Plinio Corrêa de Oliveira

 

Diálogo e ateísmo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Catolicismo Nº 193 - Janeiro de 1967

  Bookmark and Share

 

Plinio Corrêa de Oliveira fala ao Congresso de "The Wanderer"

Como noticiamos em nosso último número, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade participou, em junho p. passado, do "II National Wanderer Forum", realizado em Minneapolis, no Estado norte-americano de Minnesota, tendo por tema: "O desafio cristão ao ateísmo".

Na sessão inaugural desse congresso de amigos do mensário de orientação católica e conservadora "The Wanderer", foi lida em inglês, por um delegado da TFP, o Sr. Júlio Ubbelohde, uma conferência escrita pelo Prof. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, que fora convidado a desenvolver o tema "Diálogo e ateísmo".

Pela grande oportunidade de seus conceitos, passamos a transcrever o texto dessa conferência.

*     *     *

Diálogo e ateísmo

Agradeço aos promotores do Fórum por terem convidado a SOCIEDADE BRASILEIRA DE DEFESA DA TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE a participar de uma reunião de tanta importância. Esse convite exprime a convicção de que a causa da defesa da América contra o comunismo é uma só. Tal convicção tem por pressuposto o reconhecimento da unidade não só geográfica, mas histórica de todo o nosso continente, e da unidade transcendente da civilização cristã em toda a América. E isto torna sobremaneira atual e simpático o convite que recebemos.

A comissão que representa a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, bem como os valorosos grupos congêneres de "CRUZADA", de Buenos Aires, e "FIDUCIA", de Santiago do Chile, tem a incumbência de afirmar aqui que se compreende na América do Sul o tríplice vínculo de unidade a que acabo de me referir. A consciência desse vínculo é, pois, comum aos americanos, do extremo sul até o norte, o que quer dizer que substancialmente existe entre nós a união de almas para uma grande missão histórica comum. Venho trazer a este plenário a afirmação da inteira compenetração, fervor e lealdade da família de almas constituída pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, do Brasil, "Cruzada", da Argentina, e "Fiducia", do Chile, no que se refere a esse nobre ideal de unidade.

Felicito os organizadores do Fórum pela inserção do tema desta conferência no programa. Mostra ele que estais alertados para o perigo de uma transição, por etapas sabiamente calculadas, da Fé e de uma civilização baseada na Fé, para o ateísmo e uma civilização baseada no ateísmo. O chamar a atenção para esse ponto revela da parte dos que organizaram este certame uma visão de flagrante atualidade. Pois os comunistas, continuando embora firmes no propósito de conquistar o mundo pela força, isto é, por guerrilhas, golpes de Estado, revoluções e guerras, deitam hoje uma esperança muito especial em outra forma de conquista, que lhes parecia até agora francamente secundária. Essa forma, que eles planejaram cuidadosamente, e na qual vão invertendo grandes recursos, é a baldeação inadvertida de multidões que creem em Deus, para o ateísmo, de massas genuinamente anticomunistas, para o comunismo. Ao mesmo tempo efeito e causa deste fenômeno é a progressiva transformação das leis, instituições e costumes da sociedade ocidental num sentido sempre mais hostil à livre iniciativa e à propriedade, para que o Ocidente fique cada vez mais parecido com a sociedade comunista, e por fim com ela se confunda.

Essa tática foi objeto do estudo intitulado "BALDEAÇÃO IDEOLÓGICA INADVERTIDA E DIÁLOGO", escrito por mim, e é até de se admitir que em razão desse livro é que foi dado a um membro da TFP falar sobre o assunto neste magnífico Fórum.

No estudo em apreço, a baldeação vem considerada como capaz de se desenvolver em qualquer tema. Dado que o programa deste Congresso se refere especialmente à transformação da fé em ateísmo, o assunto "diálogo" será mais apropriadamente apresentado do ponto de vista da fé.

