CAPÍTULO II
A tática do “terreno comum”
A tática do “terreno comum” e o
indiferentismo religioso
Nunca
será demais acentuar que a tática acima descrita é preconizada, não
somente para uso em palestras individuais, como ainda para os jornais,
revistas, conferências, cartazes e, em suma, para toda propaganda da A.C..
Subestimando, em benefício do chamado “apostolado de conquista”, o
apostolado de afervoramento dos bons e o combate preventivo contra o erro
nos ambientes ainda preservados, preocupam-se certos círculos da A.C.
exclusivamente com o efeito de suas palavras sobre as almas situadas fora
do grêmio da Igreja. Colocando-nos nesse terreno para melhor argumentar,
só encaramos no capítulo precedente os efeitos funestos que tal
estratégia, arvorada em meio usual de apostolado, poderia trazer. No
entanto, a prática do apostolado não nos coloca apenas em presença de
pessoas, de cujo espírito é preciso expurgar algum erro, a fim de ali
introduzir alguma verdade. A superficialidade, o imediatismo, a
despreocupação de tudo quanto não produza proventos materiais, multiplica
em nossa época o número de pessoas totalmente indiferentes a tudo, e
desprovidas de quaisquer idéias sobre a Religião. São espíritos que, sem
qualquer prejuízo ou irritação, podem ouvir os maiores ataques contra
certos inimigos da Igreja, e que farão desta um conceito mais elevado, se
uma apologética vigorosa puser a nu aos seus olhos os motivos subalternos
pelos quais costuma a Igreja ser atacada. Não podemos ver em que sentido
se pode prestar serviços a uma destas almas, a um livre pensador por
exemplo, ou antes a um mundano inteiramente indiferente, deixando de se
proceder por esta forma apostolicamente franca, que elevará a Igreja em
seu conceito, e ao mesmo tempo o imunizará contra uma possível investida
de prosélitos do mal.
A “tática do terreno comum” e os católicos
fervorosos
Quanto aos ambientes que já são católicos, o
mais importante consiste em ensinar a verdade e não em combater o erro. Em
outros termos, mais vale um sólido conhecimento do catecismo, do que um
certo adestramento nas lutas da apologética. Entretanto, pode-se aliar
perfeitamente uma vantagem à outra, e será sempre digno de louvor quem se
empenhar em mostrar aos filhos da luz toda a tenebrosa abjeção intelectual
e moral, que impera no reino das trevas. Quanto filho pródigo renunciaria
ao abandono criminoso do lar, se um conselheiro prudente lhe advertisse
dos riscos sem número, a que se expõe deixando os domínios paternos! É
imenso o abismo que separa a Igreja da heresia, o estado de graça do
pecado mortal, e será sempre uma obra de misericórdia das mais eminentes,
mostrar aos católicos despreocupados a temível extensão deste abismo, a
fim de que não se atirem inconsideradamente em suas profundezas.
Tudo isto posto, e já que, segundo
demonstramos, os mais altos interesses da Igreja e as mais graves
imposições da caridade nos levam a agir de preferência sobre os irmãos na
Fé, chegamos à conclusão de que fazer da famosa tática do “terreno comum”
a nota dominante e a bem dizer exclusiva da propaganda da A.C., implica em
grave erro.
Imagine-se o efeito concreto que sobre nossa
massa católica teria uma propaganda, cujo “leit-motiv” fosse invariável e
exclusivamente que do protestantismo nos separa apenas uma tênue barreira;
que estamos todos ligados pela Fé comum em Jesus Cristo e que muito
maiores são os laços que as barreiras entre nós. Quem conseguisse fazer
prevalecer essa tática entre os católicos mereceria, por certo, um grande
cordão de honra, por parte dos protestantes.
Um curioso exemplo do perigo que a Santa Sé
considera nesta tática de pôr em constante relevo as analogias existentes
entre a doutrina católica e os fragmentos de verdade, que se encontram em
todos os erros, nota-se na proscrição expressa e radical da palavra
“socialismo católico” feita pelo Sto. Padre Pio XI, na Encíclica
“Quadragésimo Ano”.
Como ninguém ignora, o termo “socialismo”
servia de denominador comum para todas as correntes sociais
anti-individualistas, que iam desde alguns matizes nitidamente
conservadores até o comunismo. Assim, dado que Leão XIII se manifestou
radicalmente anti-individualista, a expressão “socialismo católico” abria
um “terreno comum” entre todas as doutrinas anti-individualistas e a
Igreja. Do ponto de vista da política dos panos quentes, a expressão era
tanto mais vantajosa, quanto não comprometia as relações entre católicos e
individualistas, já irremediavelmente rotas, em conseqüência de atitudes
anteriores da Santa Sé. Pio XI, entretanto, rompeu com este termo ambíguo
e o proscreveu pelo mau sentido que se lhe poderia atribuir, causando com
isto evidente surpresa aos muitos partidários dos panos quentes.
A verdadeira atitude
Nesse terreno, como nos demais “oportet haec
facere et illa non omitere”. É preciso sobretudo e antes de tudo ser
objetivo e verdadeiro. Não ocultemos o abismo que separa tudo quanto é
católico do que não o é, abismo imenso, profundo, que seria mortalmente
perigoso não ver. Por outro lado, não rejeitemos também os resquícios de
verdades nossas que possam sobreviver nos erros do adversário. Mas
guardemos sempre em nossa linguagem a preocupação de jamais tomar, a
pretexto de conquista dos maus, atitudes que prejudiquem a perseverança
dos bons e seu horror à heresia. Aliás, é muito menor do que se pensa o
valor de alguns fragmentos de bem ou de verdade que entre os hereges se
podem conservar. Neste sentido vejamos, por exemplo, o que S. Tomás nos
ensina acerca da Fé.
