Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Carta a Dom Bento Aloisi Masella, Núncio apostólico no Brasil

 

 

 

 

 

 

s/d mas de abril de 1939

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Dom Bento Aloisi Masella (1879-1970) foi núncio apostólico no Chile de 1919 a 1927 e no Brasil de 1927 a 1946, prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos de 1954 a 1968, e camerlengo da Igreja Católica de 1958 até à sua morte. "De família nobre da Itália, ele era sobrinho de outro Cardeal Aloisi Masella que tinha sido um grande teólogo".

(I H S)

Há dias atrás, recebi uma comunicação do Revmo. Sr. Pe. J. Danti, S.J., Reitor do Colégio S. Luis, de que tinha um recado de V. Excia. a me transmitir. Tendo eu procurado imediatamente aquele Sacerdote, disse-me ele que V. Excia. me mandava sua benção, e me fazia ciente de que não desejava que o LEGIONARIO mantivesse, em relação ao Sr. Benito Mussolini, e à sua política, as expressões veementes de que se tem servido. Acentuou ainda aquele Sacerdote que as palavras de V. Excia. se referiam, não à severidade e freqüência das apreciações, mas às expressões veementes com que, por vezes, estas têm sido externadas.

A nota referente à anexação da Albânia (Legionário, 9 de abril de 1939)  foi, infelizmente, impressa à última hora. Em virtude dos feriados da Semana Santa, tinha sido alterado o horário habitual dos trabalhos de nossa oficina, e estávamos encerrando nossos trabalhos, quando a notícia da anexação chegou. Ausente eu da redação naquele momento, o redator da nota deu livre curso às suas impressões, particularmente vivas pelo inesperado do fato, e pela circunstancia de se ter verificado na Sexta-feira Santa. Assim, a nota só chegou ao meu conhecimento depois de impressa, e, logo que a li, manifestei ao seu respeito meu descontentamento.

Sem embargo disto, é certo que o LEGIONARIO tem tido para com os erros do fascismo uma atitude não apenas severa, mas veemente. Com a sagrada autoridade que V. Excia. está revestido, V. Excia. opina que essa veemência é inoportuna. Graças a Deus, posso informar a V. Excia. que o LEGIONARIO obedecerá exata e alegremente às suas ordens. No LEGIONARIO não tem V. Excia. senão filhos dedicados da Santa Igreja de Deus, dispostos a receber com satisfação e com afeto filial todas as ordens de quem, entre nós, representa o Pai da Cristandade. Com alegria, disse, ainda mesmo que as ordens recebidas não coincidam com nossos pontos de vista pessoais: a verdadeira disciplina consiste em obedecer particularmente às ordens que contrariam nosso modo de pensar, pois que quanto às outras o mérito é pequeno.

Assim, portanto, em nome do LEGIONARIO e no meu próprio deponho ante V. Excia. as mais respeitosas homenagens, bem como os protestos de, com o auxílio de Deus, timbrar sempre na mais perfeita, filial e afetuosa disciplina para com V. Excia. Revma.

Ao mesmo tempo, agradeço o modo verdadeiramente delicado com que V. Excia. fez chegar ao meu conhecimento as suas ordens, bem como (sua benção).

Isto posto, permita-me V. Excia. Revma. fazer uma rápida exposição dos motivos que levaram o LEGIONARIO a assumir uma atitude incontestavelmente veemente, perante a política dos Estados totalitários. Desejo mostrar respeitosamente a V. Excia. que nossa veemência não foi fruto da irreflexão, de paixão, nem preocupações anti-italianas, mas que resultou de reflexões maduras, serenas, e livres de quaisquer considerações meramente humanas. Conquanto inoportuna nossa atitude, verá V. Excia. que ela é mais defensável do que, à primeira vista, pode parecer.

Situação da Itália

O LEGIONARIO reconheceu sempre, na Itália, as vantagens decorrentes do Pacto de Latrão. Sem embargo disto, não lhe escapou à percepção o fato de ser a política religiosa do Sr. Benito Mussolini absolutamente acidental na doutrina fascista, cuja essência totalitária faz, do Tratado de Latrão, um verdadeiro desvio estratégico na trajetória da revolução fascista, desvio este que, mais cedo ou mais tarde, deverá ser retificado por uma série de medidas legislativas que introduzam a revolução fascista no campo moral, educacional e doméstico, onde ela ainda não começou. Foi o que declarou, ainda recentemente, o Sr. Benito Mussolini.

Exatamente por ser extrínseca à mentalidade fascista, à política fascista, a política religiosa por este observada não encontra raízes no Partido, o que tem originado inúmeros incidentes que amarguraram até o último momento a existência do Santo Padre Pio XI, de gloriosa memória.

