Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

Previdência totalitária

 

 

 

 

 

Legionário, 3 de setembro de 1944, N. 630, pag.5

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Noticiou recentemente a imprensa diária que, convocados pelo Sr. Carlos Vital, presidente do Instituto de Resseguros do Brasil, na qualidade de presidente da comissão incumbida de elaborar o projeto da Lei Orgânica da Previdência Social, se reuniram os presidentes dos diversos institutos e Caixas de Aposentadorias e Pensões para ouvirem uma exposição das linhas gerais do projeto elaborado para remodelar inteiramente o atual sistema de previdência social no Brasil.

Segundo essas linhas gerais, será criada uma instituição única em que serão fundidos todos os atuais Institutos e Caixas, formando um verdadeiro plano Beveridge nacional, em certos pontos bem mais audacioso que o surgido nas ilhas britânicas.

Com efeito:

a) destina-se o plano do Dr. Carlos Vital a assistir a todos os habitantes do território nacional, tanto brasileiros quanto estrangeiros domiciliados, sem meios de manutenção por motivos de invalidez temporária ou permanente ou pela privação daqueles de que dependam ou não se achem em condições de angariar esses meios.

b) Todo o habitante do território nacional, tanto brasileiro quanto estrangeiro legalmente domiciliado no país, que exerça profissão lucrativa ou que aufira proventos pecuniários de outras fontes, é considerado contribuinte obrigatório da Previdência Social, inclusive os trabalhadores rurais ainda fora do regime de previdência;

c) A contribuição para a Previdência Social será fixada em uma taxa única;

d) Os benefícios também obedecerão a um sistema padronizado e uniforme;

e) A aposentadoria mínima corresponderá ao salário mínimo regional, deduzida apenas a percentagem relativa a despesas que cessam com a inatividade, e as pensões por morte terão em vista os encargos de família do trabalhador, sendo crescentes com o número de filhos menores.

f) As reservas da Previdência Social serão aplicadas de preferência em realizações e iniciativas de caráter assistencial, tais como na construção de cidades e conjuntos residenciais para as classes trabalhadoras;

g) A assistência médico-hospitalar será organizada em larga escala;

h) Será concedida pensão de velhice;

i) serão amparados os inválidos e menores;

j) serão indenizadas as vítimas de acidentes do trabalho;

k) Também as vítimas de moléstia professional;

l) O plano compreenderá o fornecimento de utilidades a preços reduzidos, tais como alimentos básicos, vestuários rudimentares, medicamentos e outros bens de uso doméstico imprescindível.

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Fazemos sinceros votos para que essas linhas gerais do projetado plano de Previdência não sejam aprovadas pelo governo brasileiro, que mais de uma vez tem declarado querer seguir a doutrina da Igreja em matéria de legislação social.

E sem entrarmos na apreciação da viabilidade desse plano, do ponto de vista técnico e das profundas modificações que sua adoção introduziria em nossa vida econômica, seja-nos lícito tecer em torno do assunto algumas considerações de caráter geral.

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Há dois grupos extremos, que assumem na questão social, uma atitude condenada pela Igreja. De um lado se acha o grupo individualista, da velha escola liberal, que não admite interferência do Estado ou da sociedade junto às atividades dos indivíduos. De outro lado se acha o grupo totalitário, que deseja socializar todos os recursos ou estabelecer um coletivismo estatal.

O Estado não deve ser relegado à função de simples gendarme, como no caso da escola liberal, pois tem a obrigação de promover o bem comum. Por outro lado, não deve tornar-se totalitário na tentativa de preencher todas as funções sociais, com o que recairá no erro do individualismo, pois, eliminando o conjunto das associações, fará com que se defrontem a sós os indivíduos e o Estado. “E tal deformação ou ordem social, diz Pio XI na (Encíclica) Quadragesimo Anno, acarreta não leve prejuízo para o mesmo Estado, sobre o qual todo o peso que aquelas corporações destruídas não podem mais carregar, razão pela qual se achava oprimido por uma infinidade de encargos e de negócios”.

