Folha de S. Paulo,
        1° de 
        novembro de 1970
        
        Entre 
        lobos e ovelhas: novo estilo de relações
        
        
        Quanto mais caminham os fatos, mais desconcertam um setor — que creio 
        amplamente majoritário — da opinião católica.
        
        Tal 
        desconcerto, é preciso que se diga, não decorre apenas da ação ou das 
        omissões de tantas autoridades pequenas, médias e altas da sagrada 
        hierarquia. Ele sobe ainda mais.
        
        Oxalá 
        alguém me convencesse de que são falsos os fatos meridianamente claros a 
        meu ver, em que me baseio para fazer esta afirmação.
        
        *  
        *   *
        
        
        Refiro-me particularmente ao que acaba de ocorrer no Chile, à vista do 
        mundo inteiro. A tragédia chegou a seu termo final. Já está legalmente 
        decidido que o país será governado por um presidente marxista, o qual 
        iniciará desde logo a marcha rumo à implantação do comunismo.
        
        É o 
        que noticiam todos os jornais. A maioria deles — pelo menos dos que 
        tenho lido — usa, para designar essa caminhada, um eufemismo 
        perfeitamente ambíguo: fala de "marcha para o socialismo", em lugar de 
        "marcha para o comunismo". Isto, evidentemente, beneficia Allende, pois 
        pode fazer crer a leitores menos avisados, que não é propriamente para o 
        comunismo, mas para uma forma branda de socialismo, que o novo 
        presidente conduzirá o Chile.
        
        Na 
        realidade, tal insinuação é inconsistente. A admitirmos que o candidato 
        eleito conduzirá seu país para o socialismo, deveríamos supor que o 
        Chile ainda não está em regime socialista. Pois ninguém pode conduzir 
        uma nação para onde ela já está. Ora, segundo é notório — e o brilhante 
        livro "Frei, o Kerensky chileno" de meu amigo Fábio Vidigal Xavier da 
        Silveira o demonstrou irrespondivelmente — o Chile já foi posto pelo 
        presidente Frei em regime socialista. A afirmação de que Allende 
        encetará a marcha de seu país para o socialismo só pode ter, portanto, 
        um sentido. É de que o encaminhará, não para o socialismo cor de rosa da 
        DC, mas para o socialismo rubicundamente marxista do partido ao qual 
        pertence o "camarada" Allende. Ou seja, para o comunismo. É, pois, 
        diretamente rumo a este que o Chile começará sua marcha irreversível. É 
        aliás, o que se contém nas promessas feitas por Allende aos eleitores. 
        Isto se fará por etapas longas? Por etapas curtas? Essencialmente, pouco 
        importa. É importante saber que alguém entrou numa irremediável agonia. 
        Bem menos importante é saber se esta será longa ou breve, desde que ela 
        leve irremissivelmente até a morte.
        
        Tudo 
        quanto acabo de dizer deduz-se de fatos publicados pelos jornais. Quem 
        duvidasse não teria senão o trabalho de os reler com atenção. Só o 
        negará algum raro pedecista fanático, algum comuno-progressista "à 
        outrance". E mais ninguém.
        
        Não 
        quero colocar em alguma destas categorias a Hierarquia Eclesiástica 
        chilena. E menos ainda Sua Santidade Paulo VI. Pelo que sou obrigado a 
        admitir que, tanto este quanto aquela, vêem e sabem o que todo mundo 
        sabe e vê.
        
        
        *  
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        E 
        então, como não ficar desconcertado? Teria bastado uma só palavra do 
        Sumo Pontífice para que o Episcopado chileno dissuadisse os católicos de 
        votar no candidato marxista. Tal palavra teria evitado a vitória de 
        Allende, cuja vantagem sobre o nacionalista Alessandri — de 1,4% — 
        qualquer influência eleitoral poderia ter superado. A História dirá que, 
        esta palavra, o Santo Padre não a pronunciou, e por isto Allende — com o 
        escandaloso "placet" do Cardeal Arcebispo de Santiago — venceu no pleito 
        popular. É doloroso dizê-lo. Mas é evidente.
        