– “Podem os infiéis fazer atos de fé?
– Não Senhor; porque não crêem na Revelação,
ou seja porque ignorando-a, não se entregam confiadamente nas mãos de
Deus, nem se submetem ao que deles exige ou porque, conhecendo-a, recusam
prestar-lhe assentimento. (X).
– Podem fazê-los os ímpios?
– Tão pouco, porque, se bem que têm por certas
as verdades reveladas, fundadas na absoluta veracidade divina, a sua fé
não é efeito de acatamento e submissão a Deus, a quem detestam, ainda que
com pesar seu se vejam obrigados a confessá-lo (V. 2. ad 2).
– É possível que haja homens sem fé
sobrenatural, e que creiam desta forma?
– Sim Senhor; e nisto imitam a fé dos demônios
(V., 2).
– Podem crer os hereges com fé sobrenatural?
– Não Senhor; porque, embora admitam algumas
verdades reveladas, não fundam o assentimento na autoridade divina, senão
no próprio juízo (V, 3).
– Logo, os hereges estão mais afastados da
verdadeira fé que os ímpios e que os mesmos demônios?
– Sim Senhor; porque não se apóiam na
autoridade de Deus.
– Podem crer com fé sobrenatural os apóstatas?
– Não Senhor; porque desprezam o que haviam
crido por virtude da palavra divina (XII).
– Podem crer os pecadores com fé sobrenatural?
– Podem, com tanto que conservem a fé, como
virtude sobrenatural; e podem tê-la, se bem que em estado imperfeito,
ainda quando, por efeito do pecado mortal, estejam privados da caridade
(IV, 1-4)”.
– Logo, nem todos os pecados mortais destroem
a fé?
– Não Senhor (X,1, 4)”.
P. Tomás Pègues, O. P. – “A Suma Teológica em
forma de Catecismo”, páginas 92 e 93 da edição brasileira.
Desse livro escreveu o Santo Padre Bento XV em
carta ao autor que este soube “acomodar ao alcance de sábios e ignorantes
os tesouros daquele gênio excelso (Santo Tomás de Aquino), condensando em
fórmulas claras, breves e concisas, o que ele com maior amplitude e
abundância escreveu”. É, pois, um resumo de grande autoridade, que nos
dispensa de fazer uma citação mais extensa de S. Tomás.
*
* *
Antes de passar a outro aspecto da questão,
gostaríamos de acentuar que o grande e sapientíssimo Sto. Inácio
prescreveu uma regra de conduta, que é precisamente o contrário da famosa
tática exclusiva do terreno comum. Disse o Santo que, quando em uma época
existe a tendência de exagerar alguma verdade, o apóstolo diligente não
deve falar muito desta verdade, mas sobretudo da verdade oposta.
Exagera-se sobre a graça? Fale-se em livre arbítrio. E assim por diante.
Quanto mais inteligente, mais eficaz e mais seguro é este procedimento!
Ressalva importante
Não quer isto dizer, evidentemente, que de
modo invariável deve ser rejeitada a colaboração de certos adversários
contra outros mais terríveis. Se bem que a história nos demonstre a
ineficácia deste processo em muitos casos, outros há – raros embora – em
que ele é aconselhável. Assim, o Santo Padre Pio XI preconizou a
cooperação de todos os homens crentes em Deus contra o comunismo. Mas tal
cooperação deve ser levada a efeito com bom senso, sem entusiasmos
exagerados e malsãos, e sobretudo sem estabelecer uma confusão entre o
campo da verdade e o do erro sob pretexto de combater erros mais funestos.
Com efeito, desde que os católicos adormeçam um pouco e aceitem fórmulas
de cooperação mais ou menos ambíguas, decorrerá daí uma exploração, que
seus aliados não tardarão a inaugurar, e que porá por terra todo o
trabalho comum. Para que se veja que não erramos quando aventamos tais
hipóteses, argumentemos com o mais moderno dos exemplos, isto é, uma
grande heresia contemporânea, certamente mais importante para a Igreja do
que são atualmente o protestantismo, o espiritismo, a igreja cismática,
etc.. – Na Alemanha, sentiu muito bem o nazismo como lhe convinha o
pretexto de frente única contra o comunismo; e o termo genérico de “crença
em Deus”, terreno comum entre nós e os nazistas, passou a encobrir as mais
torpes mistificações, a tal ponto que se tornou necessário premunir os
fiéis contra a ambigüidade de certos documentos nazistas. Damos aqui a
tradução de um dos folhetos distribuídos nesse sentido pelo movimento
católico alemão: – “Chegou a hora da decisão. A cada um se formulará a
pergunta: crês em Deus ou professas a Fé em Cristo e sua Igreja? Crer em
Deus não tem na nova estatística das religiões o sentido de nosso primeiro
artigo de Fé; hoje, crença em Deus significa exclusivamente crença em Deus
como a professam os turcos e hotentotes, e significa ainda repúdio de
Jesus Cristo e de sua Igreja. Quem pretender aceitar um tal Deus renegou a
Cristo e se separou da Igreja Católica. Chegou a hora da decisão. Assim,
pois, quando se vos perguntar individualmente se credes em Deus, terá
chegado a hora de fazerdes profissão de Fé sem rodeios, sem vacilações e
sem meios termos: sou católico, não creio só em Deus, mas em Jesus Cristo
e sua Igreja” (El Cristianismo en El
Tercer Reich, Testis Fidelis, 2º volume, pg. 103). E por
isto, o Santo Padre Pio XI, na Encíclica “Mit Brennender Sorge” contra o
nazismo, argumentou longamente para provar que não tem a verdadeira crença
em Deus quem não crê em Jesus Cristo, Senhor Nosso, e não crê em Jesus
Cristo de modo preciso quem não crê na Igreja.
