Plinio Corrêa de Oliveira

 

Renascença

 

Parte II

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reunião Extra, realizada em 1966, s/d (continuação)

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* Muito do que se pode dizer da psicologia de uma pessoa, pode aplicar-se também a uma época histórica

Assim como as pessoas têm sua psicologia, assim também os povos. Muito do que se pode dizer da psicologia de uma pessoa, pode aplicar-se também a uma época histórica.

Com relação à psicologia de um homem, é dizer muito pouco de seu estado de espírito real em se afirmando apenas que ele tem um determinado feitio de alma. Quando dizemos que um determinado homem é um gozador da vida, ou que é afetivo ou rancoroso, certamente não estamos dizendo tudo, porque um dos dados mais importantes para se conhecer a mentalidade do homem, é saber de que evolução psicológica seu estado de espírito atual é uma resultante. Atrás de si, que passado psicológico tem? E no momento atual, para que rumo está caminhando?

 

São Paulo jogado ao chão (tela de Guido Reni)

Para exemplificar, tomemos dois casos. De um lado, São Paulo jogado ao chão na estrada de Damasco, depois levado cego para a casa de Ananias, esperando a graça de Deus para se orientar. Ele deveria conservar, naturalmente, muitos restos da má vida passada que teve; não propriamente vida dissoluta, mas vida de homem entregue à perseguição de Jesus Cristo, com inúmeros erros adquiridos na sinagoga, da qual era servidor fanático.

Suponhamos, de outra parte, um anacoreta no deserto, cheio de virtudes, possuindo a fé católica, mas no princípio de uma decadência espiritual.

O anacoreta pode estar fazendo muito mais pela Igreja do que São Paulo, mas há algo neste que vale mais do que todas as virtudes do anacoreta: é o fato de estar em ascensão. É o movimento que resulta de algo que o anacoreta já não tem, a apetência de virtudes novas, de novos horizontes, de novas perfeições.

Os rumos das almas é o que mais importa, inclusive para melhor nos compreendermos e nos interpretarmos.

* O renascentista estava ainda muito próximo da Idade Média e tinha no seu subconsciente e nos seus hábitos mentais, muitíssimas concepções medievais

Se aplicarmos o que acabamos de expor à Renascença, poder-se-ia dizer que a mentalidade do homem renascentista é uma mentalidade dividida. Tinha ela atrás de si, pela educação, pelos eflúvios da Idade Média ainda próximos, uma hereditariedade psicológica que entenderemos através daquele princípio enunciado por Napoleão, de que a educação de uma criança começa cem anos antes dela nascer.

O renascentista estava ainda, pois, muito próximo da Idade Média, e tinha no seu subconsciente e nos seus hábitos mentais, muitíssimas concepções medievais. Ora, ao par desse substractum medieval, ele tinha algo de novo, que é o que nos importa analisar.

Mas para entendermos no que consistia esse elemento novo, devemos tomar como ponto de referência a psicologia medieval.

* O homem medieval estava habituado à seriedade de alma

O homem da Idade Média estava habituado ao estado mental em que todas as paixões estão em equilíbrio, e em que nenhuma delas vibra demais. Os vários estados de espírito nele se sucedem de um modo razoável e equilibrado e uma grande seriedade preside a toda a sua vida. Se há algo que marca a Idade Média é a seriedade.

No que consiste esta seriedade?

A fé abre para nós horizontes em que tudo é imensamente sério. A idéia de que temos uma só vida; de que na extremidade dessa mesma vida está ou o Céu ou o inferno; de que em todos os nossos atos estamos conquistando o Céu, ou merecendo o inferno; de que Deus, seus Anjos, seus Santos, a Corte Celeste inteira estão a todo instante nos vendo e analisando o valor recôndito de tudo aquilo que fazemos, pensamos, ou sentimos; de que tudo tem um fim muito alto para que se encaminha; essas idéias dão à vida dentro do horizonte católico, uma nobreza, uma gravidade, uma seriedade incomparáveis.