Como desejamos focalizar aqui o diálogo enquanto novo estratagema comunista, é necessário chamar a atenção sobre um aspecto da doutrina marxista talvez não tão conhecido – e que mostra como não é apenas no diálogo que os comunistas colocam suas esperanças, mas também na metamorfose gradual das leis e dos costumes. Referimo-nos ao modo pelo qual consideram eles a relação entre as convicções religiosas de uma pessoa e a influência que sobre a mentalidade desta exercem as instituições econômicas, políticas e sociais em cujo quadro ela vive.

Para os comunistas a religião é um fenômeno de alienação. Alienação, vistas as coisas nesse ângulo, é o fato de alguém estar voltado para outrem e servir a outrem. Quem se encontra nessas condições é explorado por outrem e não se pertence a si próprio. Deus, para o marxismo, é um mito ao qual o homem se aliena por um jogo psicológico semelhante àquele pelo qual ele se alienava outrora a Reis e senhores, e hoje a patrões, proprietários e governantes. Entre esses vários tipos de alienação, há uma correlação no espírito das massas alienadas.

Em outras palavras, extinta a alienação em um campo, debilitam-se inevitavelmente as fibras por onde a mente adere à alienação em outros campos. Por exemplo, segundo esse princípio, numa sociedade que se tornasse atéia, a realeza, a nobreza e qualquer forma de dependência política, ainda que democrática, bem como a propriedade privada, feneceriam gravemente por falta de seiva. Reciprocamente, a se aceitar tal princípio numa sociedade de fortes convicções religiosas, que se tornasse inteiramente igualitária pela abolição da iniciativa privada, da propriedade individual etc., a religião perderia sua seiva. Em um e outro caso, o homem ficaria por fim emancipado e livre numa sociedade anárquica em que até o Poder Público cessaria de existir. Assim, vemos que o "ideal" anarquista da igualdade completa e da completa liberdade é gêmeo do ateísmo total, no espírito comunista.

Seria o caso de nos perguntarmos se tudo nessa concepção marxista é falso, e se não há algum resíduo de verdade na correlação entre a fé e uma justa, cristã e harmônica desigualdade entre os homens. Falo, é óbvio, de uma desigualdade puramente acidental, pois substancialmente os homens são iguais na ordem da natureza. E, se desigualdades há ente eles na ordem da graça, é certo pelo menos que todos são chamados para a vida sobrenatural, por haverem sido remidos indiscriminadamente por Nosso Senhor Jesus Cristo, o que os faz iguais, a esse título, na ordem sobrenatural.

São Tomás de Aquino nos ensina na Suma contra os Gentios (livro II, cap. XLV) que, posta a existência de várias criaturas, estas são necessariamente desiguais entre si (na ordem acidental), pois do contrário haveria algo de redundante e imperfeito na obra de Deus. E explicando a excelência dessa estrutura hierárquica na Criação, ele indica (no livro III, cap. LXXVII), entre outras razões, que é bom que uns tenham mais e outros menos, pois assim os primeiros podem dar algo aos segundos e, com isto, representar junto às criaturas a munificência e a bondade divinas. Desse modo, para o Doutor Universal, a presença de justas desigualdades prepara as almas para a aceitação da existência de Deus. E com a supressão delas só pode lucrar o ateísmo.

Com isto podemos compreender que, quando os comunistas desejam instituir a igualdade completa para dessa forma favorecer o ateísmo, eles de fato criam circunstâncias propícias ao objetivo que têm em mente.

É-nos necessário pôr em realce esta verdade residual, para deixar claro que o fruto ateístico que o comunismo espera obter de sua campanha em prol da igualdade e da liberdade, no mais exagerado e abusivo sentido destes nobres vocábulos, existe, e não é mera concepção cerebrina. Em outros termos, a tática igualitarizante dos comunistas constitui um perigo objetivo e real, contra o qual nós devemos precaver.

Isto posto, convém não perder de vista que, entendidas no seu sentido cristão, a igualdade e a liberdade são valores preciosos, que a Igreja sempre timbrou em favorecer.

