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Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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 Parte I

 

Capítulo 1

As vias falsas e o

verdadeiro caminho para

alcançar a felicidade

 

1. Quatro pistas enganadoras para conquistar a felicidade

Um homem qualquer murmura para seus botões: «Terei sido um azarado, um errado, um fracassado se não for feliz».

Para muitos, viver uma vida feliz é respirar contentamento. Quanto mais, melhor! Homem bem sucedido na vida seria o que alcança esse contentamento. E quanto mais distante esteja dessa meta, menos feliz.

O candidato a homem feliz fica, então, tentando adivinhar quais são as qualidades requeridas para atingir o que tanto deseja. Evidentemente — pensa — são aquelas pelas quais se vence na vida. Pois o «santo» — ou seja, o homem perfeito da era moderna — é aquele que vence na vida. O que não faz essa escolha é o «torto», o «errado».

Há quatro tipos de «vencedores» que estariam de acordo com esse figurino: o «homem que sabe», o «homem que pode», o «homem que faz», o «homem que tem». Tudo dependendo das inclinações, das capacidades, das preferências, das circunstancias concretas da vida de cada um.

— O «homem que sabe»: o professor, o letrado, o cientista, o pesquisador, o filósofo, etc.

— O «homem que pode»: o político, o líder, etc.

— O «homem que faz»: o empresário, o construtor, o organizador, etc.

— O «homem que tem»: o rico, o milionário, o banqueiro.

Eis aí quatro pistas para a conquista da vitória.

Embalado por um desses quatro mitos, o candidato a homem feliz, na idade das ilusões, se lança na luta pela vida.

Ele vai conquistar a felicidade? — Ninguém se iluda!

 

— O «homem que tem»

Talvez se possa dizer que o mito do «homem que tem» é hoje em dia o mais possante. Pois muitos imaginam que tendo bastante dinheiro, estaria aberta a possibilidade de transitar por todas as estradas satisfatórias da vida.

Assim sendo, fazem da posse da pecúnia sua grande preocupação. O dinheiro passa a ser o tema que mais lhes agrada, que mais os atrai, que mais os interessa; colocam toda felicidade na esperança de que nunca ficarão pobres e, pelo contrário, tornar-se-ão cada vez mais ricos. Portanto, cada vez mais felizes.

Felizes... A esse propósito vale a pena lembrar, entre muitos outros, o caso de Cristina Onassis, filha do homem possivelmente mais rico do mundo em sua época. Cristina, segundo um jornalista do Le Monde, «poder-se-ia dizer que nasceu com uma colher de ouro na boca». Basta dizer que suas bonecas eram vestidas pelo famoso estilista Christian Dior...

‘O pai vivia à espreita dos caprichos que iam nascer em sua cabeça, de maneira que antes mesmo de ela dizer «papai, quero tal coisa», já o tinha obtido com perfeição’.[1]

Eis o sonho dourado de multidões! Milhões e milhões aspiram ardorosamente a situação que Cristina Onassis teve já ao nascer.

Mas um jornalista escreve: «... uma vida por demais cheia. Infelicidades demais, por demais casamentos, por demais divórcios, por demais quilos, por demais caprichos rapidamente satisfeitos, para, no final das contas, chegar a uma solidão por demais extrema...».

Ela tomava drogas e — se tentava fugir para o sonho — era porque tudo o que tinha não lhe bastava. E assim, ela tomou a overdose fatal, aos 37 anos.

Conclui o jornalista: «Um pai, mesmo onipotente, mesmo arquimiliardário, pode comprar tudo e impedir tudo, exceto a felicidade, exceto o infortúnio».

Na realidade, a preocupação financeira tem de ser colateral, sob pena de se amar mais o que se devia amar menos, e se amar menos o que se devia amar mais.

O resultado é o infortúnio. O «homem que tem» não é feliz automaticamente, apenas por ter.

