Plinio Corrêa de Oliveira

 

São João da Mata

Admiração, fator de perseverança

na virtude

Sem ela, a Revolução nos devora

 

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 8 de fevereiro de 1977

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Meus caros, nós passamos agora para o Santo do Dia, que será a respeito de São João da Mata.

Traços biográficos: "Nosso santo nasceu de uma nobre família de Faucon, na alta Provença, pelo ano de 1160. Foi chamado João, porque veio ao mundo no dia de São João Batista, ou seja, 24 de junho. Seus biógrafos pretendem que desde o berço começou a dar sinais de sua futura santidade, recusando o leite materno em certos dias da semana. João desprezou os jogos e modos de ser das crianças de sua idade e aos 12 anos foi estudar em Aix-le-Provence. Terminando os seus estudos de Humanidade e tendo aprendido o que um rapaz de sua linhagem tinha que aprender, voltou à casa de seus pais. Mas logo retirou-se para uma pequena ermida, a fim de se dedicar às coisas de Deus.

Entretanto seus pais e amigos vinham com frequência distrair em seu retiro, tentando fazê-lo voltar ao mundo. O jovem então partiu para Paris para se aprofundar mais nos estudos teológicos e em sua fé em Cristo. Seguiu os cursos dos mestres de São Vitor e aí galgou rapidamente todos os graus universitários, até obter o chapéu de doutor em teologia, que foi preciso lhe impor, pois ele recusava em aceitar por humildade.

Pouco depois, João foi ordenado sacerdote. E a tradição quer que no dia em que ele celebrava em Paris a sua primeira missa, em presença do bispo, um Anjo, sob a figura de um jovem apareceu sobre o altar. Estava vestido de um traje branco, com uma cruz vermelha e azul sobre o peito; tinha os braços cruzados e as mãos colocadas sobre os dois prisioneiros, como se quisesse fazer uma troca.

João da Mata tomou então a resolução de se dedicar à libertação dos cativos. Confiou seu projeto a um piedoso eremita, [São] Felix de Valois, que era da casa reinante que vivia num bosque na diocese de Meaux. Ambos se puseram a caminho durante o inverno de 1197 para solicitar a aprovação do Santo Padre. O Papa Inocêncio III, que acabava de subir ao trono pontifício recebeu-os com bondade, alojou-os em seu palácio e acolheu com benevolência os seus desejos. O nome da santíssima Trindade foi dado ao novo instituto. O bispo de Paris e o abade de São Vítor foi encarregado de redigir os estatutos, que foram aprovados a 17 de dezembro de 1198. A cruz dos trinitários foi igualmente estabelecida na França sob a proteção de Felipe Augusto, e o auxílio do senhor de Chantillon, que doou a João da Mata o lugar chamado Cerfroi.

O piedoso fundador enviou dois de seus discípulos para a África a fim de tratar do resgate dos cativos cristãos. Sua negociação foi tão feliz que eles libertaram em 1200, 186 escravos. No mesmo ano, Guion fundou em sua terra de Flandres um convento de trinitários. Outras fundações foram feitas na Espanha.

João da Mata foi para Túnis em 1202. Voltou a Roma com 120 escravos que resgatara. Fez uma segunda viagem ao mesmo país com uma razoável quantia que economizara para pagar a liberdade dos infelizes. Mas as fadigas desse trabalho apostólico, dessas expedições desconfortadas e permeadas de emboscadas enfraquecera as suas forças, já minadas pela austeridade. Ele empregou os dois últimos anos de sua vida a visitar em Roma os prisioneiros, a consolar e assistir os doentes, a socorrer os pobres em suas dificuldades. Morreu na Cidade Eterna [Roma] a 21 de dezembro de 1213. Foi enterrado na Igreja de São Tomás in Formis, e seu corpo foi mais tarde transportado para Madrid.

“A Ordem dos Trinitários teve até 250 conventos de homens e mulheres difundido em quase todos os países da Europa. Em nossos dias voltara-se ao cuidado dos doentes e do ensino; encontrou um novo e grande impulso especialmente no Canadá".

*    *    *

Esta ficha nos leva a uma reflexão, que por sua vez me conduz a uma outra consideração que desejo desenvolver oportunamente aqui e da qual dou apenas uma primeira ideia.

Os senhores viram a vida de São João da Mata e perceberam que é um santo suscitado especialmente pela Providência - uma série de graças que cercaram a sua infância mostram isso claramente - para uma determinada obra, e que a realizou: a redenção dos cativos, da qual por coincidência tratei com os senhores poucos dias atrás.