Ainda pelo mesmo motivo, a ação fascista se tem sido de conciliação com a Igreja na Itália, tem sido nitidamente anti-católica na Europa. A Áustria, o País dos Sudetos, a Boemia, a Moravia e a Eslováquia não gemeriam hoje sob o peso da perseguição religiosa, se não fosse o apoio dado pelo Sr. Benito Mussolini à política nazista. À vista deste evidente bi-frontismo religioso, é impossível confiar na sinceridade de propósitos do ditador fascista.

Essa impressão do LEGIONARIO tem sido confirmada por várias personalidades de relevo, entre as quais o R. P. Garrigou-Lagrange, o R. P. Laburu, e outros com quem temos cordialissimas relações. Como vê V. Excia., não se trata de uma impressão formada apaixonadamente através de informações de agências telegráficas suspeitas, mas de uma opinião absolutamente confirmada por pessoas abalizadas.

Situação do Brasil

Infelizmente, esse assunto não é apenas europeu, mas o Brasil se sente diretamente afetado por ele.

Segundo estou seguramente informado, o Revmo. Pe. Geral da Companhia de Jesus disse, ainda recentemente, que a grande tentação de nosso século não é mais o liberalismo, e muito menos o comunismo, mas o totalitarismo da direita.

Essa tentação, o Brasil a sentiu em toda a sua extensão, e as repercussões que, em nossa política, tiveram os exemplos dos Estados totalitários, são evidentes.

O Integralismo, doutrina política que combatemos vigorosamente e que quase se apoderou do Brasil com incalculável prejuízo para o País, teve como um de seus melhores argumentos as “vantagens auferidas pela Igreja com o advento do fascismo”. Tivesse o fascismo perseguido abertamente a Igreja, como fez o nazismo, e nunca o Integralismo teria passado, entre nós, de um pequeno grupo de meia dúzia de doutrinadores. O que lhe granjeou a simpatia das massas, o que conquistou para ele o apoio de milhares de católicos, o que o apontou à confiança popular, foi em boa parte a perspectiva de realizar uma política igual à que é, na aparência, a do Sr. Benito Mussolini: fortemente anticomunista, e sinceramente religiosa. A experiência fascista foi sempre o grande argumento integralista, e impossível seria refutar a tese sem atacar o argumento.

O golpe de 10 de Novembro mostra ainda mais claramente a influência da doutrina fascista no Brasil. A “Carta del Lavoro” foi traduzida quase palavra por palavra, em nossa Constituição. E toda a índole das instituições que nos regem é a índole do fascismo.

Assim, pois, o perigo do totalitarismo, introduzido entre nós em boa parte pela influência e pelo exemplo fascista, é para os católicos brasileiros um perigo imediato e atual, contra o qual o LEGIONARIO quis prevenir os leitores brasileiros.

A opinião pública do Brasil

O problema que se apresentava, pois, diante de nós, era de mover a uma rejeição efetiva e vigorosa, a opinião pública dos brasileiros católicos.

O próprio da função do jornalista, máxime do jornalista católico, consiste em dizer a verdade, e só a verdade. Mas nem todas as verdades devem ser ditas com igual minudência nem igual insistência, sob pena de fazer-se mais mal do que bem.

É o caso das incontáveis benemerências do fascismo.

Escrevendo para brasileiros, não poderíamos, como jornalistas, deixar de tomar em consideração as circunstancias especialíssimas da mentalidade de nosso povo. Era esta a condição indispensável para alcançarmos qualquer resultado positivo.

O brasileiro, graças a Deus, é bom. Ele é, até, tão espontaneamente e tão facilmente bom, que mesmo no paroxismo de possíveis extravios morais ele não perde um certo amor ao bem.

O que, infelizmente, lhe faz falta, não é o amor ao bem: é o ódio ao mal. Se é fácil levar o brasileiro a aplaudir o bem, não é fácil levá-lo a repudiar e a combater o mal. O temperamento nacional, mercê do próprio excesso de suas qualidades, sente grande dificuldade em assumir qualquer atitude de repulsa enérgica ao mal. O confusionismo religioso em que vivemos não tem outra causa.

Implicitamente, sempre que se quer levantar a opinião brasileira contra qualquer erro, é preciso, a nosso ver, usar de uma linguagem calorosa. E não é impossível que o resultado prático seja, ainda assim, bem menor do que a linguagem usada fazia esperar.

Parece-nos, pois, ocioso pretender formar uma opinião católica enfaticamente anti-totalitária (se bem que também anti-liberal) com um jornal que,  academicamente, apontasse o bem e o mal do fascismo, com uma linguagem absolutamente serena. O povo brasileiro, ou se leva por uma campanha vigorosa, ou não caminha.