 

— O «homem que sabe»

Ao lado dele, coloca-se o «homem que sabe». Sem duvida, saber é mais elevado do que ter. Mas apenas saber satisfaz? Por exemplo, Pico della Mirandola (1463-1494), um verdadeiro Onassis da erudição na era da Renascença. Dele se dizia espirituosamente que conhecia todas as coisas cognoscíveis, et quibusdam alias (e algumas mais). Seria, por causa disso, feliz?

 

— O «homem que faz»

Há também o «homem que faz». É, como se diz nos Estados Unidos, o workaholic, ou seja, viciado não em álcool, mas no trabalho. Ele procura compensar as misérias da vida pela auto-realização na ação, transformando em uma fonte de prazer intemperante até mesmo coisas penosas como muitas vezes é a labuta; o que o fascina é o trabalho-agitação, o trabalho-realização, o trabalho-embriaguez, independentemente de seu resultado. Não parece que, em princípio, seja um homem feliz.

 

— O «homem que pode»

Alcançará a felicidade o «homem que pode», ou seja, aquele que tem poder? — É difícil concordar. Pois o grau de felicidade e de infelicidade mede-se pelo grau de tranqüilidade e de intranqüilidade. E o poder geralmente é fonte de intranqüilidade, para citar só um inconveniente.

 

2. O igualitarismo não é caminho para a felicidade

Contudo, esses quatro mitos configuram um homem saliente, e hoje nem sempre é bonito sobressair. Eles estão um tanto fora da última moda. Vai entrando uma tendência a se apresentar como igual a todo mundo, pensando como todos e ao nível de todos; sabendo tanto quanto todos sabem, podendo tanto quanto os outros podem, tendo tanto quanto os outros têm e fazendo tanto quanto os outros fazem. Com vergonha de ser menos, com vergonha também de ser mais.

Sem ter querido nada, sem ter encontrado dificuldades, ele consegue — ou pelo menos tenta — vegetar sem paixão nenhuma.

Um homem assim poderia dizer, na hora de morrer: «Nada fiz, nada quis e nada deixo!».

É ainda mais vil do que o dos casos anteriores. Merece o seguinte diagnóstico: ‘monotonia, nervosismo, charco, charneca’, ao que se poderia acrescentar: ‘felicidade suína’...[2]

— Como defender alguém assim?

A abominação do igualitarismo tampouco é um caminho para a felicidade.

 

3. Felicidade e senso da finalidade

Portanto, nem o querer ser tudo, nem o querer nada ser, trazem a felicidade. — O quê, então?

Para responder, é necessário nos determos um pouco na relação entre felicidade e finalidade.

No colégio em que estudei, certa vez um padre colocou para os alunos um problema ‘que pega ao vivo a questão’.[3]

Imaginem — dizia — que uma espiga de trigo fosse capaz de pensar. E que alguém dissesse: «Tu foste criada para a alimentação dos homens; agora teu dono vai te comer e, portanto, vai te colher e moer. Teu fim vai realizar-se». A espiga de trigo deveria ter horror ou entusiasmo por estar prestes a cumprir sua finalidade?

Ela sentiria necessariamente a dor da própria imolação. Porém, acima disso, se fosse racional não poderia deixar de sentir a felicidade própria ao ser que atinge seu fim. Essa felicidade é muito maior do que a grande infelicidade que significa não atingir o seu fim, pela falta de imolação.

O sacerdote colocava a alternativa: ou sente a dor, ou sente a infelicidade. Entretanto, não parece que seja bem assim. Dever-se-ia poder conjugar os dois sentimentos. No fundo dever-se-ia amar o fato de atingir seu próprio fim, embora se fizesse na dor.

O homem feliz não é o que vive muito, ou gostosamente. É o que procede segundo sua natureza e segundo seu fim. Este tem o bem-estar de alma, embora possa sofrer muito.

Na vida humana há uma felicidade superior, que cobre de longe as desventuras e os infortúnios da faina de todos os dias.

Assim ele passa a ser «o homem que é», em contraposição ao «homem que sabe, que pode, que faz e que tem».

Ele tem prumo. Ele atingiu o que se pode alcançar de felicidade neste vale de lágrimas.