Tratava-se de obter na Europa esmolas para, por meio delas, comprar dos maometanos os católicos que tivessem caído no cativeiro porque estavam viajando pelo Mediterrâneo e eram aprisionados pelos muçulmanos; ou então eram prisioneiros de guerra capturados pelos maometanos que os vendiam mediante dinheiro. Esses prisioneiros católicos eram tratados como escravos; ficavam sujeitos, portanto, à vida mais rude que possam imaginar e a tentações medonhas, uma vez que viviam na promiscuidade maometana, com pessoas de outro sexo, o que trazia toda espécie de tentações. E essa situação era agravada pelo fato de que eles não tinham padres para se confessar. Os senhores imaginem quantos deles padeciam do tormento de imaginar que poderiam morrer de um momento para outro sem saber se iriam para o Céu ou não, pois quem peca e se arrepende dos seus pecados apenas por medo do inferno, esse não pode ter certeza de salvar-se porque é só mediante a absolvição sacramental que pode ir para o Céu. A simples atrição [medo do inferno, n.d.c.], se não vem seguida da absolvição sacramental, não abre para o fiel as portas do Céu. Os senhores podem imaginar, para muitos deles, o tormento que era a situação em que caiam.

Então, para tirar essas almas do tormento, São João da Mata e seus religiosos arranjavam dinheiro, obtinham esmolas, faziam sermões, e iam às terras dos mouros comprar os cativos. Mas eles mesmos ficavam com perigo de ser cativos, porque com mouro não se podia ter a menor confiança na palavra deles... De maneira que poderiam ser capturados de um momento para outro. E mais ainda, quando os religiosos não tinham dinheiro, eram obrigados, pelos estatutos da Ordem, a se oferecer pessoalmente para libertar outro, e, portanto havia o risco de ficarem eles mesmo escravizados.

São João da Mata deu exemplo para esta prática de heroísmo, convocou religiosos no mundo inteiro; os senhores viram o surto da obra dele para salvar essas almas. Certamente uma finalidade muito nobre, muito boa, muito santa. Se os senhores, entretanto, compararem essa finalidade com a luta a favor da Contra Revolução, verão que, apesar de todos esses méritos, é muito mais restrita.

Por quê?

Os que somos chamados a nos dedicar à Contra-Revolução, nos é dado a graça e nos é imposto o grave dever de lutarmos por uma causa da qual depende a fidelidade ou a infidelidade de praticamente da humanidade inteira para os séculos vindouros.

No caso da obra de São João da Mata, o benefício feito é para um número circunscrito de pessoas; será um milhar delas que terá libertado... vamos dizer que sejam 5 mil pessoas libertadas do jugo muçulmano. Se fosse uma só, já seria muito bom, porque por uma só alma Nosso Senhor Jesus Cristo teria vindo a terra e teria sofrido tudo quanto sofreu; quanto mais um de nós deve sofrer, seria muito santo, excelente, mas não tem a grande envergadura, a grande possibilidade de combater o mal e de fazer o bem que Nossa Senhora colocou nas mãos dos contra-revolucionários no século XX.

Vem, então, a pergunta: o que pensar a esse respeito? Por que um São João da Mata não fazia ele mesmo Contra-Revolução e, em vez disso, cuidava de fazer um bem tão restrito?

A primeira reflexão é essa que fiz: se bem que fosse muito mais restrito, mereceria todos esses sacrifícios.

Segunda: ele recebeu um expresso convite da Providência, um Anjo que lhe apareceu e designou qual era a vontade de Deus. Era preciso obedecer. O homem deve viver de fazer a vontade de Deus.

Mas há uma terceira razão que levanta um problema interessante: praticamente naquele tempo não havia Revolução nem Contra-Revolução, só havia Contra-Revolução; estávamos no auge da Idade Média, num período em que a Cristandade era toda compacta, homogênea e que estava no mais feliz período em que existiu. Então, fazer apostolado “tout court” [realmente, n.d.c.] era igual a fazer Contra-Revolução.

Assim, o tipo de apostolado ao qual nos consagramos nem era bem concebível naquele tempo; passaria a ser concebível depois, porque todo mundo que constituía a população europeia era católica e a grande maioria de bons católicos praticantes. Sobretudo não havia, ou quase não havia, não se pressentia, não se notava uma conspiração estruturada de adversários da Igreja para estabelecer e para fazer o mal.

