Plinio Corrêa de Oliveira

 

Do Prefácio à obra

A TFP: uma vocação
   TFP e famílias
                   TFP e famílias na crise

espiritual e temporal do século XX

 

Fevereiro de 1986 (*)

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Adriano VI (1522-1523), nascido em Utrecht (atualmente Holanda, mas naquela época fazia parte do Sacro Império Romano Alemão), cognominado também como o "último Pontífice alemão" até que fosse elevado à Sé de Pedro o Papa Bento XVI (19-4-2005 até 28-2-2013)

 

Os negritos são do Autor do Prefácio. Para ler a íntegra do mesmo, basta clicar aqui. 

(...) 

A família e a Igreja em crise 

A responsabilidade por essa situação desastrosa não toca apenas ao Estado.

A Santa Igreja Católica, a única verdadeira Igreja de Deus, se vê envolta hoje em uma crise cuja gravidade já foi discernida por Paulo VI, bem insuspeito, entretanto, de pessimismo ou animadversão para com o mundo moderno, ao qual fez aberturas que surpreenderam por vezes não poucos dentre os melhores (3).

João Paulo II, entretanto tão benévolo – ele também – em relação ao mundo moderno, expendeu reflexões análogas (4); e um Prelado eminente pelo saber e pelas altas funções que ocupa na Santa Igreja, o Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, publicou em 1985 seu famoso "Rapporto sulla Fede", no qual se deve louvar a nobre franqueza com que descreve sintomas altamente expressivos da crise que lavra como um incêndio no interior da Santa Igreja.

O valor deste autorizado testemunho cresce ainda de ponto considerando-se que o Purpurado, quer no conjunto de sua obra de intelectual, quer em sua atuação à testa do ex-Santo Ofício, vem seguindo uma linha que não permite incluí-lo honestamente entre os que as "mass-media" qualificam de reacionários, saudosistas, extremistas da intolerância etc.

Ora, de onde procede essa dolorosa crise na Igreja? Sem dúvida, e em larga medida, de agentes do Leviatã comunista que, de fora da Cidade Santa, se empenham com esforço total em destruí-La. Mas uma pesquisa dos fatores dessa crise não seria lúcida nem proba se se limitasse a olhar para além dos muros dEla. Cumpre indagar se também entre os católicos – entre os leigos bem entendido, mas também nas fileiras augustas da Sagrada Hierarquia – há propulsores de tal crise.

A pergunta pode surpreender a alguns… dia a dia menos numerosos. Não faltará ainda quem brade, alarmado, que ela é escandalosa, revolucionária, blasfema.

É explicável que a tais reações conduza a crassa ignorância religiosa em que estão imersos tantos fiéis neste triste ocaso do século XX. Na realidade, se conhecessem melhor a doutrina e a História da Igreja, a reação deles seria bem outra. A fim de evitar digressões doutrinarias, destinadas a aplacar tal estranheza, as quais se afastariam por demais do eixo central das presentes considerações, basta lembrar aqui um documento memorável, a instrução do Papa Adriano VI (1522-1523), lida pelo Núncio pontifício Francisco Chieregati aos Príncipes alemães reunidos em dieta, em Nuremberg, em 3 de janeiro de 1523. Transcreve largos trechos desse documento o historiador austríaco Ludwig von Pastor em sua obra célebre "Geschichte der papste" – História dos Papas (5). A conjuntura em que essa instrução foi ditada pelo Pontífice se insere na terrível crise protestante do século XVI, tão semelhante e ao mesmo tempo tão menos profunda do que a de nossos dias (6).

Dessa Instrução destacamos os seguintes tópicos:

"Deves (dirige-se o Pontífice ao Núncio Chieregati) dizer também que reconhecemos livremente haver Deus permitido esta perseguição a sua Igreja, por causa dos pecados dos homens, e especialmente dos Sacerdotes e Prelados, pois de certo não se encurtou a mão do Senhor para nos salvar; mas são nossos pecados que nos afastam dEle, de modo que não nos ouve as suplicas.

"A Sagrada Escritura anuncia claramente que os pecados do povo tem origem nos pecados dos sacerdotes, e por isto, como observa (São João) Crisóstomo, nosso Divino Salvador, quando quis purificar a enferma cidade de Jerusalém, dirigiu-se em primeiro lugar ao Templo, para repreender antes de tudo os pecados dos sacerdotes; e nisso imitou o bom médico, que cura a doença em sua raiz.