É claro que a perspectiva da felicidade perene no Céu é a mais cabal solução para o problema, pois a vida terrena não passa de uma sombra em comparação com a vida eterna. Mas ainda que houvesse apenas esta vida, ela só vale a pena de ser vivida assim: todo o resto é uma imensa frustração.

 

4. Não se trata de ter, poder, fazer: é preciso «ser»

Nada impede, é evidente, que o homem saiba, possa, faça e tenha, desde que o faça adequadamente.

Mas, sobretudo, é preciso ser. Cada um deve ser autêntico.

É preciso escolher entre a sua autenticidade, ou ser sua própria caricatura. Assim, quem tende para a verdadeira felicidade — para a felicidade possível nesta terra — é o «homem que é», e não o «que sabe», «que pode», «que faz» ou «que tem». Mesmo quando não sabe, não pode, não faz ou não tem, o «homem que é» está no caminho certo da felicidade.

 

5. O inimigo do «homem que é»: o egoísmo

O «homem que é» tem um inimigo, e esse inimigo é o egoísmo.

Aqui está a chave para se compreender a angústia contemporânea, suas causas e como dela fugir: onde entra o amor exagerado a si mesmo não há felicidade, e a civilização que nos rodeia é a civilização do egoísmo.

Hoje cada qual cuida de si, em primeiro lugar e acima de tudo. Desprezam-se doutrinas, desprezam-se princípios, despreza-se a beleza, de tal maneira que a palavra «ideal» parece cada vez mais remota e diz cada vez menos aos homens.

‘O candidato a «homem que sabe, que pode, que faz ou que tem» recebe o conselho: «Fulano, ocupe-se consigo, cuide de sua pessoa e cuide de seu interesse. Não se preocupe com mais nada porque, em última análise, no mundo inteiro, para cuidar de você só existe você. Volte-se para si. Cuide de sua vidinha, cuide de seus interesses, procure ser você mesmo, só você, todo você! Viva só para si!»’[4]

E lá vai fulano pela vida, abstraindo cuidadosamente de tudo que não seja ou não tenha relação com sua pessoa. Será feliz? — Não parece.

Em contraste, consideremos as estátuas mortuárias medievais, os gisants que se vêem em catedrais góticas: rosto sereno, espada, armadura. Às vezes deitado ao lado da esposa, como irmão ao lado de irmã.

É outro modelo de felicidade. Um modelo verdadeiro.

 

6. A felicidade não consiste no frenesi, mas na harmonia

‘A verdadeira felicidade não consiste na tensão absoluta, nem na estabilidade absoluta, mas na harmonia entre uma coisa e outra’.[5]

Fomos habituados à idéia de que só nas sensações — no Brasil, diríamos, na «torcida» — é que está a felicidade. A palavra «torcida» é aqui tomada como sinônimo de agitação, de frenesi. ‘Quando não se tem isso na vida, a pessoa se julga infeliz. De fato, é um infeliz, mas por outra razão: ter perdido a noção da verdadeira felicidade’.[6]

Sem «torcida», o relacionamento entre as pessoas se aprimora. A vida não pode ser uma concorrência de egoístas que pulam e pisam uns sobre os outros numa batalha dantesca, fingindo rir e encontrar um prazer enorme na existência, mas dilacerando-se uns aos outros, e sentindo que a vida não tem sentido.

Muitas vezes, a causa da «torcida» é a tendência viciosa para a auto-suficiência. ‘Creio que entre auto-suficiência, orfandade e neurose há uma relação muito próxima. Muitas e muitas vezes me pergunto se eu seria um homem calmo como sou, se não tivesse pairando sobre mim o afeto de Mamãe’.* [7] Dela posso dizer que foi ‘a dignidade sem fortuna, a doçura sem covardia, a intransigência sem hirteza, a nobreza sem arrogância’.[8]

* Dona Lucília Ribeiro Corrêa de Oliveira (1876–1968).