Haveria, como em toda época da história, pecadores esparsos daqui, de lá e de acolá, mas que eram interessados em cometer o seu próprio pecado, não visava derrubar o edifício da Igreja e da Cristandade. Havia pecados, não havia uma Revolução, não havia uma causa contra-revolucionária. E o resultado é que toda a fisionomia da Europa na Idade Média era diferente da de hoje.

Em que sentido era diferente?

Quando se estuda a Idade Média, com muita frequência os grandes personagens medievais nos parecem os mais característicos daquela época, e tem-se toda razão nisso. Por exemplo, estuda-se Carlos Magno, São Luís IX (rei de França), São Fernando de Castela, São Tomás de Aquino, São Gregório VII. Mas de fato esses personagens não resumiam, não esgotavam toda a Idade Média.

Havia, naquela época, um espírito de fé em toda massa da população que fazia com que todo o teor de vida, o modo de pensar e de viver do medieval – ou seja, uma pessoa qualquer andando pela rua na Idade Média - tinha uma mentalidade construída fundamentalmente de modo diverso da do homem contemporâneo.

No que estava essa diferença de mentalidade? Eu procurarei resumir isso quanto possa para facilitar aos senhores uma reflexão final que me parece importante. O homem medieval, ainda que inculto, ainda que muitas vezes analfabeto, tinha o espírito formado de tal maneira que a propósito de qualquer coisa que tivesse diante de si, por exemplo, uma sineta para chamar alguém, ou um copista que tivesse tinta, pergaminho, material geral para sua arte, canivetes afiados para cortar o pergaminho, o normal de sua alma era de ser feita de tal maneira que gostaria que todos esses objetos o levassem a considerações de caráter mais alto.

E então se ficasse a olhar para uma sineta feia, seu espírito tinha uma forma de elevação que quando desse acordo de si, ele estava com o canivete esculpindo o cabo da sineta para ficar bonitinha. Se tivesse um canivete para cortar o pergaminho, ele normalmente se comprazia em fazer com que fosse afiado de tal modo que a beleza do metal aparecesse inteiramente; o cabo do canivete não fosse apenas prático, mas também bonito, com um santo nele esculpido; no alto da sineta, tivesse uma cruz. Quando fosse desenhar um texto, não se limitava a fazer letras para aquilo ser lido, mas pensava em fazer uma iluminura, com a letra maiúscula bonita, com um pássaro voando, ou com um santo dentro com aro de santidade rezando, ou com o rosário entrelaçado na letra "O" ou na letra "A"...

Quer dizer, tudo neles – desde os mais humildes do povo - manifestava uma tendência que era para o mais perfeito, mais santo, mais belo continuamente. Uma espécie de insaciabilidade, não intemperante, mas uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor sob todos os pontos de vista; indicando um movimento da alma, que é de nunca se contentar com aquilo que tem, mas sempre, a propósito daquilo que vê, procurar algo mais alto, mais perfeito, melhor; uma tendência, portanto para a elevação.

Elevação em dois sentidos: pegar um objeto e adorná-lo mais, ou arranjá-lo melhor. Elevação em tomar a linguagem que está falando e fazê-la aos poucos mais nobre, mais elevada. Daí os senhores vêm o progresso da língua corrente na Idade Média, durante a qual nasceram os grandes idiomas contemporâneos: francês, inglês, espanhol, alemão, português, os vários dialetos italianos. Todas essas línguas nasceram de um contínuo aperfeiçoamento para uma forma mais bela, para uma expressão mais rica etc.

Mais do que isso: era uma tendência para o sobrenatural. A ideia de que por este mesmo movimento de espírito de procurar cada vez mais o verdadeiro, o mais virtuoso, o mais belo; a ideia de que no alto desses seres visíveis - uns mais belos do que os outros - havia seres invisíveis, mais nobres e mais belos do que os visíveis. E que no alto da pirâmide dos seres invisíveis ou espirituais estava Deus Nosso Senhor, a suma perfeição enfim, é Deus e não preciso dizer mais nada.

Então dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas à procura de sua perfeição; e outro movimento para, através das coisas terrenas, caminhar para Deus.

O que significava na alma do homem medieval uma tendência fundamental para o elevado e uma necessidade de alma profunda de procurar e de conhecer continuamente coisas que lhe provocassem a admiração.

Daí também as canções de gestas que eram exatamente a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. O mesmo se dando igualmente com as lendas, que às vezes eram apenas a respeito de vida de santos, mas que era a glorificação dos santos. A “Légende Dorée” [Legenda Áurea], por exemplo, de Jacques de Voragine, tem magnificência nesse sentido. E daí sobretudo a admiração pelos santos autênticos, com a hagiografia verdadeira como era ensinada pela Igreja; e a arte sacra e tudo mais quanto os senhores veem.

