Plinio Corrêa de Oliveira

 

Comentando...
 
Palimpsestos

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de novembro de 1944, N. 639, pag. 2

  Bookmark and Share

 

Para dizer a verdade, sentimo-nos embaraçados, ao iniciar esta crônica. Temos sob os olhos uma “Nota do Rio”, do sr. V. Cy, cujo título encima estas linhas. Afinal de contas, a profissão de jornalista impõe uma responsabilidade não pequena, a que não é possível fugir, um dever elementar de honestidade para com o público e para com a inteligência, que não pode ser postergado. Ora, o sr. V. Cy portou-se com uma, digamos, leviandade que, para sermos francos, não lhe fica bem de modo algum, e é extremamente chocante numa pessoa já de idade.

Eis o que disse, em suma, o sr. V. Cy: a Igreja rejeitou, com horror, todo o legado espiritual da Antiguidade, e imergiu propositalmente os povos na mais completa ignorância, pois tinha medo da cultura. Assim, vieram a perecer inestimáveis monumentos do saber humano. Muitos pergaminhos, contudo, não foram destruídos, mas simplesmente atirados aos sótãos, como inutilidades. Mais tarde, porém, alguns monges sentiram cócegas de escrever; desentulharam, então, os pergaminhos, rasparam-nos apagando o que neles estava escrito [“palimpsesto”, vocábulo originário do grego e que significa pergaminho que se raspa para escrever novo texto, n.d.c.], e, depois, começaram a redigir tratados sobre assuntos úteis à salvação dos fiéis, tal seja, por exemplo, “qual a distância que medeia entre as sobrancelhas do Padre Eterno”. Entretanto, nem tudo se perdeu, pois, passada a noite milenar da idade média (isto a gente lê, cantando, como outrora o sr. V. Cy decorou a tabuada), a ciência descobriu meios de revelar novamente as preciosidades latentes sob as garatujas dos monges: são os palimpsestos. E o sr. V. Cy afirma que viu tudo isto numa Enciclopédia. Nós dizemos que o sr. V. Cy deve rifar a sua Enciclopédia. Outras coisas muitíssimo mais caras têm sido rifadas com pleno êxito.

Pela Enciclopédia do sr. V. Cy, toda a literatura patrística, o renascimento carolíngio, o esplendor cultural dos séculos XII, XIII e XIV se resumem nisto: medir a distância, que separa as sobrancelhas do Padre Eterno. E Dante, que fez Dante em toda a sua imensa obra literária? Mediu a distância que medeia entre as sobrancelhas do Padre Eterno? É o que está escrito lá na Enciclopédia do sr. V. Cy. A coisa, evidentemente, é cabulosa.

Porém, nós estamos certos de que estamos chovendo no molhado. O primeiro a não acreditar na Enciclopédia é o próprio dono dela, o sr. V. Cy. Todos lhe conhecemos a inteligência e sabemos perfeitamente que ele jamais endossaria convictamente aquelas idiotices, já definitivamente pulverizadas pela crítica histórica. Mas, então, como explicar o fato? Ah! É que nós vivemos uma época muito semelhante a uma outra, em que houve um homem que perguntou sem muito interesse: “Quid est veritas? [o que é a verdade?]”, e pouco depois lavou as mãos numa bacia que ficou célebre.


Bookmark and Share