Assim, laboraria em erro quem dissesse que o apreço a esses valores, e seu justo e proporcionado reflexo nas instituições, nas leis e nos costumes, importa na realidade em favorecer de algum modo o ateísmo. O que é marcado por um sentido ateístico, e conduz à formação de um estado de espírito ateístico, é o anelo de uma liberdade e de uma igualdade antinaturais, excessivas e quiçá totais. O anarquismo, que constitui a etapa final da luta de classes, visa este escopo. E nisto favorece o ateísmo.

Creio que não seria necessário acrescentar que a luta contra as desigualdades injustas e desproporcionadas, bem como contra as indébitas restrições à ampla liberdade que a lei natural confere ao homem, de nenhum modo pode ser considerada em si mesma favorável ao comunismo e ao ateísmo. Pelo contrário, tal luta deve ser admitida como um direito e não raras vezes como um dever para o cristão bem formado. Julgo que, depois das Encíclicas "Mater et Magistra", "Pacem in Terris" e "Ecclesiam Suam", é supérfluo insistir neste ponto.

Ficam, assim, bem caracterizados os dois sentidos, um explicitamente anti-religioso, e outro apenas implicitamente tal (pois entranhado profundamente nos campos econômico e social) da ação ateística do marxismo.

Parece-me que esperais que não permaneçamos longamente no plano doutrinário em que nos situamos, e que passemos a indagar qual é a maneira moderna pela qual o comunismo desenvolverá gradualmente sua tática de penetração ateística.

Para esta pergunta encontrareis ampla resposta em dois livros que escrevi e foram editados pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Quero me referir aos ensaios "BALDEAÇÃO IDEOLÓGICA INADVERTIDA E DIÁLOGO", já mencionado e "A LIBERDADE DA IGREJA NO ESTADO COMUNISTA".

No primeiro se faz uma análise do diálogo a serviço da propaganda ateística.

Notemos de início que todos os esforços realizados pelos comunistas em favor do ateísmo, nos últimos cem anos, redundaram em completo malogro. Isto é, nem de longe a existência de qualquer religião, e menos ainda da Religião Católica, ficou comprometida com a propaganda dispendiosa e dotada de alto teor técnico que Marx e seus continuadores realizaram dos meados do século XIX até nossos dias.

Essa propaganda foi clara, e até brutalmente clara. Não houve insulto, nem calúnia, nem sofisma, a que ela não recorresse.

Se este estilo propagandístico malogrou, é de bom senso concluir que se tornou necessário para os marxistas apelar para o estilo oposto, ou seja, para aquele que consiste em levar os homens ao ateísmo por meio de uma difusão hábil, sem que eles o percebam.

Para isto, o marxismo tenta conduzi-los não só e diretamente à negação categórica de Deus, mas por vezes a uma posição relativista, toda feita de dúvida, a respeito de sua existência. Como a crença em Deus é uma certeza, aquele que duvida já tem o ateísmo instalado em sua alma, pelo menos em estado germinativo. Conseguido o ateísmo que chamaremos inicial, fácil será chegar até a negação categórica de Deus.

O difícil, como dissemos, é criar a mentalidade relativista em almas iluminadas pela fé. Para isto, o grande estratagema é o diálogo.

Não me refiro, é claro, ao diálogo da salvação, recomendado por Sua Santidade o Papa Paulo VI, que tem por base, no interlocutor católico, a plena certeza de que a única Igreja verdadeira é a Católica. Consiste este diálogo numa argumentação amena entre o católico e o não católico, na qual cada parte tem em vista não só o que a separa da outra, como o que a ela a une – e na qual o católico tem em vista trazer para aceitação plena da verdadeira Fé o não católico.

O diálogo comunista é malicioso. Ele tem um ponto de partida parecido com o diálogo recomendado por Paulo VI, mas não tarda em resvalar para os atoleiros do relativismo.