Era uma tendência para o admirar, para o admirar, para o admirar, para cima, para venerar e para alcançar - afinal - com o olhar a culminância suprema de toda a ordem do ser que é Deus Nosso Senhor.

Desta tendência corresponde ao estímulo contínuo que Deus comunicou à criação. Não julguem os senhores que este estado de alma é pura e simplesmente um movimento que os medievais tiveram, mas que é lícito a outros não terem.

Não, não é verdade. Esta é a orientação de alma que, em virtude do primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

Os senhores veem isso bem nos dois campos que podem considerar: ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural os senhores têm o universo. Por mais que os senhores o examinem, não encontram um ponto que não seja susceptível de um aprofundamento; e no desenvolvimento de tal aprofundamento os senhores não encontram nada que, por sua vez, não desfeche em uma espécie de maravilhamento. O universo foi todo construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Os senhores tomem a coisa mais terra-terra, por exemplo, a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico, sua pata é feia. Mas se um cientista vai estudar a pata de uma rã, encontra ali dentro uma ordenação, uma estrutura, enfim outras razões pelas quais um verdadeiro especialista acaba concluindo o que o artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista dirá que é hedionda, mas o cientista dirá: nesta hediondez, que maravilha!...

Quer dizer, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda a parte o que os senhores encontram no fim de tudo é algo de admirável.

Em outros termos, Deus criou o universo susceptível de aprofundamento, que convida o homem a prestar atenção continuamente nele, aprofundar, aprofundar, aprofundar. E ao cabo desse aprofundamento Deus sempre convida o homem a um ato de maravilhamento.

O “émerveillement", o maravilhar-se, o admirar é a postura de alma que é o ponto terminal da peregrinação do homem em toda a espécie de estudos ou elucubrações que faça em qualquer campo: artístico, científico, cultural, seja como for, isso é assim.

No centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, os senhores encontram a ordem sobrenatural: a Igreja Católica, Apostólica, Romana.

E na Igreja Católica isso é assim também. E eu digo a Igreja Católica verdadeira, não essa triste desfiguração das coisas católicas que foi imposta pelo Concílio Vaticano II. Mas a menor coisa que os senhores vão procurar é uma verdadeira maravilha; é só questão de analisarem bem.

Eu nem saberia o que dizer da Igreja Católica para mostrar que maravilhas Ela tem... Tomo o mais corrente dos exemplos: o meio que a Igreja inventou para chamar os fiéis para oração: o sino. Tão prático! Colocado no alto de uma torre e toca... Mas a torre da Igreja, quanta maravilha! A Ave Maria que é tocada na aurora ou na hora do pôr do sol, que maravilha! O sino que repica alegre para anunciar a Missa, que maravilha! O sino que dobra finados quando o caixão entra na Igreja para receber a benção, que maravilha!

Estava um dia comentando com um companheiro as coisas que a Igreja faz e que são tão naturais que ninguém se lembra até de achar bonitas... a gente precisa prestar atenção nisso. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra um féretro carregado na Igreja - antigamente isso era muito comum - vem um caixão, a família leva para dentro, abre o caixão, vem o padre dá a benção etc., etc., e vai para o enterro. Todo o mundo com aquele respeito: “Coitado, morreu, mas dizem que morreu bem; era tão bom, antes de morrer abençoou os filhos, recebeu os sacramentos, despediu-se da esposa...” De repente o coro entoa: " Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis "...  É a dúvida da Igreja: ele deve ter pecados para pagar, pelo menos veniais, e o normal é que passe por um purgatório bem ardente - "Meu Deus, dai-lhe o descanso, e que a luz perpetua brilhe para ele"... E ainda depois o coro canta: "Requiescant in pace", e em um tom baixo: "amem". Quer dizer, o modo pelo qual convida à humildade e reconhece a realidade do pecado no homem que Ela está honrando assim. É um equilibro que é uma coisa fantástica!

Mais. Isso é até nas exéquias dos dignatários da Igreja; nas exéquias dos bispos, arcebispos, cardeal, do Papa... e lá vai o " Requiem aeternam dona eis, Domine".