Sob um certo aspecto, essa seriedade até cansa o homem. É uma conseqüência do pecado original. Esse cansaço é como o de um palhaço que fosse obrigado a viver durante muito tempo entre pessoas sérias. Suponhamos que esse palhaço, que gostaria de viver gracejando, tivesse de assistir a discussões de teologia, ou fizesse um retiro espiritual. Ele se cansaria enormemente; esta seriedade o acabrunharia.

Todo homem tem algo disto. Tem o gosto pelo leve, pelo trivial, pelo inconseqüente, pelo tolo, tem gosto por aquilo que não conduz a nada, pela pura brincadeira, pelo puro jogo indolente de forças e de situações, pela ausência de finalidade, o tender sempre para um fim muito alto é coisa que cansa o homem.

* A mentalidade renascentista: saciedade da vida medieval equilibrada, séria, dirigida para os fins últimos e sequiosa do prazer, do divertimento, da alegria

A primeira coisa que se pode notar na mentalidade do homem renascentista é exatamente uma espécie de saciedade da vida medieval. E, em vez de procurar uma vida equilibrada, razoável, ordenada, dirigida para fins últimos, o homem renascentista surge sequioso de risos, gargalhadas, prazer, divertimento, alegria, sem pensar num fim último, sem a preocupação de um dever, sem a idéia de um Deus, de um Céu, de um Inferno.

Esse relaxamento, essa abstração de um fim último, essa falta de gravidade nos parece ser a nota mais importante do Renascimento.

Por isso, vemos que os personagens renascentistas nos aparecem nas descrições, nas gravuras, nas pinturas, nas esculturas em que eles mesmos se representam, homens sempre alegres, sempre satisfeitos, olímpicos e despreocupados. É exatamente a oposição que vai do homem olímpico para o homem cristão.

 

Francisco I de França, por Jean Clouet

A representação perfeita do homem olímpico é, a nosso ver, o rei Francisco I de França: alto, bonito, bem feito, símbolo do otimismo e da gargalhada, com atitude sempre simpática, continuamente disposto em relação à vida.

 

São Luís IX, rei de França

É o oposto de São Luís, também ele um homem muito bonito, mas muito grave, sério, casto, ameno no trato e sem nenhum desses otimismos superficiais próprios ao renascentista.

Essa atitude otimista em relação à vida redundava no gosto permanente do prazer e na necessidade de estar continuamente a se divertir.

Nos costumes da Renascença aparece algo que na Idade Média não havia: a vida de corte. É bem evidente que na Idade Média havia corte. Mas o que então se entendia por corte era simplesmente o conjunto de dignatários que serviam o rei, levando uma vida comum. Não são pessoas que vivem em festas.

A vida de corte como a Renascença inaugura é uma vida normal e permanentemente festiva, em que o rei está sempre no centro de uma grande festa, em que a nobreza está sempre engalanada, em que o palácio é organizado para festas, para a gargalhada e para o vício.

A arte decorativa toma permanentemente um ar de salão; as roupas, ares mundanos; o tom da conversa é de reunião social. Toda a atmosfera toma esse caráter falso e festivo, característico da Renascença.

* Sempre que o homem busca sofregamente a alegria, nasce a tristeza dentro de sua alma, dessas tristezas pesadas e escuras, que o devoram, que pesam e que conduzem ao desespero

Num certo sentido, o renascentista é um liberal, e considera as normas rígidas do passado medieval como superadas. Seus costumes e suas idéias são livres. Mas ao par deste lado liberal e alegre, notamos no renascentista o contrário. Sempre que o homem busca sofregamente a alegria, nasce a tristeza dentro de sua alma, dessas tristezas pesadas e escuras, que o devoram, que pesam e o deixam acabrunhado.

Vemos então nascer, lado a lado, dois veios de arte que se vão acentuando, e dois estados de espírito que vão também progredindo quase indefinidamente, até o nosso tempo. De um lado, a alegria sem idéias, que começa por ser olímpica na Renascença, vai se tornando cada vez mais a alegria de orgias até a Revolução Francesa, e depois passa para o tipo da alegria descontrolada de nossos dias. Mas, ao lado desse fluxo de alegria cada vez mais desordenado, a Renascença vai manifestando na arte a outra face da humanidade, que é a da tristeza desesperada, inseparável da alegria desordenada.

