Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

As bolotas do filho pródigo

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de novembro de 1944, N. 641 pag. 5

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O LEGIONÁRIO em seu último número publicou um telegrama de Londres, no qual Lorde Selborne, ministro da Guerra Econômica, expressa seus temores de que se uma maioria socialista se registrar novamente na eleição geral, isso significará a continuação da regulamentação do Estado sobre a vida do povo, dos esmagadores impostos e da substituição gradual dos empreendimentos privados pelo monopólio do Estado.

Em uma palavra, Lorde Selborne teme para o grande país aliado o advento do Estado totalitário socialista.

Também já se referiu o LEGIONÁRIO às tendências coletivistas e excessivamente centralizadoras ao “Plano Beveridge” que faz demagogia com os gigantes Miséria, Doença, Ignorância, Promiscuidade e Ociosidade, que assolam a Humanidade. Com seu Plano, pretende o sr. Beveridge pôr a Miséria fora de combate, substituindo a insistência nos deveres pela insistência nos direitos, e a caridade pessoal pela assistência impessoal e coletiva.

Não são poucos os que temem que esse plano de seguros sociais além de representar uma indevida intervenção do Estado na vida social e econômica daquele grande país, ressuscite a antiga Lei dos Pobres, de triste memória. E neste sentido torna-se muito oportuno evocar as tentativas anteriores, feitas na Inglaterra protestante, para resolver o problema da assistência aos necessitados. Veremos, pelo seguinte trecho de uma carta de Augustin Cochin a um publicista e filósofo francês do século passado, que são grandes as analogias entre os erros do passado e as idéias aerodinâmicas do presente...

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Augustin Cochim (1876-1916), histórico e sociólogo francês

A reforma protestante faz transbordar todos os males do pauperismo. Três anos depois de haver feito, numa lei sobre os pobres, o mais melífluo dos elogios às ordens mendicantes, Henrique VIII suprime todos os mosteiros (1539). Seus bens, que Burnet avaliou em um décimo do reino, são confiscados e, em lugar de serem dados aos pobres, se dissipam inteira e rapidamente. Bem sabeis, meu caro amigo, como o protestante Selden lealmente reconhece os resultados desastrosos desse crime, e os eloquentes pesares que ele inspirou em nossos dias a um outro protestante, Disraeli.

A Henrique VIII cabe a dupla vergonha de haver fechado a fonte da esmola, e ao mesmo tempo de haver desencadeado o flagelo das leis.

Sem dúvida, já haviam sido tomadas medidas legislativas sobre o assunto desde os tempos mais recuados. O domicílio, esse laço natural entre o homem e o lugar que o viu nascer e viver por longos anos, havia sido frequentemente definido em favor do habitante. Vê-se sempre a preocupação, posto que por motivos diferentes, de emprestar uma grande importância ao domicilio, em todos os momentos da existência das nações, na hora em que a invasão se transforma em ocupação, em que o homem se fixa e se radica ao solo, na hora em que ele repele por sua vez as novas invasões e defende seus direitos contra os arrivistas, enfim, na hora em que a multiplicidade de suas relações civis ou comerciais torna necessário o estabelecimento de um ponto jurídico, centro oficial de seus negócios e de sua família. Coode cita textos sobre o domicílio, extraídos de leis saxônicas, dinamarquesas e anglonormandas do século sétimo e oitavo ao século doze. O pobre, como todos os outros habitantes, tem necessidade que seu domicílio seja fixo, e é de início em seu benefício que as leis e sobretudo as prescrições da Igreja tratam as mais caridosas regras de hospitalidade.