Os senhores já ouviram falar disso: quando um Papa era entronizado, era levado em triunfo pela Basílica de São Pedro, até ser coroado, e depois voltava na sedia gestatoria. Um dignatário eclesiástico próximo dele, com uma estopa, de vez em quando acendia, colocava fogo nela e dizia: "santissime Pater, sic transit gloria mundi - santíssimo Pai, assim passa a glória do mundo”; daí a alguns passos acendia outra estopa e dizia "santissime Pater, sic transit gloria mundi”. Como quem diz: Vós sois Papa, é uma grande coisa, mas o demônio da vaidade pode tomar conta de Vós; Santíssimo Padre, olha como passa a glória do mundo...

Não sei se os senhores notam a harmonia dessas duas funções tão diversas... Coisinhas na vida da Igreja. Coisinha... essas “coisinhas” são sóis! Esses sóis significam que a Igreja nos convida continuamente, Ela também, a uma impostação de admiração, e que este desejo e avidez de admirar está em tudo quanto Deus pôs, cerca tudo, envolve tudo, quer na ordem natural, que na ordem sobrenatural.

Igreja Matriz de Guaratinguetá (Estado de São Paulo)

Então os senhores devem imaginar um povo fiel, mas que pode ser um prequeté qualquer que passa pela rua, que tem apenas a grande glória - e como é grande essa glória! - de ser batizado. E, portanto, ao que corresponde ao nhonhô de hoje, mas o contrário dele enquanto impostação de alma, de classe social pequena, tanto grande. O nhonhô está voltado para si e é feito da tendência de não admirar nada. Pelo contrário, quem tem o espírito católico possui esta tendência a procurar em tudo coisas admiráveis, a fazer coisas admiráveis, e não é invejoso; encontrando alguém admirável, ele se alegra e dá graças a Deus por tê-lo encontrado, o elogia, o aplaude, procura torná-lo conhecido. Não é igualitário; não procura colocar-se no nível dos outros, mas sim quem é mais do que ele, de tal sorte que receba mais do que ele e seja mais glorificado.

Essa foi a tendência de espírito da Idade Média. Corolário: por causa da admiração, os que são menos aprendem dos que são mais, admiram e aprendem; de onde a influência das classes mais cultas, mais artísticas, mais aprimoradas sobre as classes menores. A boa moda desce para os outros. Essa foi a orientação daqueles séculos.

Houve traços disso séculos depois na história da humanidade, por exemplo, durante o Ancien Régime.

Num Santo do Dia recente – aliás, não foi Santo do Dia, mas o “bandido do dia” - falei aos senhores do Cartouche e de um ladrão espanhol, e mostrei como eles procuravam imitar o cavalheiro. Era o que havia de baixo que procurava imitar o que havia de alto. E era com isso o governo de Deus, Supremo, sobre toda a humanidade.

Eu digo isso aos senhores, meus caros, por quê?

Daqui a pouco descreverei que relação tem isso com o assunto São João da Mata. Mas digo com intenção dos senhores fazerem a crítica exata do mundo que os rodeia, de tal modo que não seja uma crítica puramente “heresia branca” [superficial, emotiva, simplória, n.d.c.], que levaria ao seguinte: "se os círculos que conheço não roubam, não praticam adultério, não pecam contra a pureza, são bons, porque ser bom é não ter pecado nessas três matérias; o resto não tem importância..." Isso é um minimalismo inaceitável.

Ou o círculo social em que a gente pertence tem o espírito admirativo, gosta de comentar e considerar sempre o mais alto, mais perfeito, e por aí tende para Deus, ou é um espírito ateu, porque faz abstração das coisas intermediárias que nos conduzem a Deus e cuja admiração nos conduz a Deus.

Há uma regra muito comum e muito verdadeira, mas que ainda é aceita por algumas pessoas hoje em dia e que é a seguinte: se nós queremos amar a Deus devemos amar o nosso próximo, que é a imagem e a semelhança de Deus; amando a imagem e a semelhança de Deus nós amamos a Deus.

Se isto é verdade, São Paulo tem aquela frase famosa: se vós não amais o próximo que vedes como podereis amar a Deus que não vedes?

Então também é verdade que essa posição de admiração pelas coisas retas, terrenas, é uma condição para admirarmos a Deus, porque o mesmo princípio pode-se aplicar: "Se vós não admirais as coisas que vedes, como podereis admirar a Deus que não vedes?". E, portanto, esta tendência para a admiração, esta prontidão de espírito para respeitar, para se alegrar com o que é elevado, com que é superior, com que é o nobre, deve ser de todas as classes sociais, desde a mais modesta até a mais alta. E é segundo essa tendência que devemos julgar o valor religioso do ambiente que frequentamos.