Não ocultemos a austeridade de nossa
Religião
Não menor reserva merece a afirmação de que a
A.C. deve ocultar, em seu apostolado, todas as verdades que porventura
pudessem afastar as almas, por sua austeridade moral. Com todo cuidado,
deveriam ser evitados os termos ou expressões capazes de dar a entender
que a vida do fiel é uma vida de luta. A razão disto está em que se
pretende mascarar inteiramente, sob aparências alegres, os sofrimentos
impostos a quem segue Jesus Cristo. Não procedia assim o Divino Salvador,
que mais de uma vez declarou ser a Cruz a companheira necessária de quem O
quisesse seguir. Não procediam assim os Apóstolos, e de São Paulo nos fez
o Santo Padre Bento XV o seguinte elogio: “procedeu de maneira que os
homens conhecessem de mais a mais Jesus Cristo, e por aí soubessem não
somente o que é preciso crer, mas ainda como é necessário viver; eis o fim
para o qual São Paulo trabalhou com todo o ardor de seu coração
apostólico. Eis porque ele expunha os Dogmas de Cristo, e todos os
preceitos, ainda os mais severos,
sem reticências nem mitigações, falando da humildade, da abnegação de
si mesmo, da castidade, do desprezo das coisas humanas, da obediência, do
perdão aos adversários e outros assuntos análogos. Ele não experimentava a
menor timidez em declarar que entre Deus e Belial é preciso escolher a
quem se quer obedecer, e que não é possível ter a um e outro como Senhor,
que um julgamento temível aguarda os que devem passar da vida à morte; que
não é licito transigir com Deus; que se deve esperar a vida eterna se se
cumpre a Lei, e que o fogo eterno aguarda os que faltam a seus deveres,
favorecendo a concupiscência. Com
efeito, jamais o Pregador da verdade teve a idéia de se abster de tratar
essa espécie de assuntos sob o pretexto de que, em vista da corrupção da
época, tais considerações teriam parecido por demais duras para aqueles a
quem se dirigia. E daí se conclui que não se devem aprovar os
pregadores que, movidos pelo receio de aborrecer seus ouvintes, não
ousassem abordar estes pontos da doutrina católica. Um médico prescreverá,
porventura, a seus doentes, remédios inúteis porque os remédios salutares
lhe são repugnantes? Aliás, o orador dará a prova de sua força e de seu
poder, se, por sua palavra, souber tornar agradável o que não o é. Enfim,
São Paulo pregava com o espírito de agradar a Jesus Cristo e não aos
homens: “Se eu agradasse aos homens, dizia ele, não seria servidor de
Cristo” (Bento XV, Encíclica “Humani Generis”, de 15 de junho de 1917).
Como se vê, esta preciosa regra de conduta para os pregadores, que falam
em nome da Igreja, não poderia deixar de se aplicar também ao apóstolo
leigo, dirimindo inteiramente quaisquer dúvidas a este respeito. Este
deve, pois, ambicionar de todo o coração que sua vida interior seja tal,
que ele possa incitar à penitência todos os homens, com estas magníficas
palavras: “Estou cravado com Cristo na Cruz, e vivo já não eu, mas é
Cristo que vive em mim” (Gal. 2, 19-20).
Poder-se-ia objetar que a oratória e o
apostolado, sendo feitos para atrair, não devem tratar de assuntos que por
sua própria natureza repelem. Errôneo argumento, rejeitou-o a Sagrada
Congregação Consistorial, por resolução de 28 de junho de 1917: “o
pregador não deve ambicionar os aplausos de seus ouvintes, mas procurar
exclusivamente a salvação das almas, a aprovação de Deus e da Igreja.
Dizia São Jerônimo que o ensino, na Igreja, não deve suscitar as
aclamações do povo, mas seus gemidos, e as lágrimas dos ouvintes são os
louvores do pregador”. Parece-nos que a ninguém seria possível exprimir-se
com mais clareza. Em outros termos, nunca se deve deixar de pregar a Cruz
de Nosso Senhor Jesus Cristo “por quem o mundo está crucificado para nós,
e nós para o Mundo” (Gal. 6,14).
Não endeusemos a popularidade
Quanto ao medo de, com tal desassombro de
linguagem, ofender aos hereges, é preciso acentuar que a doutrina católica
nos prescreve, certamente, que devemos proceder com caridade, evitando,
até com sacrifícios heróicos, tudo que possa desagradar nossos irmãos
separados. Mas os próprios interesses de nossos irmãos separados, os
direitos das almas justas e sedentas da Verdade, nunca devem ser
sacrificados a este receio de não desgostar o próximo. Muitas vezes, as
atitudes capazes de os irritar são indispensáveis ao apostolado e,
portanto, francamente louváveis. O mais evidente bom senso demonstra que
há ocasiões, em que se torna necessário desagradar os homens, e às vezes a
muitos homens, a fim de servir a Deus, segundo o exemplo de São Paulo. É
este, caracteristicamente, o caso que se vê no Evangelho, no tocante a
Nosso Senhor Jesus Cristo, como há pouco demonstramos. Ninguém poderia
perfumar o seu apostolado com as manifestações de uma caridade mais
delicada do que o Divino Salvador. Entretanto, não logrou Ele atrair a
simpatia unanime das pessoas a quem falou, e a bem dizer a sua obra
naufragou – humanamente falando, e julgadas só as aparências imediatas –
sob um dilúvio de impopularidade que chegou ao extremo da crucifixão.