Em lugar de nos atermos a descrever esquemas, figuremos uma hipótese concreta. Imaginai alguém que creia em Deus, mas esteja trabalhado pelo que chamei em meu ensaio de binômio medo e simpatia, isto é, pelo pânico do comunismo e por uma certa simpatia em relação a este, provocada pelos germes de socialismo sentimental e utópico do século XIX que todos carregamos em nós. Sob a ação de tais fatores deseja essa pessoa, acima de tudo, um modus vivendi com o comunismo.

Infelizmente, incontáveis são os homens que em tal caso se encontram: creem em Deus, mas sofrem, no que se refere à sua fé, o influxo de vários fatores de debilidade ideológica e temperamental. Estão eles predispostos para a operação fria, sagacíssima, a que os quer submeter o comunismo.

 Numa primeira fase, a pessoa que figuramos começa a dialogar cordialmente com os comunistas, e essa cordialidade, deformada pela influência do medo e da simpatia, e pelo desordenado desejo de unidade a qualquer preço, que se segue a esta influência, desarma todas as objeções que o caráter intrinsecamente perverso do comunismo nela suscitava até há pouco.

Por certo, se alguém a interrogar, ela dirá que seu diálogo visa a conversão do comunista. Mas, subconscientemente o medo a leva a desejar incondicionalmente tal conversão, pois, do contrário, ela se vê fustigada, massacrada e aniquilada pelo adversário comunista. Assim, o desejo da conversão e o da unidade a todo custo acabam por ter um igual grau de intensidade.

Numa segunda fase, essa propensão à união a todo preço ganha corpo. Com efeito, o medo é um sentimento que facilmente se dilata em pânico. E por outro lado o contato cordial com um comunista blandicioso pode adormecer prevenções e aumentar simpatias. Neste ponto o desejo de converter se torna menor do que o de chegar a um acordo. Para se fazer mais atraente, o nosso crente aceita – com vistas a tornar mais cordial o diálogo – uma ficção segundo a qual ele e o ateu não se acham em posições antagônicas preconcebidas, e correm juntos, de braços dados, à aventura excitante da procura de uma verdade comum a ambos. Involuntariamente, despercebidamente, o interlocutor que crê terá passado da certeza da verdade que ele possui, para a pesquisa de uma verdade desconhecida – e a pesquisa neste sentido já é a dúvida... Resta só aprofundá-la.

Numa terceira fase, aprofundando-se sempre mais nas regras do jogo, o interlocutor crente, desejoso de um acordo a todo custo, começa a ser trabalhado pela idéia de que é mais polido, mais elegante e até mesmo mais caridoso, que ele e o ateu reconheçam haver parcelas de verdade e de erro nas respectivas posições. E de que em essência, em todas as discórdias, o objetivo final não consiste em que uma parte persuada a outra, mas em que ambas encontrem juntas uma terceira verdade, depurada e quinta-essenciada das opiniões antitéticas anteriores – ou possivelmente uma reformulação das verdades anteriores – que ponha em realce uma medula comum a ambas, e libere o que nas respectivas posições havia de especial e melhor.

Assim, para o interlocutor crente, acabou ficando claro que o diálogo é um processo de cooperação da tese com a antítese para a elaboração de uma síntese superior.

Tese... antítese... síntese... Tudo, em tal perspectiva, se reduz a isto, na vida e na história do pensamento humano.

Quando esta perspectiva está bem radicada na mente do seu interlocutor, o comunista lhe desvenda uma surpresa, e com esta o nosso crente, que melhor já seria chamar a esta altura de ex-crente, entra numa quarta fase.

Com efeito, risonho e escondendo habilmente sua sensação interna de vitória, o comunista lhe dirá: meu amigo, você acaba de descobrir com os recursos pessoais de sua inteligência uma grande verdade. Essa verdade que você descobriu coincide com a descoberta de um grande filósofo que viveu há mais de cem anos, e que alcançou a glória da imortalidade na memória dos homens. O grande Hegel fazia consistir na tese, na antítese e na síntese as três etapas, os três momentos do pensamento universal. Marx, nosso genial Marx, seu continuador, que alguns Sacerdotes reconhecem ter sido mais eficiente do que as Encíclicas e o Clero na defesa das reivindicações operárias, depurou o pensamento de Hegel, transpondo-o dos mundos impalpáveis do espírito sonhador para as realidades tangíveis da matéria. Aí tem você o materialismo dialético. Em última análise, como você bem diz, tudo é relativo. Você não é materialista e eu sou. Dialoguemos, pois. Desse nosso diálogo nascerá, gerada de sua tese e de minha antítese, uma síntese nova.