Por que isso? Porque quando o espírito é assim, ficam criadas as condições para se praticar a virtude; esse espírito é elevado, ama a pureza, tem horror a impureza, facilmente será puro e honesto, não roubará etc., etc.

Se não for assim, pensará só isso: “pecar contra a castidade é muito gostoso, mas Deus proibiu e eu não posso fazer...” E então procurará se manter na castidade com uma espécie de tristeza de ter que ser puro, porque não admira a virtude que pratica e não compreende a beleza da virtude que pratica.

E por que não compreende? Porque não admira nada, não foi educado para admirar coisíssima nenhuma. Resultado: a própria santidade católica ele não admira também.

Se não admira, aquilo para ele é um fardo. Se é um fardo, a qualquer hora o joga à beira do caminho.

Nós só perseveramos na virtude quando admiramos. E só admiramos a virtude quando temos esta base de todas as virtudes, que é o espírito admirativo, que nos leva até Deus Nosso Senhor.

Então, devemos procurar fazer uma análise do mundo e verificar, mesmo nas pessoas que praticam os Mandamentos - e quão raras são... -, se têm esse espírito, ou se consideram cada Mandamento uma algema e os dez Mandamentos da lei de Deus como as dez algemas do pobre católico.

Se considera assim, essa virtude pouco vale, não é praticada por amor, por admiração, mas por medo do inferno. Pouco vale! Ela tem que ser praticada por entusiasmo, por amor, por solidariedade de alma, assim é que a virtude tem que ser praticada.

Ninguém pratica isso se não tiver o hábito da admiração.

Os senhores considerem, por exemplo, nessas pobres casinholas, nesses pobres barracos desse audiovisual que viram há pouco, o que exprime a menor vontade de alguma coisa mais alta? É verdade que há ali muita pobreza. Mas há, por exemplo, um Anjo desenhado a carvão que seja do lado de fora de uma casa? Há uma coisa qualquer que indique um pouco de preocupação de fé, de sobrenatural, de uma outra vida, de uma forma maior de externar a retidão e a beleza das coisas?...

Nada! Não é por falta de dinheiro, mas por um estado de espírito. Porque os senhores encontram na Idade Média habitações mais pobres, porém ornadas, ainda que seja um pouco, têm pelo menos um pote com uma flor plantada. Os senhores, viram aquilo: não tem pote, não tem flor, não tem nada, não tem passarinho, não tem nada...

Mas tanto é isto, esse estado de espírito, que os senhores vão acendendo na escala social e os senhores vão vendo que a mentalidade é a mesma. Se é a verdade que há mais conforto, e cada vez mais conforto, há cada vez menos beleza, a beleza vai desertando do interior dos lares ricos. E essa fuga do elevado vai-se acentuando cada vez mais, sobretudo nos lares mais altos, de tal maneira que estamos numa inversão: são os modos de ser da classe mais baixa que são imitadas pela classe mais alta. Ou seja, é um castigo de quem perdeu o espírito de admiração, de quem não compreendeu que deve respeitar-se, admirar-se e fazer-se admirar pelos outros para o bem dos outros, mas que apenas procura o gozo da vida.

Os senhores têm aí uma civilização sem admiração, sem beleza, que, como perdeu a admiração, é uma civilização ateia.

Isso não deve ser, meus caros, um exercício de análise qualquer, para entrar por um ouvido e sair por outro. Isso deve ser tomado pelos senhores muito a sério no sentirem o mundo revolucionário, porque só assim que os senhores podem sentir bem a TFP. Porque pela graça de Nossa Senhora, a TFP tem bastante do espírito da Igreja. E, em virtude disso, ela continuamente está sugerindo aos senhores a admiração.

Tudo dentro da TFP é feito, às vezes despercebidamente, instintivamente, para despertar a admiração. Os senhores veem essa sala, qualquer coisa na TFP, na sede dos “Buissonnets”, na Sede do Reino de Maria, qualquer coisa na TFP tem algo em que aparece o desejo de favorecer esse espírito de admiração. Enquanto, pelo contrário o mundo revolucionário convida para a degradação, para a diminuição.

E é só os senhores sentindo isso que estarão com a alma aberta para o primeiro Mandamento, primeiro ponto.

E em segundo lugar, somente os senhores sentindo isso que têm a possibilidade de rejeitar o mundo revolucionário e de amar o mundo contra-revolucionário.

Para serem contra-revolucionários ou os senhores rejeitam as almas e os ambientes sem admiração, fazem a crítica e compreendem que não vale nada, ou se não rejeitam a Revolução, ela entrará nos senhores e acabará os devorando também.

