Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Tática jansenista

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de março de 1944, N. 606, pag. 5

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“Querem ser mais católicos que o próprio Papa”. “São representantes do Santo Ofício”. “Por que não denunciar estes erros à Autoridade Superior em vez de trazê-los a debate nas páginas de um jornal?” Eis, entre várias outras frases típicas que representam as acusações comumente formuladas contra os jornalistas católicos empenhados na luta em defesa da Igreja e de sua sã doutrina.

Como veremos pelo trecho que a seguir vamos transcrever do livro “O liberalismo é pecado” do Padre Sardá y Salvani, o argumento não é novo, pois já servia no século passado aos sectários da heresia liberal, que por esse meio queriam colocar uma mordaça na boca de seus mais destemidos adversários.

Mais uma vez fica assim demonstrado o nexo existente até na própria tática entre os erros dos dias que correm e os forjados nas tenebrosas oficinas em que nos últimos séculos se prepararam os mais traiçoeiros golpes revolucionários contra a Santa Igreja, a obra de Redenção do gênero humano realizada na terra pelo seu Divino fundador.

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“Tudo o que acabais de expor - dirá alguém ao chegar a este ponto - encontra na prática uma dificuldade gravíssima. Falastes de pessoas e escritos liberais, recomendando com todo ardor que fujamos como da peste deles e até dos seus mais remotos laivos de liberalismo. Mas quem se atreverá, por si só, a qualificar de liberal tal pessoa ou escrito sem interpor o veredictum decisivo da Igreja docente, que os declare tais?

Eis aqui um escrúpulo muito em voga de alguns anos para cá por parte dos liberais e dos mais ou menos influenciados pelo liberalismo: teoria nova na Igreja de Deus, e que temos visto com assombro perfilada por quem nunca imagináramos pudesse cair em tais aberrações; teoria além disso tão cômoda para o demônio e seus sequazes que, apenas um bom católico os ataca ou desmascara, imediatamente os vemos acudir por ela e refugiar-se em suas trincheiras, perguntando com ares de magistral autoridade: “E quem sois vós para qualificar-me de liberal, a mim e ao meu jornal? Quem vos constituiu mestres em Israel para declarar quem é bom católico e quem não o é? É a vós que se há de pedir patente de Catolicismo?”

Esta última frase sobretudo, fez fortuna, como se diz, e não há católico com laivos de liberal que a não aproveite nos casos graves e difíceis, como o seu último recurso.

Vejamos, pois, o que há a tal respeito e se é sã a teologia que expõem os católicos liberais sobre este ponto. Ponhamos a questão em toda a sua limpidez e clareza. É a seguinte: para qualificar uma pessoa ou um escrito de liberais, deve aguardar-se sempre o veredictum concreto da Igreja docente sobre tal pessoa ou escrito?

Respondemos, categoricamente, que de modo nenhum.

A ser certo este paradoxo liberal, fora indubitavelmente o meio mais eficaz para que na prática ficassem sem efeito todas as condenações da Igreja com respeito tanto a pessoas quanto a escritos.

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A Igreja é a única que possui o supremo magistério doutrinal de direito e de fato, sendo a sua suprema autoridade personificada no Papa, a única que definitivamente e sem apelação pode qualificar doutrina em abstrato e declarar que tais doutrinas as contêm ou ensina em concreto o livro de tal ou qual pessoa: infalibilidade não por ficção legal, como a que se atribui a todos os tribunais supremos da terra, mas real e efetiva, emanada da contínua assistência do Espírito Santo, e garantida pela promessa solene do Salvador: infalibilidade que se exerce sobre o dogma e sobre o fato dogmático, e que tem, portanto, toda a extensão necessária para deixar perfeitamente resolvida, em última instância, qualquer questão.

Pois bem, tudo isto se refere ao veredictum último e decisivo, ao veredictum irreformável e inapelável, ao veredictum que temos chamado de última instância. Mas não exclui para luz e guia dos fiéis outras decisões menos autorizadas, porém, também muito respeitáveis, que não podem desprezar-se, e que podem até obrigar em consciência o fiel cristão. São as seguintes, e rogamos ao leitor que fixe bem a sua gradação:

1.a – A dos Bispos em suas dioceses. Cada Bispo é juiz em sua diocese para o exame das doutrinas e qualificação delas e declaração de quais livros as contêm e quais não. O seu veredictum não é infalível, porém é respeitabilíssimo e obriga em consciência, quando não está em evidente contradição com outra doutrina previamente definida ou quando não o desautoriza outro veredictum superior.

2.a – A dos Párocos em suas freguesias. Este magistério está subordinado ao anterior, porém goza, em sua reduzida esfera das mesmas atribuições. O Pároco é pastor e pode e deve, como tal, descriminar os pastos salutares dos venenosos. Não é infalível a sua declaração, porém deve ter-se por digna de respeito, segundo as condições ditas no número anterior.

3.a – A dos diretores de consciências. Apoiados em suas luzes e conhecimentos, podem e devem os confessores dizer a seus dirigidos o que lhes pareça a respeito de tal doutrina ou livro sobre que sejam consultados; verificar segundo as regras da moral e da filosofia se tal leitura ou companhia pode ser perigosa ou nociva ao seu confessado, e até podem com verdadeira autoridade intimar-lhe que se retire delas. Tem, pois, também o confessor uma certa autoridade acerca de doutrinas e pessoas.