Aquele de quem pôde dizer o Apóstolo “pertransiit benefaciendo” (Actos, X,
38), foi preferido o infame Barrabás. Se a popularidade fosse a
conseqüência necessária de todo apostolado frutuoso, e se, reciprocamente,
a impopularidade fosse a nota distintiva do apostolado fracassado, Nosso
Senhor teria sido o tipo perfeito do apóstolo inábil.
No Ofício de Trevas da Quinta-Feira Santa, lê
a Igreja a seguinte lição de Santo Agostinho (Feria Sexta, II noturno, 5ª
lição) sobre a energia com que nosso adorável Salvador estigmatizou os
erros dos judeus, não recuando diante da imensa impopularidade que daí
decorreu, e que Ele certamente previu: “Ele não guardou silêncio sobre
seus vícios, a fim de lhes inspirar o horror destes vícios e não o ódio do
médico que os curava. Mas eles, correspondendo pela ingratidão a este
desvelo, semelhantes a frenéticos, que uma febre ardente irrita contra o
médico que viera para os curar, formaram o desígnio de o perder”.
Por aí se vê quão infundada e errônea é a
idéia de que a popularidade é necessariamente o prêmio de todo o
apostolado bem sucedido, de sorte que o apostolado tomaria ares
demagógicos para jamais desagradar a opinião pública. E o temor desta
impopularidade jamais fez recuar Nosso Senhor ou os Apóstolos.
No entanto, não só a sua Igreja triunfou de
toda essa impopularidade, mas, desde os Apóstolos até os nossos dias, vem
Ela vencendo o tumulto das calúnias, das perseguições, das blasfêmias, que
não têm cessado de se erguer em torno dEla. Verdadeira pedra de
contradição, tem a Santa Igreja precisamente como o seu Divino Fundador,
suscitado um imenso e terrível dilúvio de ódio, menor entretanto e muito
menor que a inundação de amor com que Ela não tem cessado de encher a
terra.
A Igreja não despreza a popularidade nem a
rejeita
Não quer isto dizer que, movida por suas
entranhas de Mãe, não procure a Igreja agradar aos seus filhos e se
deleitar nas efusões de amor, que eles lhe tributam. Longe de nós a idéia
blásfema de que a Igreja deva cultivar a impopularidade, e distanciar-se
desdenhosamente das massas. Mas daí a fazer da popularidade o fruto
exclusivo do apostolado, há uma distância muito grande, que o bom senso se
recusa a transpor. Segundo o belo lema dominicano seja a nossa norma
“veritate charitati”. Digamos a verdade com caridade, façamos da caridade
um meio para chegar à verdade, e não nos sirvamos da caridade como
pretexto para qualquer diminuição ou deformação da realidade, nem para
conquistar aplausos, nem para fugir a críticas, nem para procurar
inutilmente contentar todas as opiniões. Do contrário pela caridade
chegaríamos ao erro, e não a verdade.
Mas não faz dela a meta de seus esforços
E se porventura a malícia dos homens semear de
ódios os caminhos trilhados por nossa inocência, consolemo-nos com os
Santos. De São Jerônimo disse Bento XV: “um zelo tão ardente em
salvaguardar a integridade da Fé o atirava em veementíssimas polêmicas
contra os filhos rebeldes da Igreja, que ele considerava seus inimigos
pessoais: “Ser-me-á suficiente responder que jamais poupei os hereges e
que empreguei todo o meu zelo em fazer dos inimigos da Igreja meus
inimigos pessoais”; em uma carta a Rufino ele escreveu: “Há um ponto em
que não poderei concordar contigo: poupar os hereges, não me mostrar
católico”. Entretanto, contristado por sua defecção, ele lhe suplicava que
voltasse à sua Mãe desolada, única fonte de salvação; e em favor dos “que
tinham saído da Igreja e abandonado a doutrina do Espírito Santo para
seguirem seu próprio juízo”, pedia ele a graça de que voltassem a Deus de
toda sua alma. Já sabemos, Veneráveis Irmãos, que profundo respeito, que
amor entusiástico ele votava à Igreja Romana e à Cátedra do Pescador.
Sabemos com que vigor ele combatia os inimigos da Igreja. Aplaudindo seu
jovem companheiro de armas, Agostinho, que sustentava os mesmos combates,
e felicitando-se por haver como ele atraído sobre si o furor dos hereges,
ele lhe escreveu: “honra à tua bravura! O mundo inteiro tem os olhos
postos sobre ti. Os católicos veneram e reconhecem em ti o restaurador da
antiga Fé, e sinal ainda mais glorioso, todos os hereges te amaldiçoam e me
perseguem contigo com um ódio igual, matando-nos pelos seus desejos, na
impossibilidade de nos imolar sob seus gládios”. Este testemunho se acha
magnificamente confirmado por Postumianus em Sulpicio Severo: “uma luta de
todos os instantes e um duelo ininterrupto com os maus concentravam sobre
Jerônimo os ódios dos perversos. Nele, os hereges odeiam aquele que não
cessa de os atacar; os clérigos, quem lhes recrimina a vida e os crimes.
Mas todos os homens virtuosos sem exceção o amam e admiram.