E é preciso, portanto, um verdadeiro exame de consciência, um verdadeiro método de observação e análise contínuo para manterem em si esse espírito de admiração.

Os senhores dirão: “Dr. Plínio, não é uma coisa inventada pelo senhor? Isso eu não vejo nenhum manual católico dizer...”

Eu respondo: dizem todos os manuais católicos, desde que sejam bem lidos e entendidos. Mas por exemplo, quando a Escritura diz: "Os céus e a terra narram a glória de Deus", o que significa isso? A glória é um objeto de admiração. Portanto "os céus e a terra" narram o que em Deus há de admirável, de glorioso. O céu e a terra não foram feitos para conhecermos a Deus? Se narram a glória de Deus, devemos ter um espírito ávido de admirar a glória em tudo. É claro, é evidente!

Os senhores tomem as catedrais feitas pela Igreja. Admiráveis todas elas. Por quê? A Igreja quer modelar pela admiração os seus filhos. Então os vitrais, os órgãos, as liturgias, a música sacra. Tudo isso tende ou não tende para admiração? Tende para a admiração. E a alma verdadeiramente católica deve procurar o admirável em tudo, em tudo. Ainda que seja uma alma de uma cultura muito comum, e de uma inteligência comum também, essa alma deve voltar-se para isso.

O que eu acho, queridos componentes da minha TFP - e falo especialmente dos mais novos, a quem o “Santo do Dia” é dirigido -, mas se me pedissem para jurar sobre o Santíssimo Sacramento que isso não tem uma aplicação para os mais velhos eu diria, pela veneração que eu tenho a eles, que jurem eles por si mesmos, mas que eu não juro; se quiserem jurar jurem, aí está um Evangelho, jurem, não tem dúvida, cada um deponha por si; eu não afirmo nem nego - até lá vai o meu respeito para com eles. Mas afinal de contas o que é que acontece?

É que algo disso há no nosso espírito, mas é dividido com certos hábitos mentais por onde a gente gosta do vulgar, do banal, da chanchada, do desordenado. E acha que isso é o normal, que em todas as épocas do mundo os homens foram assim e que nós é que vivemos num píncaro quase inumano de tão alto. Quando é o contrário: o mundo atual está no fundo de um abismo, de um precipício de vulgaridade, de feiura, de imoralidade e de erro; e estamos numa ilha que é um monumento porque em torno de nós tem abismos e não é porque ela seja extraordinariamente alta, mas porque o mundo desceu muito. E Nossa Senhora nos fez a graça de não descermos, razão pela qual parecemos estar muito alto, mas isso é o rés do chão do Reino de Maria.

E, portanto, não devemos ter a ideia que a TFP nos pede uma elevação de espírito quase impossível, que somos mais ou menos como um macaco que consegue ficar de pé sobre as duas patas durante algum tempo, mas que depois já vai voltando para o chão e andando como quadrúpede. Assim seria a alma de um tefepista: põe-se em pé um pouquinho numa atitude de admiração, mas mal esquece um pouco de si, já vai como um quadrúmano andando pelo chão... Não é essa a nossa alma. O normal é estarmos eretos na posição de admiração e voltados para o Céu, procurando admirar tudo quanto é admirável, ou seja, execrando tudo quanto é execrável. Assim é a posição verdadeira normal de nossa alma.

Isso não é extraordinário. Houve séculos e séculos em que a mentalidade dos homens foi essa.

Vamos dizer que o estado de espírito oposto começou a se infiltrar depois da Idade Média. Na Revolução Francesa, dominou e no comunismo atingiu o seu paroxismo.

Há um pormenor que não sei se os senhores conhecem: na Rússia não se pintam as casas do lado de fora; pode ficar com aspecto podre e leproso que for, não interessa! Para que pintar? Dentro as pessoas moram com pintura ou sem pintura; por que gastar dinheiro com tinta? Pintar uma cidade inteira como São Paulo, não tem sentido...

Quer dizer, é o mundo da feiura, da hediondez e do horror.

Eu queria realçar muito isso aos senhores porque acho que deve ser para os senhores um objeto de meditação e de meditação metódica, indo junto com o exercício de transcendência.

O exercício de transcendência, ou seja, fazer a consideração das coisas naturais e reportá-las a Deus, deve ser comum, deve ser normal, deve ser corrente na vida do homem. Esse é o exercício da presença de Deus de que fala Dom Chautard. Ter Deus presente em tudo é isto; é a substância da vida interior, de acordo com a doutrina católica.