E eis nosso ex-crente – no qual o desejo de unir eliminou o de converter – solidamente instalado na dúvida universal, na dialética marxista, rumo a uma terceira posição que supere a crença em Deus e o ateísmo. E o curioso é que ele ainda se imagina crente! O que aconteceu é que ele foi baldeado inadvertidamente de sua crença para o ateísmo.

Não se surpreenda o ouvinte desprevenido. Fundamentalmente dialético, visceralmente evolucionista, o comunista verdadeiramente conhecedor da doutrina que professa não admite que o comunismo seja o último estágio da evolução. Novos panoramas imprevistos, pensa ele, irão ainda surgir, depois do comunismo, nos firmamentos do relativismo e da dúvida. O comunista, fundamentalmente, é um relativista. Seu verdadeiro adversário não é outro relativista, pois, como este, ele está sempre disposto a enfrentar o diálogo e a pôr em jogo os elementos da tese, da antítese e da síntese. Por isto, o Estado comunista deve dar liberdade de culto, de palavra e de ação ao "crente" relativista. Este último, gozando de tal liberdade, se sentirá aturdido e surpreso. Todas as exigências de seu pânico, todas a apetências de sua simpatia estarão atendidas. O pobre tolo não perceberá talvez que já foi atraído pelo comunismo, e já se deixou devorar. Ele é um ateu. O verdadeiro adversário do marxismo é o crente não relativista. Este tem certezas. Para ele há uma verdade e um erro objetivos, um bem e um mal objetivos. Para ele, a discussão conduzida segundo as boas normas da lógica é um meio de evitar o erro e conseguir a verdade.

Para esse crente – que ele e só ele é um crente – o comunismo nega a liberdade de culto, a liberdade de palavra, a liberdade de ação. Para ele reserva seu desprezo, seu ódio, suas perseguições. Digamos tudo: para ele, em vez da liberdade cômoda concedida ao "crente" relativista, o comunismo só tem masmorras, nas quais se deperece pela insalubridade, pela doença, pela fome ou pelo trabalho excessivo; uma morte infamante, precedida por uma longa tortura da alma e do corpo, numa atmosfera em que não entra um raio de esperança terrena, nem mesmo o lenitivo de um só gesto de carinho: um horror, raciocinam os comunistas, e com eles todos os crentes acomodatícios; a glória do martírio, pensam todos os homens que acreditam em Jesus Cristo, Filho de Deus Vivo, e que sabem o prêmio que Ele reserva aos que O amam sobre todas as coisas: "Serei Eu mesmo a vossa recompensa demasiadamente grande" (Gen. 15,1).

Tocamos aqui no problema da liberdade religiosa. Vimos que, na moderna ofensiva ateística do comunismo, a aceitação implícita da dúvida tem por prêmio a liberdade.

Ao crente tíbio, corroído de medo e simpatia ante o adversário, o comunismo acena com a liberdade, e lhe diz: esta será a tua recompensa imensamente cômoda.

Feita assim a análise da tática de penetração inadvertida mais estrita e diretamente ateística, do comunismo, em seus aspectos mais subtis, eficientes e satanicamente ágeis, cuidaremos agora da penetração ateística incubada no processo igualitário.