Aliás, parece ser também este o caso de outros povos. Na Itália, por exemplo, a imprensa fascista é terrivelmente unilateral. Jamais se vê um artigo em que ela elogie sem reservas algum adversário. E penso mesmo que se não fosse essa unilateralidade e a extrema violência de linguagem do Sr. Benito Mussolini, este nunca teria conseguido levantar como um só homem, o povo italiano. Ser-lhe-ia possível, por exemplo, manter sua atual orientação internacional, se ele reconhecesse o desejo de paz do Sr. Chamberlin, e aquilo que existe de inegavelmente bom, em outros países? Não parece.

Sempre que esse unilateralismo se desenvolver sem mentiras nem calúnias, parece ele o melhor meio para levar as massas em nosso século. É esta a experiência na Itália. E por isto mesmo sempre me causou pasmo que os fascistas de S. Paulo se irritassem com nosso pretenso unilateralismo.

A verdade, porém, é que, da parte do LEGIONARIO, não tem havido um real unilateralismo. Mais de uma vez – e V. Excia. o verificará pelo artigo anexo – temos reconhecido o que de bom tem feito o fascismo. Simplesmente, pelos motivos expostos, temos dado maior relevo ao que ele tem de mau, que é maior do que o que tem de bem.

Tem-se afirmado, e é possível que essa afirmação tenha subido até V. Excia., que o LEGIONARIO sustenta que a situação da Itália é idêntica à da Alemanha, o que constituiria para com o fascismo uma evidente injustiça. No entanto, o que o LEGIONARIO tem afirmado é tão somente que, conquanto a situação religiosa atual da Itália seja incomparavelmente melhor do que a da Alemanha, a essência da doutrina fascista é em muitos pontos a mesma que a da doutrina marxista, e que essa afinidade doutrinaria, reforçada por uma intima cooperação política e uma evidente interpenetração cultural entre ambos os países, ameaça conduzir a Itália, mais cedo ou mais tarde, à situação alemã.

A imprensa fascista diz freqüente, e tem nisto toda a razão, que as democracias como a França e a Inglaterra são sovietisantes. Não quer a imprensa fascista dizer com isto que a França e a Inglaterra se encontrem atualmente (sublinhado do original, n.d.c.) em situação idêntica à da Rússia. Mas a afinidade existente entre as doutrinas liberais e socialistas de um lado, e, de outro lado, a cooperação política do triângulo Londres-Paris-Moscou, ameaça conduzir a França e a Inglaterra a uma situação igual à da Rússia.

Ora, exatamente no sentido em que os fascistas chamam os liberais de “sovietisantes”, chamamos nós, os do LEGIONARIO (que não somos, aliás, liberais, mas favoráveis a um regime como o de Dellfuss) aos fascistas de nazistisantes.

Não há um único artigo de minha autoria em que se encontre uma idéia diversa desta.

A colônia italiana

 Jornal católico, o LEGIONARIO atendeu sobretudo às necessidades do Brasil, e da opinião brasileira.

Isto não obstante, tomamos a maior precaução com a repercussão de nossa atitude na colônia italiana de S. Paulo.

A respeito dessa colônia, temos a obrigação de, servindo antes de tudo os interesses da opinião brasileira, nunca agir com prejuízo da justiça e da caridade.

Por isto mesmo, tomamos as seguintes precauções:

1 - Nunca fizemos uma crítica que fosse injuriosa à Itália como tal; pelo contrário, o LEGIONARIO tem elogiado a Itália com uma insistência que toca às raias do excessivo, para mostrar que nada tem de anti-italiano;

2 - Enquanto elogiamos calorosamente a Itália, sempre fomos muito mais moderados em relação a outros paises com os quais esta está em dissídio;

3 - Nunca tomamos posição pró ou contra a Itália em questões alheias aos princípios ou interesses da Igreja;

4 - Evitamos cuidadosamente quaisquer incidentes com a colônia italiana aqui residente. Para este efeito, nunca fizemos a menor crítica à Fanfulla, o único jornal que se publica em S. Paulo, daquela colônia, a respeito do qual o LEGIONARIO nunca fez um comentário que revelasse censura. Para com esse jornal estrangeiro, usamos de uma moderação que nunca nos mereceram os próprios jornais nacionais. E quanto a “Fanfulla” nos dirigiu certa vez uma crítica, demos uma resposta breve, para evitar quaisquer polêmicas. Por outro lado, arquivamos sem resposta as cartas que membros da colônia italiana nos escreveram, injuriando pesadamente o Brasil e até a Igreja. Poderíamos ter publicado essas cartas, o que daria a certos elementos anti-italianos existentes em nossa política um ótimo pretexto para uma grande campanha. O LEGIONARIO, entretanto, silenciou absolutamente, não dizendo jamais uma única palavra em resposta, e suportando em silêncio todas as injúrias que lhe eram feitas em sua própria casa.