“Este ódio dos hereges e dos maus levou
Jerônimo a suportar penosos sofrimentos, sobretudo quando os pelagianos se
atiraram sobre o Mosteiro de Belém e o saquearam; mas ele suportou com
equanimidade todos os maus tratos e todas as injúrias, disposto que estava
a morrer para a defesa da Fé Cristã” (Encíclica “Spiritus Paraclitus”, de
15 de setembro de 1920).
Conclusão
Acabamos de ver o procedimento de um Doutor,
de um Santo, de um dos maiores Santos da História da Igreja, elogiado por
um Pontífice. Não poderia haver maior garantia de que esse procedimento
não é apenas licito, mas exigido muitas vezes pelos mais altos e nobres
princípios e interesses da Igreja.
Resumamos nosso modo de pensar, condensando-o
em alguns itens, que tornarão mais preciso nosso pensamento, mostrando que
nem a doçura, nem a energia devem ter um lugar exclusivo, no apostolado:
1) – Dada a variedade imensa de almas, a
multiplicidade e complexidade das situações em que se possam encontrar,
não é a todas elas que se deve dirigir indistintamente as mesmas
palavras nem a mesma linguagem, ainda mesmo que se encontrem em situação
idêntica. Leão XIII disse positivamente que um apóstolo jamais pode usar
um só método de ação. Pelo contrário, afirmou que os métodos de
apostolado são múltiplos, e ineficaz o apóstolo que não saiba servir-se
de todos:
“É necessário – dizia ele – que, quem for
medir suas forças com todos, conheça as manobras e métodos de todos, que
saiba manejar as flechas e a funda, seja tribuno e chefe de corte,
general e soldado, infante e cavaleiro, apto a lutar com todas as armas
e a derrubar muralhas. Se o defensor não conhece, com efeito, todas as
maneiras de combater, o demônio saberá fazer entrar por um só lado seus
agentes, no caso em que um só lado tenha sido deixado ao descuido, e
assim roubar as ovelhas” (Leão XIII, Encl. “Providentissimus Deus”, de
8-11-1893).
Aliás, S. Paulo advertiu que devíamos lutar
“com as armas ofensivas e defensivas da justiça” (2, Cor., 6, 7).
Como esta variedade de processos fortes e
viris dista da monotonia do “sorriso apostólico” que se pretende
inculcar como única, ou quase única arma de apostolado! E como esse
apostolado mutilado e edulcorado difere do que descreve S. Paulo: “as
armas de nossa milícia não são carnais, mas são poderosas em Deus para
destruir as fortificações, derribando projetos e toda a altura que se
levanta contra a ciência de Deus, e reduzindo à sujeição todo o
entendimento na obediência a Cristo, e estando preparado para castigar
toda a desobediência, depois que for cumprida a vossa obediência” (2,
Cor., 10, 4-6).
2) – Por isto, suscita Deus, na Santa Igreja,
Santos dotados de temperamentos diversos, e guiados pela graça através
de vias espirituais diferentes. Esta diversidade, legítima expressão da
fecundidade da Igreja, é providencial. Procurar reduzir a uma
uniformidade essencial as variedades dessas manifestações, é trabalhar
contra o Espírito Santo e atentar contra a fecundidade da A.C..
3) – A formação da “técnica do apostolado” deverá tomar em conta esta
variedade, não procurando formar apóstolos de um só feitio, mas
ensinando a cada qual os verdadeiros limites dentro dos quais reina a
caridade, de maneira que a Fortaleza não os transponha, pois feriria a
Bondade, e a Bondade não os transgrida porque se transformaria em
perigosa e censurável fraqueza. Estes limites postos, convém que cada
qual proceda segundo a santa liberdade dos Filhos de Deus, sem que seja
forçado a amoldar sua personalidade à dos outros. Neste sentido, devem
todos entender-se fraternalmente, cooperando para melhor servir à Igreja
com a variedade de seus temperamentos, evitando cuidadosamente que dessa
providencial variedade decorram atritos de que a Igreja será, em ultima
análise, a grande prejudicada
[1].
A caridade não pode obnubilar a verdade
Confirmando
tudo quanto acabamos de ver, mencionemos, finalmente o conselho que, na
magistral Encíclica sobre S. Francisco de Sales, escreveu Pio XI: “O
exemplo do Santo Doutor lhes traça (aos jornalistas católicos) uma linha
de conduta bem clara: – estudar com maior cuidado a doutrina católica e
possui-la na medida de suas forças;
evitar que a verdade seja alterada, atenuada ou dissimulada sob pretexto
de não ferir adversários. Saber, quando um ataque se impõe, refutar os
erros e se opor à malícia dos operários do mal”.
Desde os primeiros tempos da Igreja, tem sido esta a sua linguagem
[2].
Se algum jornal católico dissesse, falando de hereges, que são “como
animais irracionais, destinados por natureza a serem capturados e mortos”
a indignação seria imensa em alguns de nossos círculos. São Pedro,
entretanto, o disse (II, 12). Se um jornal católico escrevesse dos
socialistas, liberais ou nazistas: “são fontes sem água. Nevoeiros
agitados de turbilhões. Aguarda-os a mais profunda escravidão. Vêm com
frases arrogantes e vãs e seduzem pelos apetites impuros da carne aqueles
que mal acabavam de abandonar a sua vida desvairada. Prometem-lhes a
liberdade, quando eles mesmos são escravos da perdição; pois o homem é
escravo daquilo porque é vencido. Pelo conhecimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo tinham fugido dos vícios mundanos, mas deixaram-se outra vez
enredar e escravizar, e tornou-se-lhes o último estado pior que o
primeiro. Melhor lhes fora não terem jamais conhecido o caminho da
justiça, do que, depois de conhecê-lo, voltarem as costas ao Santo
Mandamento que receberam. Verifica-se nesses tais a verdade do provérbio
“Volta o cão a seu vômito” e “o porco que saiu do banho torna a
revolver-se no lamaçal” (II, São Pedro, II, 17 a 22); se um jornal
católico, repetimos, escrevesse tais coisas, que lhe aconteceria?