 

7. A «felicidade de situação»

Tal problemática leva a outra, correlata: pode haver felicidade sem prazer?

A resposta é positiva. O prazer implica em sensações, e estas nem sempre trazem a felicidade.

Mesmo o prazer lícito pode ser uma cilada, pois devora quem a ele se entrega fora da medida razoável. Santo Tomás de Aquino cita Boécio quando examina a relação entre felicidade e prazer: «Quem decidir olhar para os excessos de seu passado perceberá que tais prazeres têm um triste fim».*

* De Consolatione Philosophiae, apud Santo Tomás, Suma Teológica I-II, q. 2, a. 6, sed contra.

O prazer, portanto, é como o sal: precisa ser muito bem dosado.

A Providência Divina, que é materna e bondosa, permite que a grande maioria dos homens tenha pelo menos uma parcela de felicidade nesta vida, embora faça com que os homens a quem Ela mais ama passem por períodos em que a felicidade desaparece completamente.

São os grandes períodos da vida. Depois, faz-se noite e a felicidade desaparece. Desaparece até a consolação sobrenatural. Ele entra no túnel obscuro de uma grande infelicidade. Mas os males críticos, muito agudos, geralmente não duram. E assim vai-se vivendo.

Via diversa é a da felicidade sem prazer. Há fases da história de certos povos, de certas civilizações, em que o prazer é tão excepcional na vida, o divertimento tão pouco freqüente, que é como se não existissem. São duas ou três festas por ano, de qualquer natureza, e fora disso as pessoas não se divertem. Uma pessoa pode ser feliz nessas condições?

Com certeza sim, desde que compreenda bem sua situação e saiba encontrar nela a felicidade que essa situação concede. É o que se pode chamar de felicidade de situação.

 

8. Um exemplo: o fazendeiro brasileiro do tempo do Império

Consideremos a vida de um fazendeiro brasileiro no tempo do Império. Como vivia ele? Como vivia sua família?

Esse homem tinha a tendência de se isolar na própria fazenda, levando ali uma vida de placidez, pois então não havia automóvel...

Habitualmente, eram duas ou três diversões por ano. Havia a festa da Novena do Padroeiro da Matriz da cidade próxima. Eram alguns dias em que o fazendeiro ia com toda a família para a cidade.

Além disso, ele era o patriarca, ou seja, o homem em função do qual se compunha a vida da fazenda. Era o líder natural. Se os colonos tinham um problema, era ele quem ajudava a resolver.

Naquele pequeno local, ele tinha um dos gostos que a vida pode dar a um homem: a felicidade da honorificência, de ser honrado, de receber o respeito, a consideração que está na proporção da função que exerce.

O fazendeiro antigo era um exemplo de felicidade sem prazer, mas felicidade verdadeira, por mais que hoje possa parecer o contrário.

 

9. O idealismo infantil no estudo da felicidade

O poeta Casimiro de Abreu, em soneto célebre,* exalta as saudades «da aurora de minha vida, de minha infância querida que os anos não trazem mais».

* Meus oito anos (trecho): Oh! Que saudades que tenho / Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais! // Que amor, que sonhos, que flores,/ Naquelas tardes fagueiras, / À sombra das bananeiras, / Debaixo dos laranjais! // Como são belos os dias / Do despontar da existência! / — Respira a alma inocência / Como perfumes a flor; O mar é — lago sereno, / O céu — um manto azulado, / O mundo — um sonho dourado, / A vida — um hino d’amor!

É difícil encontrar quem não sinta saudades dessa época de sua vida. Uma espécie de nostalgia de nosso tempo de menino, um tanto parecida com a de um paraíso perdido!

Ninguém tem saudades dos seus 20 anos como do seu tempo de criança. Mas por que essas saudades?

A boa criança é movida pelo princípio de que a vida dá certo, e de que vale a pena viver porque a vida é algo grande. Embora tenha sofrimentos, tudo no final tem sua explicação e esta é verdadeira.