Segundo o mesmo Soberano Pontífice, deve ficar firme um princípio importantíssimo na filosofia social: isto é, “como é ilícito tirar aos indivíduos o que eles podem fazer com suas próprias forças e indústria para confiá-lo à comunidade, assim é injusto incumbir a uma maior e mais alta sociedade o que pelas menores e inferiores comunidades pode ser feito. Este é ao mesmo tempo um grave prejuízo e uma perturbação para a reta ordem social; porque o objeto natural de qualquer intervenção da mesma sociedade é o de auxiliar de modo completo os membros do corpo social, não já destruí-los e absorvê-los”. (Quadragesimo Anno).

E segundo Leão XIII “o que se pede aos governantes é um concurso de ordem social, que consiste em toda a economia das leis e das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo que da mesma organização e do governo da sociedade brote espontaneamente e sem esforço a prosperidade, tanto pública como particular.

Tal é, com efeito, o ofício da prudência civil e o dever próprio de todos que governam. Ora, o que torna uma nação próspera são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da religião e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo gênero; todas as coisas que, se não podem aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos” (Rerum Novarum).

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Recomenda a Igreja que as medidas de previdências social, embora contando com o apoio decidido dos governantes, que as devem favorecer e incentivar, sejam da iniciativa dos próprios patrões e operários e das diversas instituições devidas à iniciativa particular, “que tem por fim, socorrer os operários, bem como as suas viúvas e órfãos, em caso de morte, de acidentes ou de enfermidades; as patronagens, que exercem uma proteção benéfica para com as crianças dos dois sexos, os adolescentes e os homens feitos. Mas, o primeiro lugar pertence às corporações operárias, que abrangem quase todas as outras” (Rerum Novarum). E acrescenta o Soberano Pontífice que “os poderes públicos não podem legitimamente arrogar-se nenhum direito, sobre elas, nem atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las, protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las”.

E acrescenta mais além:

Proteja o Estado estas sociedades fundadas segundo o direito; mas não se intrometa no seu governo interior e não toque nas molas íntimas que lhes dão vida; pois o movimento vital procede essencialmente de um princípio interno e extingue-se facilmente sob a ação de uma causa externa”.

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É sabido que o Estado não tem, em matéria de assistência, senão uma função supletiva.

E é o que, depois de Leão XIII, nos ensina Pio XI, ao mostrar como a Encíclica Rerum Novarum enquanto vacilavam as máximas do liberalismo, que já há longo tempo entravavam a obra eficaz dos governantes, impeliu os povos a promover com maior sinceridade e mais empenho a política social:

“De tal contínuo e indefesso labor surgiu um novo ramo da disciplina jurídica de todo desconhecida nos tempos passados, o que defende vigorosamente os sagrados direitos dos trabalhadores, direitos que lhes proveem da dignidade de homens e de cristãos; pois que estas leis se propõem a proteção dos interesses dos trabalhadores, máxime das mulheres e dos meninos: a alma, a saúde, as forças, a família, a casa, as oficinas, os infortúnios do trabalho; numa palavra, tudo o que diz respeito à vida e à família dos trabalhadores. E, se tais estatutos não concordam por toda a parte e em tudo com as normas de Leão XIII todavia não se pode negar que em muitos pontos se sente o efeito da Encíclica Rerum Novarum, à qual, portanto, é para se atribuir em parte assaz notável o melhorar das condições dos trabalhadores”.

Ensinava, enfim o sapientíssimo Pontífice como os patrões e os próprios operários podem grandemente contribuir para isso com instituições que se destinam a proporcionar socorros aos necessitados e a aproximar e unir as duas classes entre si. Porém, o primeiro lugar entre tais instituições queria ele fosse atribuído às corporações que abrangem exclusivamente os operários ou juntamente patrões e operários” (Quadragesimo Anno).