Na linguagem dos Santos encontramos expressões
idênticas. Santo Inácio de Antioquia, mártir do século II, escreveu antes
de seu martírio várias cartas a diversas Igrejas. Nestas, lemos sobre os
hereges as seguintes expressões: “bestas ferozes” (Ephesios, VII), “lobos
rapaces” (Fil. II, 2), “cães danados que atacam traiçoeiramente (Ef. VII),
“bestas com rostos de homens” (Smirn. IV, 1), “hervas do diabo” (Ef. X,
1), “plantas parasitas que o pai não plantou” (Tral., XI), “plantas
destinadas ao fogo eterno” (Ef. XVI, 2).
Um dos mais diletos discípulos do Apóstolo do
Amor foi sem dúvida São Policarpo, por intermédio de quem soube Santo
Irineu que, indo certa vez o Apóstolo aos banhos, retirou-se sem se lavar,
porque aí vira Cerinto, herege que negava a Divindade de Jesus Cristo,
“com receio dizia, que o prédio viesse abaixo, pois nele se encontrava
Cerinto, inimigo da verdade”. Pode-se imaginar que Cerinto não se sentiu
satisfeito! O próprio São Policarpo, encontrando-se um dia com Marcião,
herege docetista, e perguntando-lhe este se o conhecia, respondeu: “Sim,
sem dúvida, és o primogênito de Satanás”. Aliás, nisto seguiam o conselho
de São Paulo: “Ao herege, depois de uma ou duas advertências, evita, pois
que já é perverso e condena-se por si mesmo” (Tito, III, 10). O mesmo São
Policarpo, se casualmente se encontrava com hereges, exclamava tapando os
ouvidos: “Deus de bondade, porque me conservastes na terra a fim de
suportar tais coisas?” E fugia imediatamente, para evitar semelhante
companhia.
No século IV, narra Santo Atanásio que Santo
Antônio Eremita chamava, aos discursos dos hereges, venenos piores do que
o das serpentes. Santo Tomás de Aquino, o plácido e angélico Doutor,
qualificou da seguinte maneira Guilherme do Santo Amor e seus sequazes:
“inimigos de Deus, ministros do diabo, membros do Anticristo, inimigos da
salvação do gênero humano, difamadores, réprobos, perversos, ignorantes,
iguais a Faraó, piores que Joviniano e Vigilância”, que eram hereges
contrários à Virgindade de Nossa Senhora. São Boaventura, Doutor Seráfico,
chamou Geraldo, seu contemporâneo, “protervo, caluniador, louco,
envenenador, ignorante, embusteiro, malvado, insensato, pérfido”. S.
Bernardo, o Doutor Melífluo, disse de Arnaldo de Brescia, que era
“desordenado, vagabundo, impostor, vaso de ignomínia, escorpião vomitado
de Brescia, visto com horror em Roma, com abominação na Alemanha,
desdenhado pelo Romano Pontífice, louvado pelo diabo, obrador de
iniqüidades, devorador do povo, boca cheia de maldição, semeador de
discórdias, fabricador de cismas, lobo feroz”. Contra João, Bispo de
Constantinopla, disse São Gregório Magno, que tinha “um profano e nefando
orgulho, a soberba de Lúcifer, fecundo em palavras néscias, vaidoso e
escasso de inteligência”. Da mesma forma falaram os Santos Fulgêncio,
Próspero, Sirício Papa, João Crisóstomo, Ambrósio, Gregório Nazianzeno,
Basílio, Hilário, Alexandre de Alexandria, Cornélio e Cipriano, Atenagoras,
Irineu, Clemente, todos os Padres enfim da Igreja, que se distinguiram por
suas virtudes heróicas.
O princípio em que se inspira o procedimento
de tantos Santos, condensou-o de modo admirável o suavíssimo Bispo de
Genebra, São Francisco de Sales, nas seguintes palavras: “Os inimigos
declarados de Deus e da Igreja
devem ser difamados tanto quanto se possa, desde que não se falte à
verdade, sendo obra de caridade gritar: eis o lobo! quando está entre o
rebanho ou em qualquer lugar onde seja encontrado” (Filotéa, Cap. XX, da
parte II). É claro que não preconizamos o uso exclusivo desta linguagem.
Mas não achamos justo que ela seja acusada de contrária à caridade de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
O exemplo de D. Vital
Em outro capítulo deste livro, acentuamos a
semelhança das concepções dos membros de certas confrarias do tempo de D.
Vital a respeito da Autoridade Eclesiástica, com as de certos
doutrinadores da A.C.. Também a respeito da estratégia apostólica, essa
semelhança entre as duas correntes é frisante. O insigne D. Vital sentiu a
necessidade de dizer o seguinte, em um dos seus sermões ao povo de Olinda:
“Há hoje toda uma espécie de homens que, negando o princípio da
autoridade... pretendem ensinar aos Bispos que devem ser todos doçura e
conciliação, sem jamais fazer uso de uma paternal severidade. Ora, se
percorrermos as primeiras páginas da História da Igreja, o que veremos?
