Plinio Corrêa de Oliveira

 

Carta para Alceu Amoroso Lima,

30 de Novembro de 1931

 

 

 

 

 

 

 

 

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[Os negritos são deste site. Os sublinhados e MAIÚSCULAS são do original]

 

São Paulo, 30 de novembro de 1931

Meu querido Dr. Alceu

Da própria [sede da] Congregação [Mariana de Santa Cecília], onde me encontro, apresso-me em lhe enviar meus sinceros pêsames pela morte do Sr. seu sogro, que se teria dado anteontem, conforme notícia dos jornais de hoje daqui. Peço-lhe que transmita minhas condolências à sua Senhora, fazendo-as acompanhar de meu sincero desejo de que Nosso Senhor lhe inspire a resignação necessária para suportar cristãmente tão rude golpe.

Em uma das extraordinárias visões com que foi favorecida por Nosso Senhor, Santa Gertrudes conta em seu livro que Deus é tão ávido do amor das criaturas, que lança mão de todos os artifícios para conservá-las unidas a Ele. Assim é que, para desapegá-las das coisas criadas, envia às vezes certas provações, que têm por efeito mostrar-lhes como são ilusórias todas as coisas terrenas, quanto às felicidades que proporcionam. Efetivamente, até os mais legítimos afetos humanos não são isentos da dor e da instabilidade!

É curioso como nossa época perdeu completamente a noção cristã da dor. A evolução é fácil de se descrever. A resignação cristã, ao mesmo tempo que faz conservar, entre os vivos, a memória constante dos mortos, lembrados aos sufrágios da Igreja militante por inúmeras orações, proporciona, no entanto, aos vivos aquela força de espírito necessária para não sucumbir ao sofrimento constantemente reavivado, das saudades dos mortos por quem continuamente rezamos.

Veio o surto pagão. Começou por hipertrofiar um dos sentimentos que compunham a resignação. Exaltou a dor, as saudades, os desgostos irremediáveis. Todo mundo passou a entender que, para ser “decente”, a dor precisaria ser acompanhada de gritos lancinantes, de desmaios, às vezes de suicídios.

O convencionalismo, o caráter exageradamente dramático, e às vezes ridículo de tais encenações, provocou uma reação em sentido absolutamente contrário. Passou-se a pregar a indiferença. Os lutos se encurtam cada vez mais. Tendem a ser inteiramente abolidos, não somente nas roupagens (o que constitui um simbolismo muito bonito, e uma homenagem tocante ao morto), mas também no prazo em que se devem as pessoas afastar de festas e cinemas. Não é mais nas preces, que se vai buscar a resignação. Afogam-se simplesmente as saudades no jazz e na champagne.

Quanto ao morto, é imediatamente incinerado, e guardado prudentemente em uma pequena urna inexpressiva, onde seus restos mortais deverão ocupar o menor espaço material possível... do mesmo modo porque sua lembrança deve também ser reduzida ao mínimo na memória dos viventes! É pagão, brutal e duro a mais não poder.

Estas impressões me escaparam à medida que escrevia. Tome-as como um parêntesis.

Sei perfeitamente que quem sofre ao seu lado, como sua Senhora, não precisa senão imitar o exemplo que tem diante de si.

Passando a outra ordem de assuntos, muito lhe agradeço a revista, que lhe devolvo, para não desfalcar sua coleção. O documento pontifício [refere-se à Encíclica de Leão XIII “Rerum Novarum”, de 15-5-1891, sobre a condição dos operários, conforme se verá pela continuação da carta, n.d.c.] é ótimo. Completa a orientação genialmente católica que presidiu à elaboração da Quadraginta Annis. Esta, efetivamente, ao mesmo tempo que repeliu a indecorosa mistificação do socialismo católico, caminhou, no entanto, resolutamente, na senda das reivindicações operárias. Mas reivindicações destituídas DE TODO EM TODO de qualquer cunho sedicioso e desrespeitoso. Reivindicações feitas de chapéu na mão, com uma firmeza cheia de reverência às classes que, exercendo qualquer função de mando na sociedade, participam ipso facto da autoridade divina.

Nada me irrita mais do que ver alguns escritores católicos (Georges Goyau et comitente caterva) procurando sempre dar umas infusões de leninismo ao Catolicismo. No fundo, eles são vítimas da grande ilusão igualitária da Revolução Francesa.

Não! Por mais que a Igreja pleiteie os justos direitos dos operários, nunca Ela misturará Sua voz respeitável ao alarido insólito das arruaças, e aos discursos insolentes dos demagogos!

A renovação social se fará. Deus nos livre, porém, que ela se faça com o menor desrespeito que seja, às autoridades legitimamente constituídas. Pelo contrário, quanto mais a Santa Sé insiste a respeito da necessidade de nos constituirmos e arrogarmos com toda a justiça o título de defensores natos das classes pobres, tanto mais devemos também lutar pela manutenção do conceito de autoridade. É como o porão de um tombadilho. Quanto mais se deposita carga em um de seus compartimentos, tanto mais é necessário encher também o compartimento do lado oposto. Do contrário, o navio perde o equilíbrio.