Resulta daí ‘aquela espécie de otimismo que caracteriza a infância. A criança é cheia de esperança, crê com facilidade no que lhe contam, e é toda voltada para entregar-se, para servir, para admirar. Precisamente o contrário do sovina quinquagenário que diz: «Não, a época de invalidez está chegando. Agora preciso acumular dinheiro, dinheiro, dinheiro, para não ter perigo de ficar pobre!»’.[9]

Criança boa nada tem a ver com criança boba. Por ser muito pura e ter muita candura, sempre que o mal aparece, ela o recusa. Ela se torna contestatária em relação ao mal.

Ela não crê na descrença. Se alguém lhe diz: «Ora, Deus não existe...», neste a criança não crê.

No fundo, a criança tem um senso virginal de distinção entre a verdade e o erro, o bem e o mal, que depois pode ir-se embotando ao longo da vida.

 

10. As certezas primeiras da criança

O virginal do estado da alma da criança coloca no raciocínio dela uma espécie de retidão e de certeza natural. Suas certezas primeiras se assemelham, por exemplo, à candura com que ela abraça a mãe, quando tem medo de um perigo.

Ela não vai fazer o seguinte raciocínio: «Essa senhora é mais forte do que eu; ora, eu sou fraca; logo, preciso do apoio dela».

É uma naturalidade ainda não reflexiva. Não se trata de uma falta de reflexão culpável; é que ela considera supérflua a reflexão. É tal a clareza da posse dos primeiros dados da realidade, que um exame ponderado não se torna necessário.

O raciocínio é fluentíssimo, limpidíssimo, muito metódico, tão fluente, tão límpido que a questão do método nem se põe. É uma espécie de transparência.

Imaginemos uma criança muito cândida, muito virginal, colocada junto a um rio onde há umas pedras. A água brinca com as pedras, há sombras, passa um pouco de sol... O menino em certo momento dirá: «Por que será que eu penso? Que é o pensamento?». E vai logo saindo uma resposta como que evaporada da evidência. De tal maneira que, quando a mãe lhe diz que existe Deus, ele aceita naturalmente, e exclama: ‘«Ah! O tal algo, que explica tudo, é Deus! É verdade!»’.[10]

Ele não passou pelas cinco provas da existência de Deus, de Santo Tomás, mas quando, mais tarde, delas tomou conhecimento, era como de alguma coisa que já tinha visto; faltava apenas explicitar.

A criança tem, num desdobramento da inocência, noção implícita da existência de Deus. ‘Uma noção escachoante, tremenda, luminosa’.[11]

Depois diz-se a ela que Jesus Cristo veio ao mundo. Fala-se do Menino Jesus. A criança acredita no Menino Jesus. É que tudo vai conferindo tão normalmente com o que está em sua mente que, por exemplo, não lhe ocorre perguntar por que é que o Menino Jesus nasceu, e que provas há desse fato. Ela julga tão natural que tivesse nascido, que não precisa de provas.

 

11. A tendência da criança a ver tudo de modo maravilhoso

Esta ordem primeira traz consigo a noção de que tal coisa é bela, que tal outra é boa, que se deve fazer deste ou de outro modo.

Quando se tem de mostrar que os contos de fadas não são verdadeiros, a criança tem uma facilidade enormemente maior em aceitar do que em acreditar que Nosso Senhor não veio à Terra. Pois ela percebe facilmente que o conto de fadas é uma história; mas ela gosta de ouvir o conto que é mentira, porque lhe diz algo que é verdade. É um envelope fantasioso que traz uma verdade magnífica, oculta.

De onde a tendência da criança a ver de modo maravilhoso aquilo que vê. Ela procura ver no que as coisas concretas conferem com a matriz que está na alma dela, a qual para ela é perfeita. Como a coisa concreta não é perfeita, a criança procura vê-la pelos seus melhores lados, por uma necessidade de espírito perfeitamente lógica.

O que não é perfeito, no momento não interessa a ela.

Não se trata aqui de sonho nem de um subjetivismo errôneo, mas de um operar inteiramente legítimo, lógico, existente na mentalidade infantil.