Este assunto foi tratado num outro ensaio, "A LIBERDADE DA IGREJA NO ESTADO COMUNISTA", que, como o primeiro, os Srs. verão posteriormente, em nosso "stand". O seguinte problema é nele estudado: se um governo comunista oferecesse à Igreja liberdade de culto, de palavra e de ação, inclusive para combater – combater dialeticamente, é importante notá-lo – o ateísmo, mas exigisse como contrapartida que as autoridades religiosas, ensinando embora, com palavras rápidas e ligeiras, que a propriedade individual é legítima, recomendassem uma aceitação alegre do fato consumado da coletivização de bens, poderia essa sugestão dos comunistas ser acolhida pela Igreja? Este é um problema que se mostra particularmente penoso para nações católicas como a Polônia e a Hungria.

Como é natural, uma questão de tal gravidade comportaria vários aspectos que não é o caso de expor aqui, nem sequer resumidamente.

Basta-me dizer que um tal acordo seria imoral. A ortodoxia desta tese foi claramente acentuada pela Carta da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades que explícita e categoricamente louvou o ensaio sobre "A liberdade da Igreja no Estado comunista". A nós, no momento, não interessa tanto estudar a moralidade de um tal acordo, quanto perguntar que vantagens ele ofereceria à ofensiva ateística moderna do comunismo.

A propriedade privada e seu corolário necessário, que é a livre iniciativa, têm como conseqüência uma ordem de coisas em que todas as desigualdades de virtude, de capacidade, de educação, de iniciativa e de fortuna se podem expandir livremente (e tão livremente que, em razão do liberalismo do século passado, se chegou a certos excessos aberrantes, dos quais alguns ainda perduram hoje). Aqui, devemos acentuar que, como vimos, estas desigualdades, desde que se desenvolvam dentro dos limites da justiça e da caridade, predispõem fortemente as almas a confiar em Deus, como um modelo irrefragavelmente perfeito de tudo o que nelas é reto, nobre e cheio de dignidade. A abolição da propriedade privada extingue todas essas desigualdades em suas raízes, fazendo soprar sobre o espírito humano um frio vento de ateísmo implícito.

Este processo gradual, dialético e inadvertido de ateização assim estudado, cumpre indagar agora que importância tem ele para a implantação do comunismo no mundo. Pois, se é verdade que não se pode ser verdadeiro comunista sem ser ateu, são por outro lado incontáveis os ateus não comunistas. E para muitas pessoas não ficará claro, à primeira vista, qual a vantagem que o comunismo aufere de "fabricar" ateus se estes podem depois não se tornar comunistas.

Uma primeira resposta se apresenta desde logo ao espírito. O caráter ateu do comunismo é, de si, um obstáculo a que ele seja aceito por centenas de milhões de pessoas que creem em Deus. Ateizadas tais pessoas, deixa de existir este obstáculo a que elas adiram ao marxismo.

Essa resposta, se bem que verdadeira, não contém toda a realidade. A psicologia do homem moderno está muito longe de ser estática. Nela se trava uma dura e contínua batalha entre dois sistemas opostos, ou melhor, entre duas concepções de vida irredutivelmente contrárias. De um lado, a civilização cristã, a fé cristã, que inspiram milhões de crentes, e que constituem um fermento espiritual com sensível influência sobre o modo de sentir e de viver de não pequeno número dos que não são crentes. De outro lado, o materialismo ateu, representado não só pelo comunismo, como pelos germes de materialismo difusos em tantos hábitos fisiológicos e mentais de nossa vida atual. Assistimos a uma luta encarniçada na psicologia de milhões de seres, uma luta encarniçada, se bem que muda e muitas vezes subconsciente, entre duas como que legiões de influências opostas. Esses dois grupos de influências têm cada qual seu polo de atração e o homem não consegue mover-se no mundo espiritual sem que, querendo ou não, caminhe para um destes polos. Um deles é a fé vivida em toda a sua pureza, em todo o seu fervor, e com todas as suas conseqüências; o outro é a aceitação de um sistema ateu e materialista, concebido em todo o seu rigor e aplicado em todos os seus efeitos.

Semeando o ateísmo, o comunismo não só derruba uma barreira, como aumenta enormemente seu campo de atração.