 

Michelangelo Buonarroti por Jacopino del Conte

Essa tristeza nós a vemos aparecer em dois homens típicos da Renascença: Michelangelo e Leonardo da Vinci. Sobretudo em da Vinci, um homem sombrio, hipocondríaco, amigo de viver sozinho, melancólico, pessimista, triste e imerso no desespero. Mas também em Michelangelo, cujos personagens, em geral, são olímpicos pela estatura, mas não pela alegria. São personagens tristes.

Leonardo da Vinci

É a tristeza que começa a aparecer na arte, sob as formas pagãs das Fúrias, dos Cíclopes derrotados, dos heróis esmagados, dos grandes revoltados que querem destruir todas as coisas; eis o sentido da glorificação de Espártaco, o chefe dos escravos revoltados.

E com isto começam a aparecer também certas canções, certas poesias de uma tristeza que logo descamba para o lúgubre e para o desesperado.

Como expressão curiosa disto, não só a arte, mas os costumes registram uma modificação. A época das grandes festas é a época em que o luto se complica, em que vão aparecendo as grandes pompas fúnebres. Muito mais do que na Idade Média, a Renascença estilizou os enterros, o luto, os pêsames. Nós sabemos bem do estilo de uma rainha do tempo da Renascença e dos tempos posteriores, por exemplo a rainha Maria Stuart, a receber pêsames numa sala toda forrada de tecidos negros, toda fechada, apenas com velas acesas, inteiramente vestida de branco. É curioso que o luto vai conhecendo uma glorificação. A Renascença teve um luto muito complicado, a tal ponto que em certo momento a humanidade teve de se libertar um pouco desses crepes, porque a vida tornava-se impossível.

* O renascentista acabou perdendo aquilo que é o corolário necessário da perda da Fé: a perda da convicção e da confiança na razão

Esta atitude perante a dor e perante a alegria constitui uma das características da Renascença. Mas há outro ponto ainda mais sintomático. Por razões que seria longo aqui enunciar, pode-se chegar à conclusão de que, provavelmente, o único tipo de homem que tem uma verdadeira certeza a respeito dos fins últimos de sua existência, do sentido da vida e da razão de ser de todas as coisas; que tem uma verdadeira certeza a respeito dos princípios filosóficos que sustenta, o único tipo de homem inteiramente assim é o que tem fé, e fé sobrenatural, católica, apostólica, romana. Quando o homem tem fé, evita a dúvida e é capaz de certezas. Quando não tem verdadeira fé, ele é incapaz disso.

Embora engendre sistemas filosóficos e tenha uma tal ou qual convicção de que esses sistemas são verdadeiros, não se pode acreditar que pessoas desse tipo tenham fé neles à maneira que um católico a deve possuir. Há certos Santos que, tendo tido oportunidade de ver perto de si a realização de milagres, declararam que não os precisavam ver, tinham tal fé que para eles o milagre não acrescentaria nada. Nisto podemos ver um grau de certeza verdadeiramente invencível.

Mas, se um filósofo renascentista pudesse ver um milagre para comprovar sua própria filosofia, seria lícito pensar que ele certamente tomaria a mesma atitude que esses Santos? Suponhamos Bacon, Campanella ou Erasmo. Se eles pudessem ver, por exemplo através de uma bola de cristal, tudo o que disseram era verdadeiro ou falso, haveria algum que dissesse: "Não, nada quero ver, porque estou certo de que a bola de cristal vai mostrar que minha doutrina é verdadeira"? Isto é privilégio apenas do homem que tem a fé católica.