Tanto é verdade, Exmo. Revmo. Sr. Núncio, que a orientação do LEGIONARIO nada tem de anti-italiano, que vários Sacerdotes italianos aqui residentes apóiam decididamente nossa atitude. Leia V. Excia. “La Squilla” e notará a freqüência com que esse jornal dos PP. Paulinos transcreve o LEGIONARIO, inclusive em críticas sobre o fascismo. Assim, muitos outros Sacerdotes italianos, modelares como filhos de sua Pátria, muitíssimo ciosos da dignidade desta, estão entre os melhores amigos do LEGIONARIO.

Enquanto isto, a Fiamma, por exemplo, publicou contra o LEGIONARIO uma nota que nunca poderia figurar em um jornal, pelo seu cunho pornográfico. E O LEGIONARIO SE CALOU.

Outra prova curiosa é que recebemos muitas cartas de protesto, mas pouquíssimas – não mais de 5 ou 6 – de assinantes nossos. Ameaçaram-nos com uma campanha de retirada de assinaturas. Essa campanha não chegou a conquistar mais de 5 ou 6 aderentes, pois que foram só estes os assinantes que nos escreveram renunciando às assinaturas. A tal ponto é verdade que o LEGIONARIO pode contar com seus assinantes italianos, o que prova que jamais afetou o brio e a dignidade destes.

Outras colônias

Entretanto, há em S. Paulo outras colônias para quais é preciso olhar. Se o jornal católico de S. Paulo não tomasse posição contra a política européia de violação de tratados e de paganização, seguida pelo Sr. Hitler e apoiada pelo Sr. Mussolini, poderíamos talvez evitar inconvenientes na colônia italiana. Mas, e o que diriam as outras colônias? O que diriam os austríacos, os checos, os albaneses, etc.? Realmente, são eles menos numerosos. Mas eles têm o direito de ler em jornais católicos a condenação da opinião católica a injustiças que os ferem a fundo, que realmente são condenáveis e que S. S. o Papa Pio XII já condenou na sua alocução de Páscoa, quando se referiu à violação de tratados, pois que não há outras violações senão essas, às quais ele pudesse condenar. Para evitar um mal na colônia italiana, desprotegeríamos os interesses brasileiros, e iríamos causar má impressão em outras colônias.

A censura

Aliás, freqüentemente, quando o LEGIONARIO ataca o governo italiano, fá-lo apenas como pretexto para criticar o governo brasileiro, mostrando que este toma o caminho totalitário. A censura não nos permite outra atitude, e esta, desde que seja moralmente lícita, tem sido por nós freqüentemente utilizada.

*    *    *    *

 Estas são, Exmo. Revmo. Senhor Núncio, as razões que o LEGIONARIO tinha. Aprovou-as sempre, e francamente, o Sr. Arcebispo D. Duarte, que chegou a repreender energicamente certos Sacerdotes italianos pelas críticas que faziam a nosso jornal. Disto são testemunhas o Exmo. e Revmo. Sr. Bispo Titular de Barca e o Revmo. Pe. Ernesto de Paula.

Expondo com filial confiança a V. Emcia. essas razões, folgo em reafirmar que não tenho, nem de longe, a temerária intenção de argumentar ou esclarecer a Vossa Excelência, que, pelo alto cargo que ocupa, pela grande inteligência e experiência que o distinguem, e pela cultura que tem, dispõe de elementos incomparavelmente mais seguros do que os nossos, para julgar a situação. Meu único intuito foi o de mostrar a V. Excia. como é que vimos o panorama em que nos encontramos, o de evidenciar, sobretudo, que nenhuma de nossas atitudes foi tomada sem uma reflexão madura, muito distante da iracundia exacerbada, unilateral e apaixonada que nos atribuem muitas das cartas que nos enviam elementos fascistas da colônia italiana. Constantemente abençoados pelo Sr. Arcebispo D. Duarte, protegidos por sua autoridade, e cobertos por seu prestígio, contando com a simpatia decidida de nossos assinantes italianos, e de numerosos Sacerdotes italianos, sempre tivemos a certeza de que nossa atitude, se bem que veemente, sempre foi justa e maduramente refletida.

Isto não obstante, é com o maior desprendimento, com a mais filial e serena alegria, que moderaremos a veemência de nossa linguagem, alegres por obedecer nisto a V. Excia., a quem tributamos uma veneração sem limites.

Agradecendo filialmente a benção de V. Excia., e pedindo suas preciosas orações, subscrevo-me, de V. Excia.,

filho e servo devotadissimo em N.S.J.C.

Plinio Corrêa de Oliveira

 Dom Bento Aloisi Masella tendo às mãos um exemplar do "Legionário"


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