São Paulo, cujas epístolas respiram a mais suave caridade do Senhor, dizer
aos cristãos culpados de Corinto: – “irei a vós de chicote em punho”. E
pronunciou contra eles a pena de excomunhão” (Padre Louis de Gonzague, O.
M. C., “Monseigneur Vital”, pg. 329). E foi porque essa imprudente
unilateralidade de processos apostólicos não cravou raízes no espírito do
ilustre Bispo que o Brasil venceu uma das mais sérias crises religiosas de
sua História.
Ajustemos nossos processos à mentalidade
hodierna
Cumpre esclarecer que, se tanto a linguagem
apostólica impregnada de amor e de suavidade quanto a que incute temor e
vibra de santa energia são igualmente justas e devem uma e outra ser
utilizadas em qualquer época, é certo que em determinadas épocas convém
acentuar mais a nota austera e em outras a nota suave, sem jamais levar
esta preocupação ao extremo – que constituiria um desequilíbrio – de tocar
só uma nota e abandonar a outra.
Em que caso se encontra nossa época? Os
ouvidos do homem contemporâneo estão evidentemente fartos da doçura
exagerada, do sentimentalismo acomodatício, do espírito frívolo das
gerações anteriores. Os maiores movimentos de massa, em nossa época, não
têm sido obtidos pela miragem dos ideais fáceis. Pelo contrário, é em nome
dos princípios mais radicais, fazendo apelo à dedicação mais absoluta,
apontando as veredas ásperas e escarpadas do heroísmo, que os principais
chefes políticos têm entusiasmado as massas até fazê-las delirar.
A grandeza de nossa época está precisamente
nesta sede de absoluto e de heroísmo. Por que não saciar esta louvável
avidez com a pregação desassombrada da Verdade absoluta, e da moral
sobrenaturalmente heróica que é a de Nosso Senhor Jesus Cristo?
O espírito das massas mudou, e é preciso que
abramos os olhos a esta realidade. Não caiamos no erro de as afastar de
nós, o que inevitavelmente se dará em nossos ambientes se elas só
encontrarem as diluições da homeopatia doutrinária do século XIX.
Pouco antes de falecer, escreveu o insigne
Cardeal Baudrillart um artigo em que mostrava que a piedade dos fiéis
passava a venerar cada vez mais, em Santa Teresinha do Menino Jesus, o
heroísmo de sua morte em holocausto expiatório ao Amor Misericordioso, já
não alimentando a sua devoção somente na meditação da doçura aliás
admirável da Santa de Lisieux. E Sua Eminência concluía que é pela
pregação do heroísmo que a Igreja pode reconduzir hoje as massas a Jesus
Cristo, mais do que em qualquer outra época.
Esta gravíssima advertência não deve por nós
ser esquecida. Demos às almas o pão forte que hoje em dia elas pedem, e
não a água de rosas que já não agrada a seu paladar.
*
* *
Não seria supérfluo tratar aqui de outra
questão. Há quem entenda que o apóstolo leigo deve ostentar sempre, e
necessariamente, uma fisionomia jovial e transbordante de contentamento,
se não quiser afugentar as almas.
Muito abuso se tem feito neste sentido do
belíssimo pensamento de S. Francisco de Sales: “Um santo triste é um
triste santo”.
Segundo muito bem ensina Santo Tomás de
Aquino, e o próprio S. Francisco confirma, a “tristeza pode ser boa ou má,
conforme os efeitos que em nós produz” (S. Francisco de Sales, Pensamentos
Consoladores, pg. 178, edição 1922). Assim, o próprio da alma virtuosa
consiste em experimentar a tristeza boa e até deixá-la transparecer na
fisionomia, sem receio de, com isto, afastar da Igreja qualquer pessoa.
Com efeito, esta tristeza edifica, e dela Nosso Senhor sofria quando
disse: “Está triste a minha alma até a morte”. E, assim como a
contemplação da tristeza santíssima de Nosso Senhor converteu inúmeras
almas, assim verificar-se estampada no rosto de uma alma piedosa a mesma
tristeza, só pode atrair e edificar. É desta tristeza, que disse o
Espírito Santo: “Pela tristeza que aparece no rosto, se corrige o coração
do delinqüente” (Ecl. VII, 4). E ainda: “O coração dos sábios está onde se
encontra a tristeza, e o coração dos insensatos, onde se encontra a
alegria” (Ecl, VII, 5).
Com efeito, há uma alegria santa, que edifica,
e uma alegria mundana, que escandaliza. É desta última alegria que falou o
Espírito Santo, quando disse: “Como o ruído dos espinhos ardendo debaixo
de uma panela, assim o riso do insensato; mas também isto é vaidade” (Ecl.,
VII, 7).
“Bonum ex integra causa”: logo, a edificação
do próximo tanto pode vir da tristeza santa quanto da santa alegria dos
que fazem apostolado. “Malum ex quocumque defectu”: de uma alegria
mundana, de uma tristeza mundana, só pode resultar desedificação.
Logo, não se deve entender que, para fazer
apostolado, é preciso que se esteja sempre alegre. O que é necessário é
que, quer nossa aparência seja alegre, quer triste, estejamos sempre com
Deus.
* * *
As pessoas que caem nestes erros professam
também um entusiasmo delirante em relação à virtude da simplicidade. Mas
de que modo errôneo a entendem!
Segundo elas, deve o católico dar crédito a
tudo quanto se lhe diz, e ser “inocente como uma pomba”.