Na Renascença a fé sofreu, como sabemos, um enfraquecimento considerável. O que o renascentista perdera do mundo da sua fé acabou perdendo também no campo da certeza acerca de todas as questões da vida. Perdeu muito da certeza do último fim do homem, e com isso, começou a nascer nele aquilo que é o corolário necessário da perda da Fé: a perda da convicção e da confiança na razão.

* Ao lado do racionalismo, começa o gosto por uma experiência mística que possa dar aquela certeza que o raciocínio não dá mais

Surgem, pois, na Renascença, dois veios que se prolongam também até os nossos dias: de um lado o racionalismo; de outro uma corrente que já não tem confiança na razão e que já não é racionalista, a qual por isso vai procurar na experiência as certezas de que o espírito humano precisa.

Para estudarmos como isto se dá, tomemos um renascentista gozador da vida. Ele aprendeu em pequeno que existe um inferno, que existe um Céu, e assim por diante. Ele conserva essas convicções no fundo da alma, e elas o incomodam. O que faz ele? Passa a acolher com simpatia toda espécie de filósofos e teólogos que lhe dizem que essas convicções não são verdadeiras. E mesmo quando ele não se convence inteiramente, o fato de ver argumentos coruscantes contra as doutrinas da fé, lhe dá um certo prazer interior e uma certa esperança de que a fé não seja verdadeira.

Naturalmente, alguns passam dessa posição de simpatia para com os argumentos anticatólicos, para uma posição de dúvida. Eles ouvem os argumentos católicos, ouvem o argumento anticatólico e no fundo, dentro do emaranhado do assunto, não sabem bem como decidir.

Outros, porém, vão mais longe. Para afogar o bramido da consciência dão sua adesão aos raciocínios errados. Passam a achar que eles estão certos. E chegam até à descrença mais completa.

Mas, o que acontece com uns e outros? Põem toda a sua confiança na razão, mas ao mesmo tempo começam a desconfiar dela. "Será verdade que com tantos argumentos, eu liquidei com tantas convicções? Qual será, no fundo, a verdade? O que é certeza?

Quando um deles, tendo se embriagado, acorda de manhã frustrado, com a boca amarga, os credores batendo na porta, e com o escândalo o ameaçando, por causa de seus desvios morais, a tendência é de procurar uma saída para a vida. Ele já não acredita na fé, que lhe daria algum meio de regeneração. De outro lado, tem convicção de que todos aqueles argumentos mediante os quais perdeu a fé, podem trazer a ilusão de que a fé não é verdadeira, mas não demonstram nenhuma outra verdade.

Ou então, podemos nos figurar o caso de uma pessoa que goza a vida, mas que começa a saturar-se dos prazeres. Tudo lhe parece horroroso, monótono, sem explicação, e começa a achar necessário outros horizontes e outras satisfações. Começam as crises de desespero e a pessoa não encontra mais encaixe dentro da vida. Naturalmente, nessas horas os espíritos, queiram ou não, começam a se tornar filosóficos. Se a pessoa ouve a voz da graça, repete-se a parábola do filho pródigo. Mas se não a ouve, para que ela está preparada?

Suponham uma dama da Renascença em sua casa, num balcão que dê para a rua. Sentada em uma cadeira, ela está bem vestida, e é bonita. Ouve-se ao longe uma serenata que se aproxima de sua casa que por fim, pára e canta; ela agradece. O silêncio então se faz na ruela estreita e a dama continua a pensar. Olha para o céu, olha para a lua, e sente-se invadida de uma insatisfação de tudo; qual vai ser o seu futuro? Tudo é incerto. Se ela estiver certa, é a certeza que a irrita.

De repente passa em baixo uma mulher e se oferece para ler as cartas. Vai dar o futuro nas linhas da mão; ou então promete fazer aparecer um demônio no meio da sala, com o qual poderá conversar. É uma aragem, uma invasão do sonho dentro da realidade. Quem sabe se aquilo não será verdade? A mulher vai dizer algo que talvez aconteça. Vai fazer mexer uma cortina no fundo da sala; ou talvez um espírito vai mexer uma mesa. Aquilo é para ela um alívio. Uma espécie de solução. Começa o gosto por uma experiência mística que possa dar aquela certeza que o raciocínio já não mais lhe dá.