"Bem sabemos que, mesmo nesta Santa Sé, ha já alguns anos vem ocorrendo, muitas coisas dignas de repreensão; abusou-se das coisas eclesiásticas, quebrantram-se os preceitos, chegou-se a tudo perverter. Assim, não é de espantar que a enfermidade se tenha propagado da cabeça aos membros, desde o Papa até aos Prelados.

"Nós todos, Prelados e Eclesiásticos, nos afastamos do caminho reto, e já há muito não há um que pratique o bem. Por isso devemos todos glorificar a Deus e nos humilharmos em sua presença; que cada um de nós considere por que caiu, e se julgue a si mesmo, ao invés de esperar a justiça de Deus no dia de sua ira.

"Por isto (igualmente) deves tu prometer em nosso nome que estamos resolvidos a empregar toda a diligencia a fim de que, em primeiro lugar, seja reformada a Corte romana, da qual talvez se tenham originado todos esses danos; e acontecerá que, assim como a enfermidade por aqui começou, também por aqui comece a saúde.

"Nós nos consideramos tanto mais obrigados a levar isto a bom termo, quanto todo o mundo deseja semelhante reforma.

"Porém não procuramos nossa dignidade pontifícia (o Papado que Adriano VI exerce), e de mais bom grado teríamos terminado na solidão da vida privada nossos dias; de bom grado teríamos recusado a tiara, e só o temor de Deus, a legitimidade da eleição e o perigo de um cisma nos determinaram a aceitar o supremo munus pastoral. Em conseqüência, queremos exerce-lo não por ambição de mando, nem para enriquecer nossos parentes, mas para restituir à Santa Igreja, Esposa de Deus, sua antiga formosura, prestar auxilio aos oprimidos, elevar os varões sábios e virtuosos, e genericamente fazer tudo o que compete a um bom pastor e verdadeiro sucessor de São Pedro.

"Não obstante, que ninguém se surpreenda, se não corrigirmos todos os abusos de um só golpe; pois as doenças estão profundamente enraigadas e são múltiplas; pelo que é preciso proceder passo a passo, e opor primeiramente os oportunos remédios aos danos mais graves e perigosos, para não perturbar ainda mais a fundo por meio de uma precipitada reforma de todas as coisas. Com razão diz Aristóteles que toda mudança repentina é muito perigosa para uma sociedade" (7). 

Quantos ensinamentos profundos há a deduzir dessas nobres e sábias considerações! Ninguém as pode tachar de irreverentes para com a Santa Igreja, de escandalosas, revolucionárias, blasfemas, como de bom grado o fariam certos católicos de vistas estreitas.

E quantos exemplos concretos haveria que citar em cada país da Cristandade contemporânea em confirmação desses ensinamentos de Adriano VI! (...).

Túmulo do Papa Adriano VI, na igreja Santa Maria dell'Anima, em Roma 


Notas:

 

(*) Obra elaborada por uma Comissão de Estudos da TFP; orientação da pesquisa: João S. Clá Dias, Edição e Impressão ARTPRESS – Papéis e Artes Gráficas Ltda., São Paulo, fevereiro de 1986, pag. XIII-XVI)

(3) Em Alocução aos alunos do Seminário Lombardo, em 7 de dezembro de 1968, disse Paulo VI:

A Igreja atravessa hoje um momento de inquietude. Alguns praticam a autocrítica, dir-se-ia até a autodemolição. E’ como uma perturbação interior, aguda e complexa, que ninguém teria esperado depois do Concílio. Pensava-se num florescimento, numa expansão serena dos conceitos amadurecidos na grande assembléia conciliar. Há ainda este aspecto na Igreja, o do florescimento. Mas posto que ‘bonum ex integra causa, maluco ex quocumque defectu’, fixa-se a atenção mais especialmente sobre o aspecto doloroso. A Igreja é golpeada também pelos que dela fazem parte (Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. VI, p. 1188 - as palavras não são textuais do Pontífice e sim do resumo que delas apresenta a Poliglotta Vaticana). 

Cfr. também nota 2. 

(4) Em Alocução de 6 de fevereiro de 1981, aos Religiosos e Sacerdotes participantes do I Congresso nacional italiano sobre o tema Missões ao povo para os anos 80, João Paulo II assim descreveu a desolação hoje reinante na Igreja:

"É necessário admitir realisticamente e com profunda e sentida sensibilidade que os cristãos hoje, em grande parte, sentem-se perdidos, confusos, perplexos e até desiludidos: foram divulgadas prodigamente idéias contrastantes com a Verdade revelada e desde sempre ensinada; foram difundidas verdadeiras heresias, no campo dogmático e moral, criando dúvidas, confusões e rebeliões; alterou-se até a Liturgia; imersos no ‘relativismo’ intelectual e moral e por conseguinte no permissivismo, os cristãos são tentados pelo ateísmo, pelo agnosticismo, pelo iluminismo vagamente moralista, por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos e sem moral objetiva" (L' Osservatore Romano, 7-2-81). 

