízos. Em tese, em princípio, a Inquisição é uma infâmia. Logo, o sr. “E. R.” prenderia e faria responder a processo o inquisidor Torquemada, de, aliás, pouco saudosa memória. Mas o sr. “E. R.” não é muito coerente, pois que acharia o cúmulo que Torquemada o mandasse prender e julgar. Por que? Torquemada tem um dogma pró-inquisição, como o sr. “E. R.” tem um dogma contra inquisitorial. Não é Torquemada tão livre como o sr. “E. R.”? E não, por que? Porque as ideias de Torquemada não são as do sr. “E. R.”. E, mais uma vez... “excusez du peu”.

O fato é que para o sr. “E. R.” há dogmas, há polícia protetora de dogmas, e há excomungados. O sr. “E. R.” excomunga, por exemplo, do rol dos homens dignos de viver, todos os “espíritos intolerantes, reacionários, inquisidores”. A expressão é vaga. Pelo conteúdo geral do artigo do sr. “E. R.”, parece que ele inclui nessa linha o Revmo. Sr. Pe. Arlinda Vieira S.J. É provável: um jesuíta! O sr. “E. R.” provavelmente não gosta dos jesuítas. O fato é que essa gente não tem lugar no mundo de hoje. Por que? Porque não pensa como o sr. “E. R.” sobre os conceitos de “ordem pública e bons costumes”.

Mas o curioso é que o sr. “E. R.” gosta muito do sr. Maritain. E tem lá suas razões muito boas. Fundamentalmente dissolvente em seus princípios, o sr. “E. R.” percebeu que na cidade “vitalmente cristã” ele, “E. R.”, poderia fazer em favor de seus dogmas os adeptos que entendesse, até que a sociedade deixasse de ser “vitalmente cristã” pelo triunfo do sr. “E. R.”. O sr. “E. R.” vê tudo isto, e se rejubila com tudo isto. Tem razão, sr. “E. R.”. É por isto mesmo que achamos muito avariada a sociedade “vitalmente cristã” do sr. Jacques Maritain.

Por fim, entramos em um terreno em que pensamos do mesmo modo: a “cidade fraternal”, a cidade “vitalmente cristã” é muito mais compatível com seus princípios de adorador da liberdade, do que com os nossos princípios de cristãos que colocam acima de tudo Aquele que disse: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida”. O caminho, a verdade, a vida, estão na Igreja e não no interconfessionalismo.


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