Ora, a inocência da pomba, quando
desacompanhada de outra virtude absolutamente tão alta, tão evangélica e
tão nobre quanto ela, que é a astúcia da serpente, facilmente se
transforma em estultice.
É de “pombas” deste jaez, que disse o Espírito
Santo: “são pombas imbecis e sem inteligência” (Oséas, VII, 11).
Com efeito, “o imprudente dá crédito a tudo o
que se lhe diz, e o cauteloso considera seus passos” (Prov., XIV, 15).
Por isto, o cristão bem formado “quando o
inimigo lhe falar em tom humilde, não se fiará nele, porque ele tem sete
malicias no coração” (Prov., XXVI, 25). Com efeito, o homem prudente sabe
“pelos lábios do inimigo, conhecê-lo, quando no coração está maquinando
enganos” (Prov., XXVII, 19).
Assim, o apóstolo bem formado sabe pôr sua
perspicácia ao serviço da Igreja, seguindo o conselho da Escritura: –
“Apanhai-nos as raposas pequenas, que destroem nossas vinhas, porque a
nossa vinha está já em flor” (Cant., II, 15).
Este conselho, segundo o comentário do Pe.
Matos Soares (Porto, 1934) quer dizer: “As raposas simbolizam os hereges,
que são astutos como elas. É preciso detê-los logo no principio, quando
ainda são pequenos (raposas pequenas), do contrário, serão mais tarde a
desolação da Igreja”.
É a mesma santa astúcia que devemos
desenvolver para “viver em amizade com muitos, tendo, porém, como
conselheiro, um entre mil: tendo um amigo, tomai-o depois de o ter
provado, não nos fiando facilmente nele” (Eclesiástico, VI, 6-7).
Manda-nos o mesmo livro: “Separa-te dos teus inimigos, e está alerta com
teus amigos” (VI, 13). E, achar difícil a observância desta conduta, é
prova de fraqueza: “Quão excessivamente áspera é a sabedoria para os
néscios! Não permanecerá nela o insensato. Será para eles como uma pedra
pesada que serve para provar, e não tardarão em se descarregar dela”
(Ibid., VI, 25-26). Por sentimentalismo, não saberão praticar o conselho:
“Segundo as tuas forças, acautela-te do próximo” (Eclesiástico, IX, 21),
nem este outro conselho: “Não contes os teus pensamentos nem ao amigo, nem
ao inimigo” (Ibid., XIX, 8). Por isso, não sabem “pelo semblante conhecer
o homem” (Ibid., XIX, 26). Nem sabem “com o coração sensato discernir pelo
rosto as palavras mentirosas, como o paladar discerne o prato de caça”
(Ibid., XXVI, 21).
A este propósito, cabe uma observação
importantíssima. Já ouvimos em certos círculos – evidentemente aqueles em
que os efeitos do pecado original são olvidados, se não em teoria ao menos
na prática – que a A.C. age muito sabiamente quando confia cargos de
responsabilidade e direção a pessoas ainda não muito seguras, do ponto de
vista da doutrina ou da fidelidade. Com essa prova de confiança, anima-se
o neófito, e apressa-se sua cabal conversão de idéias e de vida.
O mal deste, como de muitos erros que
refutamos na presente obra, consiste em formular regras gerais, com base
em situações possíveis, mas excepcionais. É possível, com efeito, que em
certos casos concretos determinadas pessoas lucrem muito, do ponto de
vista espiritual, em serem tratadas assim. No entanto, percebe-se
facilmente a que evidentes abusos poderia chegar a generalização dessa
regra. Uma comparação elucidará plenamente o assunto. Sabemos que é
possível que um ou outro ladrão possa ser convertido a uma vida
morigerada, se alguém lhe der uma prova de confiança que lhe estimule o
brio abatido, e abra perspectivas de regeneração que, para ele, pareciam
irremediavelmente perdidas. Desse fato, possível mas simplesmente
possível, e muito raro, deduziremos que é uma regra de conduta comum das
mais sábias, confiar-se a ladrões a guarda dos cofres? E se julgamos
perigosa essa regra quando se trata de guardar nossos tesouros perecíveis,
por que seremos menos prudentes quando se trata da custodia dos tesouros
imperecíveis da Igreja?
Evidentemente, não deduzimos daí que um
dirigente de A.C. não deva, sempre que tal lhe seja possível, estimular
com palavras de afeto aos principiantes, e mesmo, na medida em que o
permitir a prudência, dar-lhes uma ou outra pequena prova de confiança,
como seja uma incumbência transitória qualquer. Mas daí, a outorga de um
cargo, e sobretudo de um cargo de responsabilidade, há uma imensa
distância que, por princípio, não se deve transpor, a não ser em
circunstâncias especialíssimas e por isto mesmo muito raras.
O mesmo se deve dizer dos elogios públicos.
Disse com muita graça um elemento da A.C. que tem a impressão de que, aos
olhos de muita gente, a Igreja é uma irmã pobre de todo o mundo, que se
contenta com os restos, a quinquilharia, etc., enquanto o que há de melhor
fica para o uso profano de instituições meramente temporais. E,
precisamente por isto, quando se aproxima de certos ambientes católicos
alguma figura de certo relevo, são por vezes tantas e tais as
manifestações de prazer que, antes mesmo de se ter procedido a indagações
e provas que a prudência impõe, já o neófito está canonizado! E, às vezes,
essa “aproximação” é puramente ilusória: um ato, uma palavra, uma meia
palavra até, já é prova de uma conversão autêntica e duradoura, que merece
imediatos e ardentes aplausos, e a concessão de foros de catolicidade
insuspeita e total.
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