A corporação é uma instituição social destinada a se situar entre os indivíduos e o Estado, e uma de suas funções é justamente defender os interesses de seus componentes junto ao governo sendo, portanto, inconcebível que o Estado chame tais entidades para sua órbita ou que institua organismos destinados a sufocar os similares devidos à iniciativa privada, à custa da contribuição obrigatória dos próprios particulares.

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Administrador do bem comum o Estado deve proteger, velar e garantir os direitos individuais e coletivos. Não se conclui daí que o Estado deva prover a tudo em todos os domínios da atividade humana.

E assim como o Estado, procede ilícita e injustamente quando estabelece, como na Alemanha nazista, o monopólio da educação da mocidade, usurpando os direitos da Igreja e da família, do mesmo modo age totalitariamente quando pretende substituir, por uma pã-corporação estatal os vários órgãos associativos de iniciativa privada, destinados à assistência social das várias classes e profissões.

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Segundo a organização sindical e corporativa do Estado fascista, somente um sindicato é reconhecido juridicamente em caráter de monopólio, pois que somente ele pode representar, respectivamente, os operários e os patrões. A inscrição ao sindicato é facultativa, e só neste sentido, diz Pio XI, tal organização sindical pode se dizer livre, visto que a quota sindical e certas taxas especiais são obrigatórias para todos os que fazem parte de uma dada categoria sejam eles operários ou patrões, como para todos são obrigatórios os contratos de trabalho estipulados pelo sindicato jurídico, apesar de se reconhecer a existência de fato de outras associações profissionais.

Ora, diz o Pontífice da Ação Católica, “devemos declarar vermos também não faltar quem receie que o Estado se substitua às livres atividades, em vez de se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio, que a nova organização sindical e corporativa venha a ter caráter excessivamente burocrático e político, e que, não obstante as vantagens gerais acenadas, possam servir para intentos particulares mais políticos do que destinados ao encaminhamento e ao início de uma ordem social melhor” (Quadragesímo Anno).

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O perigo de que se faz eco o Santo Padre Pio XI com relação ao regime sindical e corporativo quando existente em Estados fascistas, também se apresenta nesse plano de verdadeiro monopólio de previdência esposado pelo Sr. Carlos Vital, isto é, por melo dele o Estado se substituirá às livres atividades, em vez de auxiliar e amparar a iniciativa particular das instituições formadas por patrões e operários.

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William Henry Beveridge (1879-1963), economista e sociólogo britânico, membro do Partido liberal, cujo famigerado plano leva seu nome por havê-lo redigido em 1942

Foi esse aspecto de indébita intervenção do Estado que provocou as restrições da opinião pública inglesa contra o Plano Beveridge. O LEGIONÁRIO a esse respeito publicou vários comentários da imprensa católica da Inglaterra, em que se frisava o caráter socialista do conjunto das medidas preconizadas pelo famigerado plano.

Não faltou ao Sr. Beveridge o estilo literário-demagógico ao se referir à miséria, à doença, à ignorância, à promiscuidade e à ociosidade que assolam a Humanidade na estrada da reconstrução de após guerra.

Procedendo como se não existisse o pecado original, desejam os partidários de tais planos fazer acreditar que a simples adoção dessas medidas de caráter atuarial e de assistência material será suficiente para livrar o mundo desses terríveis flagelos.

Ora, sem a reforma dos corações, sem a restauração dos costumes cristãos os meios sugeridos pela prudência humana, por mais eficazes que sejam julgados, pouco ou nenhum efeito lograrão.

E se a essa ausência de preocupação quanto à finalidade última do homem se aliam processos totalitários de resolução da questão social, aí é que mais alarmantemente se impõe a necessidade de resistência ao que não passa de uma verdadeira tentativa de recondução da sociedade ao cesarismo pagão de que a humanidade foi salva pela ação benfazeja da Santa Igreja.


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