        Para 
        a nação chilena restava, depois do resultado eleitoral, uma só saída. 
        Era que o Santo Padre, agindo por meio do Episcopado, recomendasse aos 
        deputados democratas-cristãos que não dessem seu voto ao candidato 
        marxista, quando da ratificação das eleições pelo Congresso. A História 
        dirá que, ainda nesta emergência, Paulo VI silenciou. E antes mesmo da 
        renúncia de Alessandri, a DC já pactuara com os comunistas, aos olhos do 
        mundo inteiro, garantindo seu apoio ao candidato marxista.
        
        
        Vitorioso este último no Congresso, e anunciado oficialmente que, em 
        poucos dias, o Chile iniciará sua "via dolorosa" rumo ao comunismo, o 
        cardeal Silva Henriquez, Arcebispo de Santiago, foi dos primeiros a 
        visitar o futuro presidente, assegurando-lhe o apoio da hierarquia, e 
        lhe transmitindo, da parte do Papa Paulo VI, saudações especiais bem 
        como votos de êxito. De sua parte, o purpurado chileno declarou à 
        imprensa que o dever dos cristãos neste momento é fazer o que estiver ao 
        seu alcance para que o novo governo tenha êxito.
        
        À 
        vista de tudo isto, torna-se inevitável levantar uma pergunta. Dou-lhe a 
        mais comedida das formulações: Paulo VI terá visto, desde o começo, sem 
        apreensão nem repulsa, a vitória de Allende? Quanto se passou leva a 
        responder que, efetivamente, ele a anteviu sem, contudo, dar mostras de 
        apreensão e repulsa.
        
        Os 
        fatos aí estão. Falam por si.
        
        A 
        esta altura, não posso deixar de me pôr diante de outra questão: é só 
        para o Chile que Paulo VI teria esta atitude fatal? Ou também para 
        outras partes da América Latina? Mais precisamente, também para o 
        Brasil? Neste caso, que futuro nos aguarda?
        
        *  
        *   *
        
        Os 
        fatos em que fundo minhas perguntas são por demais claros para que 
        possam ser abafados pelo berreiro de protestos vazios, por atos de 
        reparação ressentidos, mas falhos de qualquer base na realidade, por 
        estrondos publicitários ou campanhas de cochicho.
        
        
        Católico apostólico romano, eu o fui durante toda a minha vida. Sou-o, 
        hoje, com maior convicção, energia e entusiasmo do que nunca. E, espero, 
        pela graça de Deus e pela intercessão de Nossa Senhora, que o serei mais 
        e mais até o último alento. Por isto, tributo do fundo de minha alma, ao 
        Sumo Pontífice e à Santa Sé, toda a veneração, todo o afeto e toda a 
        obediência que lhes devo segundo a doutrina e as leis da Igreja.
        
        Mas 
        sei que, posto diante de fatos claríssimos, não os posso negar, nem 
        deixar de perceber suas conseqüências.
        
        E sei 
        também que, ainda quando admitidos os fatos irrecusáveis que acabo de 
        enumerar e analisar, tudo quanto a Igreja ensina sobre a infalibilidade 
        e a suprema autoridade dos sumos pontífices continua inteiramente 
        intacto. Assim, estou com a consciência à vontade ao tratar, como 
        católico, do triste e delicado assunto.
        
        *  
        *   *
        
         
        
       
        
        
        Desejará Paulo VI, para a América Latina, um "modus vivendi" com o 
        comunismo? Fico a pensar... e enquanto penso, me vem à mente uma fábula 
        de La Fontaine. Infelizmente, é das mais esquecidas. Mas é também das 
        mais oportunas. Citou-a, aliás, de passagem, o Sr. Brigadeiro Agemar da 
        Rocha Santos quando, em recente discurso, aludiu às ilusões irenísticas 
        de certos setores da opinião nacional.
        