Por fim, para se compreender inteiramente o alcance da vantagem tática que a seita marxista aufere com sua campanha de ateização, é preciso pensar na divergência que existe entre, de um lado, as Encíclicas papais sobre a propriedade privada e a livre iniciativa – da "Rerum Novarum" até a "Mater e Magistra" – e de outro lado a posição comunista sobre o mesmo assunto.

Quem conhece as referidas Encíclicas não pode ignorar o vigor com que elas pleiteiam para as classes desfavorecidas condições de vida melhores. A acusação comunista, de que a religião é o ópio do povo, constitui uma impostura que hoje provoca um sorriso desdenhoso.

Isto não obstante, as Encíclicas continuam inteiramente fiéis aos princípios da livre iniciativa e da propriedade privada. E isto porque elas reconhecem em cada homem – dentro embora dos quadros do princípio de subsidiariedade e da função social da propriedade – um ser fundamentalmente livre e dono de si mesmo. Como dono de si mesmo, ele também o é de sua atividade e do produto que desta atividade lhe advém.

Ora, é de suma importância lembrar que esta fundamentação da livre iniciativa e da propriedade individual na própria natureza humana é explicada nas Encíclicas a partir de um ponto que toca à Religião: o homem, ensinam elas, não é uma partícula efêmera e inconsistente do imenso todo que é o cosmos material. O homem tem uma alma espiritual e imorredoura, um destino pessoal sobrenatural e eterno. E é por isto que há nele um "eu" irredutível e inconfundível, capaz de ser dono de si mesmo, de seu corpo, de seu trabalho, e do produto deste, e para o qual direta e primordialmente se ordenam seu salário e as economias havidas de seu trabalho.

Para o comunismo, ao invés, o homem nada é, e a humanidade é tudo. A humanidade sim, mas enquanto considerada como a parte mais evoluída do universo material. De onde, em última análise, o valor supremo é a matéria. De acordo com essa concepção, cada pessoa humana não é mais do que um respingo fugaz da matéria, uma parcela instável de um todo, a qual não tem outra razão de ser senão a de servir cegamente às forças da evolução que impelem esse todo para um progresso indefinido.

Em outros termos, a doutrina das Encíclicas torna evidente que a crença na espiritualidade da alma e em Deus impõe o reconhecimento, para cada homem, do nobre atributo da livre iniciativa e da igualmente nobre capacidade de ser proprietário. Pelo contrário, o ateísmo e o materialismo conduzem logicamente – e ainda que não o percebam muitos ateus – à negação da livre iniciativa e da propriedade privada, e à aceitação de um regime social e econômico que a justo título leva o nome de comunismo.

Isto deixa inteiramente claro quanto o comunismo lucra, com sua ação ateística, para a implantação de seu regime social e econômico.

Com estas considerações julgamos ter convenientemente tratado da matéria que vossa honrosa confiança nos adjudicou. A conclusão a que chegamos nos estimula e nos enche de alegria. Ela nos permite compreender que, combatendo com eficiência o falso diálogo, temos meios para enfraquecer a investida de nosso adversário numa luta ideológica de envergadura absolutamente sem precedentes em toda a história do mundo.

Trata-se de salvaguardar ao mesmo tempo a Fé e todos os valores que conferem à vida humana ordem, nobreza e verdadeiro significado. Trata-se de tolher o passo a um erro tão radical que deturpa a fundo as almas e que, se não for contido, acarretará na ordem concreta dos fatos a escravização de toda a humanidade, a subversão de todos os valores e a abolição de tudo quanto torna a vida digna de ser vivida.

De outro lado, nesta grande luta está engajada a humanidade inteira, a de hoje e a de muitos séculos vindouros.

Vencer nesta luta é um ideal que está bem à altura das vossas maiores aspirações. Lutemos, pois, com todas as nossas forças, contra o diálogo falso e tendencioso, veículo da campanha de ateização inadvertida.

Somos poucos, é verdade. Mas com o auxílio de Deus e da Virgem Santíssima, nenhuma vitória é impossível.

E a justo título as gerações futuras, pensando em nós, poderão dizer, parafraseando Churchill: "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos".


Bookmark and Share