Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Professores universitários, comerciantes e homens da plebe podiam ascender à nobreza

 

 

Catolicismo, n° 522, junho de 1994, págs. 10 e 11 (*)

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Não constitui a nobreza uma classe fechada como as castas hindus, mas sempre aberta a plebeus que transcendam, por suas qualidades e méritos excepcionais, sua extração social

 

A Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, carregada de tradições – ostentando em suas paredes grandes quadros, apresenta original teto abaulado de madeira trabalhada com seus torneados lustres carregados de lâmpadas – provoca no observador verdadeiro “flash”: da harmoniosa combinação de elementos diversos resulta uma síntese superior de beleza, seriedade e distinção (para visita virtual de 360° àquela sala, basta clicar aqui)

Como já vimos em conferência anterior (**) havia várias razões pelas quais um indivíduo, uma família ou um conjunto de famílias, pela ascensão gradativa na escala social, ao cabo de algumas gerações, podiam ficar nobres. Era o que ocorria com as elites tradicionais.

Já vimos também, embora muito de passagem, que uma das elites que podia facilmente ascender à nobreza era a classe dos professores universitários.

Realmente, o fato de ensinar é mais do que simplesmente conhecer. Pois ensinar é ter do assunto não apenas um conhecimento excelente, mas também ser capaz de transmiti-lo de forma adequada e até brilhante, por meio das qualidades de ordem didática que o professor deve possuir. E isto é uma excelência do espírito humano.

Na ordem intelectual, a condição de professor universitário deveria ser - infelizmente nem sempre o é - o supra-sumo da condição de intelectual. Deveria ser a nobreza e a aristocracia não só do magistério mas de toda a intelectualidade de um país. Isto porque a universidade é a mais alta das escolas e ser professor numa universidade é o mais alto dos magistérios.

Havia universidades em que os professores e suas famílias podiam ser nobilitados.

Em Portugal, a condição de intelectual já abria as portas para a categoria nobre. Todo aquele que se diplomava em Teologia, Filosofia, Direito, Medicina ou Matemáticas na famosa Universidade de Coimbra, fundada em 1307, era nobre a título pessoal e vitalício, embora não hereditário. Mas se, de pai a filho, três gerações de uma mesma família se diplomavam em Coimbra nessas matérias, passavam a ser nobres por via hereditária todos os seus descendentes, ainda que estes não viessem a cursar, por sua vez, a referida Universidade.

Isto era muito legítimo, muito certo, porque as grandes Universidades formam nos seus professores e alunos uma certa qualidade de espírito que exprime categoria, e pela qual eles se tornam realmente nobilitáveis.

Tudo isto, porém, não impede que haja na condição de professor algo que não seja nobre. Ele pode ser um intelectual que pensa e estuda muito, mas que vive uma vida tranqüila entre seus livros, sem lutas, habituado egoísticamente a várias comodidades, cercado de um prestígio que não corre riscos, titular de uma cátedra vitalícia, numa situação de largueza e conforto adequados à sua condição.

Vista desta maneira, a condição de professor pode não ser digna de ascender à nobreza, pois nela há qualquer coisa de deformante no modo de exercer a profissão, o que a torna eminentemente burguesa.

Existe, porém, um outro modo de viver a condição de professor. É ter um espírito muito qualitativo, voltado a perceber nas coisas muito mais o seu significado do que os meros fatos concretos, capaz de compreender um certo suco da realidade que um professor de espírito não qualitativo não compreende. Um professor que ao narrar um acontecimento, ao comentar uma lei, ao descrever uma experiência, ao expor um argumento ou ao resolver um problema saiba dar o sentido mais profundo da qualidade daquilo que foi objeto de sua exposição, este é um homem de espírito superior que pode ser nobilitado.

Don Cláudio de López Bru, segundo Marquês de Comillas e "Grande de Espanha" (1853-1925). Seu pai era filho de uma mendiga

Ascensão de plebeus à mais alta nobreza

Além dessas formas de nobilitação de categorias sociais, havia um fato evidente, que a observação comum da História mostra: das camadas mais obscuras da sociedade podiam surgir, de repente, pessoas dotadas de algumas qualidades que as habilitariam a pertencer à mais alta nobreza (***).