* Florescem na Renascença, muito mais do que na Idade Média, a magia, a necromancia, a invocação dos espíritos

Em conseqüência, a magia, a necromancia, a invocação dos espíritos começam a florescer na Renascença, muito mais do que na Idade Média. Nesta certamente houve os feiticeiros. Mas eles eram os homens malditos, com os quais o mundo dos homens direitos não tinha contato.

O feiticeiro, pelo contrário, na Renascença, era o apêndice necessário de toda corte. Ela tem seu capelão, mas se preza de ter seu astrólogo. E o astrólogo e o capelão não são tão inimigos assim, pois o rei entre os seus conselheiros, tem os seus teólogos, e também os seus mágicos. E muitas contendas das cortes de Valois resolviam-se mandando matar figurinhas de cera nos laboratórios dos mágicos da corte.

Eis como a magia, a invocação do demônio, numa palavra, a experiência mística, acaba substituindo a razão e a fé.

Temos, então, um deslocamento completo de princípios. O racionalismo e ao mesmo tempo o experimentalismo místico mais cru acabam se justapondo. Temos toda uma crise criteriológica, uma crise religiosa, e uma crise moral que repercute profundamente no terreno dos costumes.

* O homem da Renascença tinha uma espécie de cinismo a respeito de todos os assuntos

Qual é o resultado de todos esses fatos? Uma espécie de cinismo do homem da Renascença a respeito de todos os assuntos da fé e de todos aquele que se relacionam com a verdade e o erro. O escritor renascentista é cínico, sem princípios, não acredita nem no que diz, nem no que escreve, e abusa da palavra. Vemos aí uma espécie de decadência completa da inteligência humana, debaixo desse ponto de vista.

Alguns exemplos são característicos. Há um Sebastião Brant que faz apologia da Imaculada Conceição; Adão Werner o defende ardentemente e defende a Imaculada Conceição. Depois, Werner briga com Sebastião Brant, transforma-se num inimigo ardente da Imaculada Conceição e começa a escrever para provar que a Imaculada Conceição não existe.

Os teólogos de Colônia publicam obras anti-humanistas e Armínio de Busch, um outro grande renascentista, primeiro os elogia. Depois rompe com eles, passa para o lado dos humanistas e briga com os teólogos de Colônia.

Pedro Luder, que era um padre, um dos mais notáveis precursores do humanismo na Alemanha, ao constatar que os teólogos de Basiléia queriam denunciá-lo como herege, porque duvidava da Santíssima Trindade, responde que para não ser queimado acreditaria, se lhe pedissem, até em uma divindade em quatro pessoas. Isto não é racionalismo. É o desespero da razão em encontrar a verdade.

Alberto V, cardeal arcebispo e príncipe eleitor de Mogúncia:

“Aceitou a dedicatória de uma obra escrita contra o poder temporal do papado, recebeu mal os defensores da cúria romana e inimigos da corrente humanista; mas quando viu comprometida sua posição de príncipe da Igreja, perseguiu os protestantes, a quem tratou então como hereges, e executou servilmente as ordens e instruções de Roma”. (1)

Outro exemplo: Gregório de Heimburg (séc XV):

Antes, possuído de entusiasmo, havia excitado os alemães a associar-se à guerra contra os turcos, e depois combateu o mesmo projeto formulado por outros; antes havia defendido a neutralidade dos príncipes eleitores na contenda entre o imperador e o papa, e depois recomendou o contrário. No período de seu maior vigor esteve sempre do lado dos inimigos da cúria, dos defensores dos direitos dos príncipes contra as exorbitâncias do papa e de seus subordinados, e da independência dos alemães diante das tendências dos estrangeiros de se intrometer em seus assuntos”. (2)

Mais sutil que esses rigorosos alemães, era o peninsular Pedro Aretino. Ele era muitíssimo prudente em correr riscos de sangue. Mas onde não houvesse esse perigo, para ele não havia perigo e era totalmente imprudente. Era, segundo Oncken, o murmurador mais escandalosos, satírico e mordaz de seu século. Por isso todos tinham medo de sua pena. E então o bajulavam.