A Igreja tem a glória imortal de ter suprimido a escravidão. E foi necessária a Renascença para que a escravidão “renascesse” na América.

No entanto, como aboliu a Igreja a escravidão?

É de se notar que NUNCA Ela desceu a pactuar com os Spartacos de qualquer espécie. Nunca um ato violento, nunca um ato revolucionário.

Espártaco (em latim: Spartacus; ca. 109 a.C. – ca. 71 a.C.) foi um gladiador de origem trácia, viveu na República romana e foi o líder da mais célebre revolta de escravos na Roma Antiga, conhecida como "Terceira Guerra Servil", "Guerra dos Escravos" ou "Guerra dos Gladiadores". – Acima, a queda de Espártaco (Nikolo Sanesi).

São Paulo, em suas epístolas, aconselha aos católicos que obedeçam a seus senhores, ainda que estes sejam díscolos [indisciplinado, rebelde, perturbador, desmandado, n.d.c.]. E note-se que o Apóstolo trata de escravos, que estão, portanto, sujeitos às ordens dos senhores por um vínculo ilegítimo, e flagrantemente contrário ao Direito Natural!!

Por isto é que disse que a Encíclica [Rerum Novarum] foi essencialmente católica. Foi católica, porque foi ousada, mas dessa “ousadia prudente” que caracteriza sempre tudo quanto a Igreja faz.

Pediu pelos operários tudo quanto poderia pedir. Proclamou-se mais uma vez sua Mãe extremosíssima, e orgulhou-se mais uma vez deste seu título. No entanto, afastou, ao mesmo tempo, TODA E QUALQUER esperança de fusão com o socialismo equívoco e suspeito, que provém diretamente do “Non serviam” de Satanás, e não da Caridade cristã.

Positivamente, estou hoje dado a divagações. E tenho ainda muitas coisas a lhe dizer!

Envio-lhe o incluso decreto do Coronel Rabello, que veio destruir a penadas e patadas a admirável obra de Assistência aos Mendigos, que a Sociedade São Vicente de Paulo, e nosso Sawaya, vinham fazendo em São Paulo. Não há, para isto, comentários. Note a “tournure” [exposição, construção da frase, n.d.c.] marxista dos considerandos desse oficialzinho positivista.

Os estudantes realizaram uma passeata pela cidade, pedindo esmolas. Quando passaram pelo Largo do Palácio, arvoraram um cartaz que dizia: “Cabeça” dá cabelo; “rabo” dá Rabello! A polícia, evidentemente, apreendeu imediatamente os cartazes. Como desceu a autoridade!

 Leu as declarações de João Alberto ao Globo? Como acontecimento político, reputo tais declarações mais importantes do que a saído do Laudo de Camargo. Em suma, o que a camarilha militar afirma, através de seu líder é que só abandonará o poder se for a isto coagida pela força.

Duvido, e duvidarei até o último momento, de que se faça a Constituinte. No entanto, poderíamos ir fazendo surgir nossas Ligas Eleitorais por toda a parte, como meio de “déclencher” [desencadear] movimentos de opinião por todo o país.

O exemplo deve vir daí. Sem que aí se faça alguma coisa, não agiremos em São Paulo.

Recebi, há dias, em um dos números do “Figaro” de Paris uma das páginas mais extraordinárias da vida interna (não digo vida interior porque esta expressão deve ser monopolizada pelos católicos, para indicar vida interna espiritual) que se possam imaginar: o jornal íntimo de Flaubert, absolutamente inédito, e publicado no Figaro por uma sua sobrinha, que possui os originais.

Raramente tenho visto tão bem caracterizada a luta, no homem, entre o Anjo e a besta. Ora Flaubert exclama: “meu orgulho é um abutre que devora meu coração. Afasta-me de todos, priva-me de todas as afeições, torna-me frio e desconfiado”. Ora diz, linhas adiante: “a modéstia é a mais orgulhosa das baixezas”.

Depois de linhas de um sensualismo abominável, exclama: “como compreendo os que jejuam! Como gostaria de ser um Santo! Se existir um Deus, um Deus bom, Pai de Jesus Cristo, que Ele me envie sua luz, e eu crerei!”

Linhas adiante, exclama: “não sou materialista nem espiritualista. Se fosse alguma coisa, seria preferivelmente materialista”.

Depois diz: “que vácuo dentro de mim! É simplesmente assustador”.

Poucos documentos íntimos tenho visto que fossem tão interessantes.

Como vai nosso “jesuitinha”? E as meninas?

Aceite um afetuoso abraço do todo seu em Nosso Senhor

Plinio


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