Daí uma espécie de felicidade paradisíaca que vem da idéia de estar posta num paraíso inocente, onde tudo parece perfeito.

 

12. A fidelidade às certezas primeiras

Nesta primeira etapa, a perfeição parece co-idêntica com a inocência: o pai é perfeito, a mãe é perfeita, o bercinho ou senão a caminha é perfeita, o brinquedo é perfeito, a florzinha que colhe no jardim é perfeita.

A criança tem uma certeza e uma força de lógica que é uma das maiores jóias do espírito e é o contrário do egoísmo pútrido do idoso desabusado.

Essa força e essa energia da lógica produzem assim um borbotão de certezas iniciais que podem fazer com que a alma, se for fiel a isso, seja a vida inteira dotada de certeza e cheia de luz. E também com energia e com capacidade para se sentir feliz, apesar das tribulações.

Este modo de ser da inocência infantil não se dá com todas as crianças exatamente como aqui descrito. No século XX fez sua entrada na História o vazio contemporâneo, que não tem feito senão agravar-se. Mas alguma coisa ainda existe.

Por causa das graças do batismo, a infância é um apogeu. Trata-se de saber se a vida do homem depois cresce de apogeu em apogeu até a ancianidade, ou se tem «des-apogeus»...

 

13. O «menino de ouro» e a rainha

Podemos exemplificar com a foto publicada numa revista italiana. Nela se vê a rainha da Inglaterra em traje de grande cerimônia, numa carruagem puxada por cavalos. Vendo-a passar, há um menino na calçada. Ele está numa posição profundamente contemplativa e enlevada diante da soberana. Involuntariamente, ele toma uma atitude de oração. Suas duas mãos estão na posição de prece, seu olhar é indizível: misto de reverência, de respeito, de afeto.

‘Ele está atento. Seus olhos estão fixos na rainha. Toda a posição do rosto, toda a expressão do olhar é um misto de contemplação e de prece.

‘Para ele, algo na vida transcende completamente a vulgaridade do quotidiano, e esse algo é um reflexo de Deus na Terra.

‘Não está pensando nem um pouco em si. Está considerando exclusivamente a realeza.

‘É uma atitude de prece e, ao mesmo tempo, uma atitude de afeto. Ele não quer ser rei, não quer aproveitar-se em nada da monarquia, nem pensa em se destacar a propósito da cena’.[12]

Em contraste, há perto dele uma menina que percebeu que está sendo fotografada e está fazendo pose. Está toda excitada com o que acontece, com a moda; se lhe dissessem que iria ser rainha ela ficaria toda contente. Mas o menino não tem a menor vontade de ser rei. Ele tem vontade, isto sim, de que exista um rei.

Ele é uma boa imagem da despretensão: é uma pessoa que olha para algo que não é ele, e é capaz de se encantar inteiramente com esse algo.

Esse menino poderia dizer à rainha: «Majestade, eu vos dou graças, eu vos sou grato por serdes a rainha». Seria um eco do que está no Gloria da Missa: Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam — Nós vos damos graças, ó Deus, por vossa grande glória.

É verdadeiramente ‘um «menino de ouro»!’[13]

Foi de crianças assim que Nosso Senhor disse: «Deixai vir a mim os pequeninos, porque deles é o reino dos céus» (Mc 10,14). E depois afirmou que quem não fosse assim não entraria no paraíso. Ou seja, só vão para lá os que conservam a alma nesse estado primaveril e a aprimoram até o fim de seus dias.

Esta é a noção de inocência primeva, que nos enche de entusiasmo pelas coisas que de fato merecem admiração.

E nos enche também de felicidade.


Fontes de referência:

[1] 18-1-1989. [2] 16-6-1973. [3] Sem data. [4] 17-11-1974. [5] 2-10-1978. [6] 17-3-1995. [7] Sem  data. [8] Sem data. [9] 2-2-1972. [10] 5-6-1974. [11] 29-5-1974. [12] 5-11-1968. [13] 16-5-1974.