Podiam ser pessoas que nascessem, por exemplo, com a capacidade de se tornarem grandes estadistas, chefes de Estado. Ou mesmo de virem a ser excelentes ministros, como de fato os houve. Quando se pesquisa a formação do espírito de tais estadistas, o meio familiar e social em que viveram, nada indica que possa ter originado tal capacidade e tais qualidades. O pai podia ter sido um modesto e digno operário; a mãe, uma pobre esposa que ajudava a família a viver com o escasso ordenado do pai. Nada havia ali que fizesse surgir na cabeça do menino uma tendência, uma capacidade para ser um grande político ou diplomata, um grande guerreiro, um grande poeta, um grande artista, ou qualquer outra coisa do gênero.

A História, entretanto, contém numerosos exemplos de pessoas provenientes das classes mais modestas e que tiveram esse dom, essa capacidade.

É freqüente encontrarmos, na história militar da Idade Média, feitos heróicos praticados por pessoas que pertenciam à plebe mas que revelavam, no seu modo de combater, uma tal elevação de sentimentos, um tal desprendimento de si mesmos que - embora pertencendo à plebe mais elementar, mais modesta - podiam ser elevadas à condição de nobres.

Pois quem é capaz de ser mártir, de arriscar e dar sua própria vida tendo em vista um bem superior, um bem comum, tem as grandes fortalezas e as grandes elegâncias de alma que são a matéria-prima do nobre, que modelam um tipo humano que faz do nobre um como quê santo da ordem temporal.

Assim, quando alguém manifesta uma grandeza de modesta origem, é natural que seja elevado ao que deve, mas sem transformar este fato em regra geral. Pois o que Deus quis dar a um, pode não dar a outro. Deus se reserva a Si mesmo o direito de tomar alguém da mais humilde condição e elevá-lo, simplesmente porque quis.

E o homem assim escolhido por Deus, colocado nessa situação, deve saber aproveitar os dons recebidos de tal modo que, posto no cume das grandezas humanas, sirva a Deus e à Igreja com todo o empenho de sua alma e de seu coração. Caso recuse tal serviço e faça mau uso de seus dons e de suas capacidades, terá que prestar contas a Deus.

Esses fatos, essas grandezas, servem para mostrar que Deus é o verdadeiro autor de tudo isso. Ele modela os grandes homens, as grandes famílias, as grandes nações, porque Ele é infinitamente grande, é a própria Grandeza e o autor de todas as grandezas.

É isso que se deve reconhecer na análise daquilo que ocorre na história da humanidade. 

Cardeal Júlio Mazarino – Quadro de Philippe de Champaigne, Castelo de Chantilly, Museu Condé

Adendos:

Da plebe italiana à corte francesa

A História aponta casos muito interessantes de pessoas que, embora nascidas na plebe, foram dotadas com capacidade para se tornarem estadistas famosos e dirigentes de nações.

Um exemplo característico neste sentido foi Júlio Mazarino, de origem modesta e quase desconhecida. Parece que nasceu em Piscina, Abruzos (Itália), em 1602. Era dotado de extraordinária inteligência, muito sutil, excelente político e diplomata, muito digno de trato, o que lhe permitiu figurar com destaque na corte francesa, a mais exigente do mundo naquela época. Naturalizou-se francês em 1639 e, embora não fosse sacerdote, obteve o título de Cardeal em 1641, pelo qual passou a ser conhecido, e que lhe conferiu status de alta nobreza na linha eclesiástica. Richelieu, o famoso ministro de Luís XIII, ao morrer em 1642, recomendou-o a esse monarca, que o nomeou Primeiro-Ministro. Mazarino ocupou o cargo não só até a morte daquele Rei, ocorrida em 1643, mas também durante toda a Regência de Ana d'Áustria - mãe de Luís XIV, então menor - e no início do reinado deste último, morrendo em 1661, ainda como Primeiro-Ministro de França.


Notas:

(*) Excertos da conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP, a pedido destes, em 5-11-92, na capital paulista. Sem revisão do orador.

(**) Cfr. Catolicismo nº 519, março de 1994. Tal artigo, como o que apresentamos nesta edição, constituem comentários do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sua mais recente obra Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Editora Civilização, Porto, 1992. Além dessa edição portuguesa, foram lançadas traduções da obra na Espanha, Itália, França e Estados Unidos.

(***) É claro que tal distilação social só é possível numa sociedade com as características de um verdadeiro povo, tal como o descreve Pio XII em sua Radiomensagem de Natal de 1944, conceito este que se opõe ao que o Pontífice qualifica de massa. Numa sociedade massificada e anorgânica, jamais ocorrerá um fenômeno de transcendência social desse gênero.


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