Sem dúvida ainda outras leis haviam sido justamente consagradas à repressão da vagabundagem, e nessas leis, como nas de outros países, da mesma época, o espírito brutal dos séculos feudais e o caráter particularmente duro da raça anglo-saxônica se manifestaram através de penas que parecem bem cruéis em uma época como a nossa, que não mais vê a vagabundagem se transformar em verdadeiro banditismo armado (leis de Henrique III, 1235, Eduardo I, 1285, Eduardo III, 1349-1363, Ricardo II, 1388, Henrique IV, 1402, Henrique V, 1413, Henrique VI, 1427, 1444, Henrique VII, 1495, citadas por Coode). Mas, a partir de Henrique VIII, essa brutalidade não mais tem abrandamento. Não se lê, nos textos, outra coisa a não ser as palavras galés, pão e água, açoites, cadeias, ferro em brasa na testa, orelha cortada, cadafalso. “Esta parte de nossa história, escreveu Richard Burn em 1764, se assemelha por completo à história dos selvagens da América, com todos seus rigores, exceto a tatuagem”. E que é a tatuagem perto da crueldade dessa lei verdadeiramente pagã de Eduardo VI (Eduardo VI, c. 3), que dispõe que os mendigos serão reduzidos à escravidão em favor de quem os denunciar ou, se este recusa esse opróbrio, em favor da comuna?

Mas, sem insistir sobre essa atrocidade, a que a indignação pública fez prontamente justiça, é necessário constatar que três princípios, em matéria de assistência, remontam à pseudo-reforma:

* A Henrique VIII (27, Henrique VIII c. 25, 1536), a taxa obrigatória;

* A seu filho Eduardo VI (I, Eduardo VI, c. 3, 1547), o direito de levar pela força o pobre a seu domicílio de assistência, direito reforçado por Isabel (14 Isabel, c.  5, 1572), depois por uma lei de Carlos II (14, Carlos II, 1662), à qual se atribui comumente todo o mal, e que passara até então desapercebida;

* À sua filha Isabel, a obrigação para as paróquias, de arranjar trabalho para os pobres, ou o que se denomina hoje direito ao trabalho.

Os autores protestantes acusam sobretudo a medida de Carlos II, mas é incontestável que essas três medidas são a consequência uma da outra. Se cada paróquia deve alimentar seus pobres, não na medida da livre caridade de seus habitantes, unidos à Igreja (o que constitui princípio de várias bulas papais), mas em virtude de uma taxa obrigatória, é claro que por um lado o pobre tem o direito de exigir que o alimentem, e por outro lado tem-se o direito de enviá-lo ao lugar em que deve ser alimentado. Ora (e aí está a linha delicada que é difícil não ultrapassar), na aparência, nada mais simples, na realidade, nada mais desastroso. A assistência, que de mais justo, o domicílio, que de mais natural? Sim, mas a assistência forçada é o imposto desigual e ilimitado posto em lugar da caridade; o domicílio forçado em uma das 15.535 comunas da Inglaterra, é uma medida que dá a um pobre homem o décimo quinto milésimo de seu país para prisão e muda as outras 15.534 em outras tantas fortalezas cuja porta lhe é fechada. (...)

Todas essas leis posteriores à pseudo-Reforma oscilam entre dois extremos: ou se desafiam os ricos, e eles são taxados; ou se desafiam os pobres, e eles são arrebanhados, punidos, perseguidos. “Toda essa legislação, dizia Pitt em 1796, enxertando maus remédios sobre maus princípios, nada produziu senão confusão e desordem”.

Seria necessário um volume para resumir o que dizem todos os que assinalam os resultados desastrosos do sistema de caridade legal na Inglaterra, resultados que é bom que se metam sob os olhos dos que desejam implantar o mesmo sistema em França. Mas, sem entrar em outros detalhes, creio ser muito moderado ao pedir que me concedam somente os dois pontos seguintes: o caráter geral das leis que acabamos de citar não é nem a confiança na caridade do rico, nem uma grande ternura pelo pobre, elas não respiram nem inspiram caridade.

A própria abundância dessas leis não prova uma grande abundância de virtudes. Quando a lei toca tão perto a ordem moral, é para impor as virtudes que a religião não mais é capaz de inspirar. A lei exterior vem assim em socorro da lei interior deficiente.

Chega-se, portanto, sempre, quer estudando o estado dos pobres, quer procurando as causas da pobreza, ao analisar os males da indústria, ao percorrer as leis, à constatação desse fato principal: a insuficiência da ordem moral na Inglaterra.