Então fica aqui esse apelo para que levantemos a alma, levantemos os corações e mudemos nosso modo de ser.

Lembro-me que conheci o caso de uma casa que havia aqui em São Paulo perto da qual crescia uma árvore e comum, mas com umas foliazinhas, com ramagem etc., e a copa da árvore coincidia com a janela do primeiro andar desta casa. E por uma coincidência ficava a iluminação pública - naquele tempo era uma lâmpada suspensa em fios -, que ficava próxima à árvore, próxima da qual havia uma das salas dessa casa. Assim, quando se entrava à noite nesse quarto da casa, se as venezianas estavam levantadas, penetrava a luz de fora e enchia o quarto com mil sombras daquela folhagem.

Numa ocasião foi necessário cerrar essa árvore e derrubar, por razões de segurança, porque podia entrar um ladrão, um terrorista, não houve outro jeito.  E eu soube do comentário da dona da casa a respeito. Quando ela entrou e viu que a árvore estava serrada, disse: “Mas como? O que aconteceu com a árvore?” Disseram: “foi preciso serrar...” Mas para não assustá-la, não se mencionou o perigo de terrorismo. E ela comentou: “Mas vocês tiveram a crueldade de acabar com as sombras lindíssimas que enchiam esta sala durante a noite?”

A gente via que era um verdadeiro golpe para ela, que com sua cultura comum e com sua inteligência comum ficava cheia de admiração daquilo, reportando a Deus Nosso Senhor.

Coisa tão comum: uma árvore, um reverbero de iluminação elétrica e uma sala apagada. Só não era comum a alma que tão intensamente sentia isso...

Isso é um dos mil exemplos que se poderiam contar, tirados da vida comum das pessoas da civilização cristã e que indicam bem qual é a mentalidade correspondente à tendência para ver o maravilhoso em toda a parte, pois ele existe por toda a parte; é só querer encontrá-lo.

Como se fará isso? Não sei bem. Acho que seria preciso talvez fazer um exame de consciência, propor um ponto qualquer para ser admirado em conjunto, mas da vida cotidiana, não só de castelos magníficos com os quais não nos encontramos. Mas aprendermos a ver o que há de interessante nessa nossa pobre vida cotidiana do século XX e que nos pode elevar a coisas mais altas.

Não sei bem, eu mesmo, que continuidade dar a esta exposição. Mas eu desejava muito fazer essa exposição mostrando algo que é o próprio índice do bom espírito.

Ter o espírito voltado para o maravilhoso é ter bom espírito. Ter o espírito voltado para o banal, para o trivial, para o reles é ter mau espírito. E deixar isso confiado a meditação dos senhores.

Cálice utilizado por ocasião da proclamação do dogma da Imaculada Conceição, pelo Bem-aventurado Papa Pio IX (1854)

(Aparte: Como fazer para não deixar perder isso que o senhor falou?)

Também fico numa certa dúvida. Mas indico o ponto central: eu estou lançando a tese de que este é o espírito comum que todo o mundo deve ter; não é um exercício extraordinário, não supõe qualidades extraordinárias nem dons extraordinários, mas é o comum de uma época de Civilização cristã.

De outro lado, portanto, devemos fulminar com nossa condenação interior os ambientes onde essa tendência comum de elevação de alma não existe. Não podemos estar criando briga com ninguém, mas interiormente devemos ter a recusa disso. O estado de alma que se pede aos senhores é o comum, não é o extraordinário. Este é o ponto sem o qual todo o resto derrapa, começa vacilar e vira poesia... Isto é o comum e menos do que isto está abaixo da crítica. Essa é a tese.

Então como nos imbuirmos dessa tese? Aqui está o ponto...

(Aparte inaudível: ...por exemplo a questão da natureza. O senhor crê que o interesse nosso seria maior ou menor?)

A impressão que eu tenho é que a matéria tem qualquer coisa de novo que interessou, mas que de outro lado ela, muitos no Auditório sentiram uma colisão entre o que eu disse e os seus próprios hábitos mentais. (...)

Agora depende do caminhar da graça. Porque houve, de alguns lados, uma boa acolhida; em outros, houve um certo ranger como quem diz: “Eu não consigo negar o que o Dr. Plinio diz. Mas como é duro concordar com ele...” Porém, essa é a doutrina católica, com a qual é preciso concordar. Não se trata de uma doutrina que tirei da lua, mas é a pura doutrina católica.

Nota: Para aprofundar o tema, consulte A INOCÊNCIA PRIMEVA E A CONTEMPLAÇÃO SACRAL DO UNIVERSO


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