4.a – A dos simples teólogos consultados pelo fiel secular. Peritis in arte credendum, “deve se dar crédito a cada um no que pertence à sua profissão ou carreira“. Não se entende que tenham verdadeira infalibilidade, mas sim uma certa competência especial para resolver os assuntos relacionados com sua profissão. Ao teólogo graduado dá a Igreja um certo direito oficial para explicar aos fiéis a ciência sagrada e suas aplicações. No uso deste direito escrevem os autores sobre teologia, e classificam e falam segundo o seu leal saber e entender. É, pois, certo que gozam de uma certa autoridade científica para falar em assuntos de doutrina e para declarar que livros a contém ou que pessoa as professam. Assim, os simples teólogos censuram e classificam, por mandado do Prelado, os livros que se dão à publicidade, e garantem com seu nome a ortodoxia deles. Não são infalíveis, porém servem ao fiel de norma primária nos casos quotidianos, e devem os fiéis confiar em sua decisão até que a não anule outra superior.

5.a – A da simples razão humana devidamente ilustrada. Sim, senhor, até isto é lugar teológico, como se diz em teologia, quer dizer, é critério científico em matéria de religião. A Fé domina a razão; esta deve estar-lhe em tudo subordinada. Porém é falso que a razão nada possa por si só; é falso que a luz inferior acesa por Deus no entendimento humano não ilumine nada, ainda que não ilumine tanto como a luz superior. Permite-se, pois, e até se prescreve ao fiel discorrer sobre o que constitui objeto da sua crença, tirar daí consequências, fazer aplicações e deduzir paralelos e analogias.

Assim pode o simples fiel desconfiar logo à primeira vista de uma doutrina nova que se lhe apresente, segundo o maior ou menor desacordo em que a veja, com outra já definida. E pode, se esta desarmonia é evidente, combatê-la como má, e taxar de mau o livro que a sustenta. O que não pode é definí-la ex cathedra; porém, tê-la para si como perversa e como tal defini-la aos outros para seu governo, dar a voz de alarme e disparar os primeiros tiros, isso pode fazê-lo o fiel leigo; assim se tem feito e o aplaudiu sempre a Igreja. E isto não é fazer-se pastor de rebanho, nem sequer humilde zagal (pastor): é simplesmente servir-lhe como o cão para dar aviso. Oportet adlatrare canes, recordou a propósito, muito oportunamente, um grande Bispo espanhol, digno dos melhores séculos de nossa história.

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Porventura não o entendem assim os mais zelosos Prelados, quando em repetidas ocasiões exortam os fiéis a abster-se dos maus jornais, sem indicar-lhes quais sejam, persuadidos como estão, de que lhes bastará seu natural critério ilustrado pela Fé para distingui-los, aplicando as doutrinas já conhecidas sobre a matéria? Não figuram à frente dele com o caráter de Regras gerais do Index certos princípios a que deve ater-se um bom católico para considerar como maus muitos impressos que o Index não designa, porém que à luz das regras dadas quer que julgue e fale por si próprio cada um dos leitores?

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Subamos, porém, a uma consideração mais geral. De que serviria a regra de Fé e costumes, se cada caso particular não pudesse fazer imediata aplicação dela o simples fiel, mas devesse andar de contínuo e consultar o Papa e o Pastor diocesano?

Assim como a regra geral de costumes é a lei, e não obstante tem cada um dentro de si uma consciência (dictamen practicum) em virtude da qual faz as aplicações concretas da dita regra geral, sem obstar que seja corrigido, se se extravia na sua apreciação; assim na regra geral do que se há de crer que é a autoridade infalível da Igreja, consente esta, e há de consentir, que faça cada um, com o seu critério particular, as aplicações concretas, sem prejuízo de corrigí-lo e obrigá-lo à retratação, se porventura erra.

É frustrar a regra superior da Fé, e fazê-la absurda e impossível, exigir a sua concreta e imediata aplicação pela autoridade primária em cada caso, de cada hora e de cada minuto.

Há aqui um certo jansenismo feroz e satânico, como o que havia nos discípulos do malfadado Bispo de Iprès (Jansênio, n.d.c.) ao exigir para a recepção dos Santos Sacramentos disposições tais que os tornavam absolutamente impossíveis os homens a cujo proveito foram destinados.

O rigorismo ordenancista que aqui se invoca é tão absurdo como o rigorismo ascético que se pregava em Port Royal e seria ainda de piores e mais desastrosas consequências. E senão, observe-se um fenômeno.

Os mais rigoristas a este respeito são os mais endurecidos sectários da escola liberal. Como se explica esta aparente contradição? Explica-se muito claramente, recordando que nada conviria tanto ao liberalismo quanto essa mordaça legal posta na boca e na pena de seus mais destemidos adversários. Seria na verdade um grande triunfo para ele, chegar a conseguir, que sob pretexto de que ninguém pode falar com voz autorizada na Igreja senão o Papa e os Bispos, emudecessem de repente os De Maistre, os Valdegamas, os Veuillot, os Villoslada, os Aparisi, os Tejado, os Orti y Lara, os Nocedal, de que sempre por divina misericórdia houve e haverá gloriosos exemplares na sociedade católica.

Isso quereria o liberalismo, e que fosse a mesma Igreja que lhe fizesse o grande serviço de desarmar os seus mais ilustres campeões”.


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