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Ora, as reformas de 1834, que constituem o último período da legislação caritativa, vêm como a propósito para confirmar esta apreciação. Com efeito, tais reformas, aliás pouco importantes, se se excetuar a criação do “Poor law board”, e aquelas que se seguiram, são devidas a um movimento caritativo verdadeiramente muito poderoso e notável. Mas em que espírito se inspira?

Antes de tudo, no desejo de fazer intervirem cada vez mais a lei e o poder central. Pedem-se à lei medidas sobre todas as condições da vida do trabalhador: habitação, salário, horas de trabalho, instrução primária, leituras, diversões, casamentos e sobre todos os meios de distribuir a caridade, taxas, associações, doações e legados, fundações, etc. Pedem-se ao poder central agentes, escritórios, regras para pôr em movimento todas essas leis. Enfim, pedem-se ao Tesouro novas contribuições, e novos sistemas de financiamento: sistema de lorde Malmesburg, sistema de d'Israeli, sistema de Coode, sistema de Pashley (sem falar nas promessas do livre cambismo), e todos esses sistemas, que nada fazem senão deslocar em vez de diminuir o fardo, sempre visam substituir através de combinações diversas, por um encargo geral os encargos locais.

Assim, todo o mundo pede que o Estado chame a si cada vez mais a tarefa de remediar pela lei os vícios que a moral não corrige suficientemente, e o Estado se entrega a essa tarefa com resolução.

Não exagero. Não quero insinuar que as leis de nada valham, que tais esmolas não façam bem algum, que não sejam úteis as reformas do direito civil ou das leis econômicas e as mudanças dos sistemas de financiamento. Será bem ridículo falar desse modo em presença dos grandes resultados produzidos pelas medidas de sir Robert Peel. Mas este fato domina todos os outros: se o dever não fala bem alto, torna-se cada vez mais necessário fazer intervir o direito.

Igreja anglicana, encarregada de ensinar o dever, onde estais? Não se trata, em tudo que citei, senão de leis, de finanças, de funcionários, de escritórios, de inspetores de costumes, de repartições de caridade. Jamais vosso nome é invocado... onde estais, portanto?

Sei muito bem que em outros países, após os infortúnios de que tem sido vítima, jamais cúmplice, a Igreja Católica não se tem encarregada sozinha do cuidado dos pobres; não pode, pobre e necessitada Ela própria, se erguer com a mesma presteza com que foi ferida e fazer o bem tão depressa quanto o mal que lhe fazem. Nesses países, dirige-se à lei algumas vezes por sistema, outras vezes por necessidade. Mas, pelo menos, após tantas perseguições, tantos rigores, tantos desdéns, a Igreja cada vez mais reclama e cada vez mais obtém essa prerrogativa de fazer o bem, que vos escapa, igreja anglicana! Quanto a vós, é no meio de todos os favores que vos tornais estéril. Os homens vos fazem rainha; somente Deus vos podia fazer mãe, e Ele vos recusou esse dom; porque eu vejo vossas riquezas, mas onde se acham vossos sacrifícios, vossas forças, vossas virtudes? Onde estão vossos apóstolos e vossos mártires da caridade? Onde estão vossos pobres voluntários? ou antes, vós tendes apóstolos, mas quais são seus frutos?

Haverá quem me fale de devotamentos individuais, citar-me-ão alguns nomes muito respeitáveis. Responderei por aquela fábula da jovem mãe indígena que, tendo visto curar um doente por meio de uma beberagem, aproximava dia e noite um frasco vazio dos lábios de seu filho moribundo. Apesar de sua intenção, o frasco estava vazio e não continha a beberagem vivificadora. É assim que a igreja anglicana e as numerosas associações que dela dependem, podem ser e são com efeito inutilmente caridosas. Elas não têm a verdadeira caridade e por que? Porque não têm a verdadeira religião.

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Tudo que acaba de ser dito é bastante para fazer compreender as causas da surpreendente e custosa inutilidade dos esforços enormes da caridade protestante para diminuir a pobreza e aliviar os indigentes.

Explica-se então a razão pela qual os cuidados que deviam ser dispensados pela religião – a Igreja e o espontâneo devotamento – são substituídos pela lei: o governo e o constrangimento.