(5) Logo após ter sido publicada a primeira parte de sua obra, Leão XIII honrou o autor com o seguinte Breve:

"Ao amado filho Ludwig v. Pastor, professor de História na Universidade de Innsbruck

Leão P. P. XIII

"Amado filho. Saudação e bênção apostólica. Juntamente com tua carta, entregaram-nos o primeiro volume da História dos Romanos Pontífices que principiaste. É-nos grato o que nos escreves, sobre o fato de terem sido proveitosos para ti os documentos acerca das coisas antigas, os quais por certo conseguiste no Arquivo Vaticano; e não é possível que tão grande mostra de erudição deixe de proporcionar muita luz para a investigação da Antigüidade. Tu, na verdade, tens em mãos uma obra verdadeiramente laboriosa e, por outro lado, notável pela variedade dos acontecimentos; tendo começado pelo fim da Idade Média, pretendes prosseguir até nossa época. Mas desta primeira parte de teus estudos, à qual vemos não ter faltado a aprovação de varões idôneos, é lícito tirar uma conjectura sobre a boa qualidade das demais. Exortar-te-íamos, pois, a dar-nos ardorosamente as partes que faltam, se não soubéssemos que tua vontade é tão fervorosa, que não necessitas absolutamente de tal exortação. E, na verdade, não podias ter empregado os dotes de teu engenho mais santa e proveitosamente em qualquer outra coisa, do que em esclarecer com sinceridade e diligência os feitos dos Sumos Pontífices, cujos louvores têm costumado obscurecer com tanta freqüência, não só a incúria dos tempos, como a malévola contradição dos homens. Como augúrio, pois, dos celestes dons, e testemunho de nossa paternal benevolência, damo-te no Senhor muito amorosamente nossa bênção apostólica. Dado em Roma, apud S. Petrum, die XX Januarii anno 1887, pontificatus Nostri nono". 

Na ocasião em que publicou o quarto tomo de sua obra, foi Pastor honrado com uma carta de punho e letra do Papa São Pio X, na qual lhe diz o Santo Pontífice:

"Se teu importante trabalho mereceu tão extraordinário aplauso, tanto dos eruditos católicos como dos não católicos, tu o alcançaste, antes de tudo, pela extensão e profundidade de tuas investigações. Nós te felicitamos por tal êxito, obtido graças a um incansável labor, o qual redunda deste modo em louvor do Instituto que diriges; e te damos graças, já que conquistaste também, para a Santa Igreja Católica, méritos muito grandes. Com alegria alimentamos a esperança de que, servindo-te de nosso arquivo, continuarás ainda a publicar novos tomos de tua grande obra histórica, os quais servirão sem dúvida para grande bem da Igreja e difusão da verdade histórica" (Historia de los Papas, tomo I, vol. 1, pp. 55-56).

(6) A corrupção era grande em Roma. Adriano VI não só apontava os males da Igreja, mas desejava uma reforma profunda que sanasse esses males, tendo-a começado por cima com decidida resolução. Onde lhe foi possível, se opôs à acumulação de benefícios, proibiu toda a espécie de simonia, e velou solicitamente pela eleição de pessoas dignas para os cargos eclesiásticos, conseguindo as mais exatas informações sobre a idade, os costumes e a instrução dos candidatos, lutando com inexorável vigor contra os defeitos morais. Com a radical reforma da Cúria Romana, empreendida por Adriano VI, não queria somente este nobre Papa por fim ao estado de coisas que lhe causava tão viva repugnância; mas esperava também, por este meio, tirar aos Estados alemães o pretexto para a sua apostasia de Roma – cfr. Pastor, Historia de los Papas, tomo IV, vol. IX).

(7) LUDOVICO PASTOR, Historia de los Papas, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1952, tomo IV, vol. IX, pp. 107 a 109 / Imprimase: El Vicario General José Palmarolla, por mandato de Su Señoria, L.c. Salvador Carreras, Pbro., Strio, Canc. – Os NEGRITOS são do autor deste Prefácio.