        Dado 
        que o francês é correntemente lido entre nós, cito-a no próprio idioma 
        do poeta:
        
        [Les 
        Loups et les Brebis]
        
        "Après 
        mille ans et plus de guerre déclarée,
        
        Les 
        Loups firent la paix avecque les Brebis,
        
        
        C’était apparemment le bien des deux partis:
        
        Car, 
        si les Loups mangeaient mainte bête égarée,
        
        Les 
        Bergers de leur peau se faisaint maints habits.
        
        
        Jamais de liberté, ni pour les pâturages, 
        
        
                
        Ni 
        d’autre part pour les carnages:
        
        Ils 
        ne pouvaient jouir qu’en tremblant de leurs biens.
        
        La 
        paix se conclut donc; on donne des otages:
        
        Les 
        Loups, leurs Louveteaux; et les Brebis, leurs Chiens,
        
        
        L’echange en étant fait aux formes ordinaires, 
        
        
                
        Et 
        réglé par des commissaires.
        
        Au 
        bout de quelque temps que messieurs les Louvats
        
        Se 
        virent loups parfaits et friands de tuerie,
        
        Ils 
        vous prennent le temps que dans la bergerie
        
        
                Messieurs les Bergers n’étaient pas,
        
        
        Étranglent la moitié des Agneaux les plus gras,
        
        Les 
        emportent aux dents, dans les bois se retirent.
        
        Ils 
        avaient averti leurs gens secrètement.
        
        Les 
        Chiens, qui, sur leur foi, reposaient surement,
        
        
                Furent étranglés, en dormant,
        
        Cela 
        fut sitôt fait qu’à peine ils le sentirent;
        
        Tout 
        fut mis en morceaux; un seul n’en échappa.
        
        
                
        Nous 
        pouvons conclure de là
        
        Qu’il 
        faut faire aux méchants guerre continuelle.
        
        
                La paix est fort bonne de soi;
        
                
        J’en 
        conviens: mais de quoi sert-elle
        
        
                Avec des ennemis sans foi?"
        
        E 
        para proveito de leitores menos versados no lindo idioma de la Fontaine, 
        aqui vai esta tradução sem pretensões poéticas:
        
        
        Depois de mil anos e mais de guerra declarada, 
        
        Os 
        lobos fizeram a paz com as ovelhas.
        
        Era, 
        aparentemente, a felicidade dos dois partidos:
        
        Pois, 
        se os lobos comiam muita rês extraviada,
        
        Os 
        pastores, da pele deles, para si faziam muitos trajes.
        
        
        Jamais havia liberdade, nem para as pastagens,
        
        
                Nem, de outro lado, para as carnificinas:
        
        Não 
        podiam usufruir de seus bens senão tremendo.
        
        A paz 
        se concluiu, portanto; trocam-se os reféns:
        
        Os 
        lobos entregam seus lobinhos; e as ovelhas, seus cães.
        
        Sendo 
        a troca feita nas formas habituais,
        
        
                E ajustada por comissários.
        
        Ao 
        fim de algum tempo, quando os senhores lobinhos
        
        Se 
        viram lobos perfeitos e ávidos de matança,
        
        
        Valem-se do tempo em que, no redil,
        
        
                Os senhores pastores não se achavam,
        
        
        Estrangulam metade dos cordeiros mais gordos
        
        
        Agarram-nos com os dentes e se retiram para os bosques.
        
        
        Haviam eles avisado sua gente secretamente.
        
        Os 
        cães, que, sob a palavra deles, repousavam confiadamente,
        
        
                Foram estrangulados dormindo.
        
        Foi 
        isto feito tão rapidamente, que os cães mal sentiram;
        
        Foram 
        todos feitos em pedaços; nem um só escapou.
        
        
                Podemos concluir disto
        
        Que é 
        preciso fazer aos maus guerra sem quartel.
        
        
                A paz é bastante boa em si mesma;
        
        
                Concordo: mas de que serve ela
        
        
                Com inimigos sem palavra?
        
        Da 
        luminosa fábula se deduz que qualquer combinação da Igreja com o 
        comunismo não poderá ser um "modus vivendi", mas — segundo certa 
        vez já escrevi — um "modus moriendi".
        
        ______________________________ 
        
        
        Catolicismo Nº 239 - Novembro de 1970