Essas forças reunidas não atingem seu objetivo, e dele ficariam ainda mais afastadas, se a Inglaterra não fosse o que ela é, uma potência marítima e comercial, se todos os males não fizessem parte de seu território, e todos os países parte de seu mercado; se ela não tivesse hoje a Austrália e outras colônias que receberam, só em 1852, 368.764 de seus filhos; se a imigração e a fome não tivessem arrancado à infeliz Irlanda três milhões de seus habitantes em dez anos (Report of Colonial land and emigration commmissioners, 1853).

Em suma, a história da legislação caritativa e do pauperismo na Inglaterra prova à saciedade que, nesse grande país, o pobre é alimentado, não é moralizado; a pobreza é temida, não é amada; não ousaria dizer que em lugar de lhe fazer caridade, faz-se-lhe guerra, se essa frase não houvesse sido pronunciada por um dos mais notáveis escritores que trataram da matéria, Charles Wiston (Remarks on the Poor Laws), numa página repleta de uma eloquência expressiva e dolorosa:

“Assim (dizia ele referindo-se à legislação caritativa da Inglaterra), após uma guerra contínua de  cento e quarenta anos, ganhamos afinal uma completa vitória, e fizemos de nossos inimigos (os pobres) prisioneiros de guerra; mas, como depois de uma guerra civil, constatamos que esgotamos nossos recursos, despovoamos nosso país, viciamos seus costumes, enervamos sua energia, e que, em troca, conquistamos um deserto desolado, fértil somente em plantas daninhas, em animais venenosos, em elementos contagiosos, um território que nos dá unicamente seres viciosos, degradados, inconscientes, dos quais não tiramos nem honra nem vantagem, que são um entrave à nossa força, um fardo para nossa indústria, uma nódoa para nossa moral, e um contágio da mais mortífera espécie para nosso bem-estar nacional e nos deixam exclusivamente preocupados com os meios de nos desvencilhar de uma presa de guerra tão fatalmente conquistada.”

Que admiração profunda excita ao coração de todos que visitam a Inglaterra essa maravilhosa disposição que preside a todas as relações, que reina em todas as camadas, o sentimento da justiça, o respeito a si próprio, o respeito pelo direito que cada um possui, e pelo lugar que cada um ocupa!

Mas esse sentimento mais elevado, que constitui a honra da França, apesar de seus abusos, esse sentimento divino da Caridade que leva não somente a respeitar o direito do fraco e o lugar do pobre, mas aos comparar, aos julgar demasiadamente pequenos, a desejar elevá-los, dilatá-los, em vão os procuraremos nesses costumes e nessa legislação nascidos da pseudo-Reforma, que tiraram ao rico toda verdadeira caridade, e ao pobre toda dignidade, todo reconhecimento. No fundo do coração de um e de outro eu encontro, não o nego, e muito mais que na França, a lei e o respeito pela lei; mas a lei dos homens, não a lei de Deus.

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Nada melhor demonstra a necessidade da religião que a impotência dos esforços feitos para desprezá-la. Do mesmo modo, nada prova melhor a esterilidade do protestantismo com relação à Caridade que a impotência dos enormes esforços feitos na Inglaterra para o tornar fecundo.

E como um abismo atrai outro abismo, essa impotência é que está levando os líderes da igreja anglicana a procurar nas bolotas do socialismo a solução para os problemas de após-guerra, como por mais de uma vez já denunciamos aos nossos leitores, através de declarações socialistas do falecido “arcebispo vermelho” de Canterbury, dr. William Temple, e do livro comunistizante do “deão” da mesma sé anglicana.

Afastada da Igreja, a Inglaterra sofre em seu próprio seio as consequências lógicas da heresia protestante. Sua salvação, como de todo o mundo, se acha, portanto, na volta à Mestra infalível da Verdade. É o que esperamos das reservas de bom senso e de integridade do nobre povo inglês. Cansado de peregrinar pelas sendas do erro e de comer as bolotas do seu vago deísmo, ele um dia voltará à casa paterna, ouvindo o apelo d’Aquele que deseja que haja um só rebanho e um só Pastor.


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