Não havia, pois, na época, nenhum valor das idéias, das coisas, das situações, dos princípios. O racionalismo conduz a uma espécie de dissolução da razão.

Petrarca é republicano, mas de fato ele vive perfeitamente bem na monarquia, rodeado de nobres e príncipes; nas suas obras elogia a solidão como sendo a melhor coisa que há, mas na vida ele tem horror à solidão; em suas polêmicas mostra-se versátil e dominado pelo sentimentalismo, de tal sorte que não tem nenhum sistema e nem em suas obras se pode procurar uma coerência de princípios; elogiava muito a simplicidade dos antigos romanos, mas tinha para si muitos cavalos, muitos criados; era um homem muito invejoso, tinha muita inveja de Dante; ele mesmo diz que o desejo da imortalidade, quer dizer, de deixar uma reputação imortal, era uma espécie de doença que o perseguia em todas as horas de sua vida.

 

Adriano VI (1522-1523), nascido em Utrecht (atualmente Holanda, mas naquela época fazia parte do Sacro Império Romano Alemão), cognominado também como o "último Pontífice alemão" até que fosse elevado à Sé de Pedro o Papa Bento XVI (19-4-2005 até 28-2-2013)

Uma instrução do Papa Adriano VI, um bom Papa, antirenascentista, dada em 1522 ao núncio Chieregati, enviado a Nuremberg, bem ilustra o espírito que havia penetrado profundamente os meios católicos, e na qual se lê as seguintes palavras:

Sabemos que desde há muitos anos vêm ocorrendo em torno da Santa Sé coisas abomináveis, abusos no espiritual, exorbitâncias nos mandatos e um amolecimento geral. Assim, não é estranho que o mal se haja estendido da cabeça aos membros, dos papas aos prelados e sacerdotes mais inferiores. Nós todos com o clero afastamo-nos de nosso caminho; ninguém tem feito algo de bom desde muitíssimo tempo, e urge, por isso mesmo, que honremos a Deus, que humilhemos nossas almas diante d'Ele e que cada um veja de onde veio o mal”.

Oncken comenta que esta reação não produziu efeito no alto e opulento clero italiano, nem na sociedade italiana em geral. E tanto assim, que quando em 14 de setembro de 1523, morreu esse Papa reformador, celebrou-se sua morte como um sucesso faustoso. Os inimigos do defunto puseram em casa do seu médico de cabeceira, esta inscrição: "O Senado e o povo felicitam o libertador da pátria". Um literato disse:

Se este acérrimo inimigo das musas e da eloqüência e de tudo quanto é belo tivesse vivido mais, forçosamente teríamos voltado ao tempo da barbárie goda”. (3)

Isto bem indica a posição do homem renascentista diante de um Papa que representa a austeridade da era medieval que volta. Com o espetáculo da Idade Média diante de si, ele fala em “barbárie goda”, e volta seus olhos para a civilização que vai nascendo e que iria conduzir-nos à neo-barbárie do século XX. Se eles tivessem podido prever todos os resultados que a Renascença havia de trazer para o mundo, creio que a maior parte dos renascentistas teriam preferido esses resultados, a ter que voltar para aquilo que eles chamavam a “barbárie goda”, e que é o nosso grande ideal...

Para um estudo sério e profundo da alma do homem renascentista, é se obrigado a analisar estados de espírito e fenômenos psicológicos algum tanto sutis. Sendo assim, no decorrer deste trabalho, procuraremos freqüentemente elucidar as idéias que forem sendo expostas com alguns dados e exemplos concretos e objetivos.

Continua

Notas:

"História Universal", de Guillermo Oncken - Mantaner y Simon, editores - Barcelona, 1929.

(1) Oncken, vol. XIX, pág. 131

(2) Oncken, vol. XIX, pág. 116

(3) Oncken, vol. XIX. pág. 102


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