Capítulo II

 

Todos os fiéis devem aspirar à santidade,
mas essa obrigação é particularmente grave
para os Religiosos, os quais assumiram
livremente o dever de tender à perfeição
pela observância dos três conselhos evangélicos
– obediência, castidade e pobreza

 

 

 

 

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159. O Evangelho mostra-nos três vias para nos dirigirmos a Deus: os Mandamentos, os Conselhos e o celibato no século

Do Curso para instrução religiosa, do Padre F. X. Schouppe:

"A lei evangélica admite gradações: não conduz somente as almas à justiça, condu-las também à perfeição.

"A justiça cristã consiste na fuga do mal e na prática do bem. A perfeição cristã consiste na união da alma com Deus pelo laço da caridade perfeita. Esta "perfeita caridade' exige que, livres de todo amor desordenado do mundo e de nós mesmos, só amemos a Deus, e só a Ele procuremos em todas as coisas.

"Para chegarmos a este desapego e a esta liberdade do coração, o meio mais eficaz é a observância dos Conselhos Evangélicos. (...)

"Os Conselhos Evangélicos de que falamos aqui são a prática das três grandes virtudes seguintes: pobreza voluntária, obediência inteira, e castidade perpétua. O Salvador propõe-nas como caminho mais excelente que o só caminho dos Mandamentos.

Entre a via dos Mandamentos e a dos Conselhos, um caminho intermediário: a virgindade ou o celibato no século

"O Evangelho mostra-nos três caminhos para nos dirigirmos a Deus.

 O primeiro é o dos Mandamentos: todos os homens devem observá-los para chegar à salvação.

"O segundo é o dos Conselhos Evangélicos, cuja observância se junta à dos Mandamentos. O Senhor ninguém obriga a que trilhe esse caminho; mas propõe-no às almas generosas que querem consagrar sua existência inteiramente a Deus: é a vida religiosa.

"O terceiro é um caminho intermediário, a saber: a virgindade ou o celibato no século.

"Daqui reduzem-se a três os estados de vida: o matrimônio, o celibato e a vida religiosa. – Estes estados são veneráveis e santos todos três; mas não igualmente perfeitos, se os considerarmos em si mesmos, ou como meios de salvação e de santificação: o celibato é mais perfeito que o estado do matrimônio; o estado religioso é dos três o mais excelente. (...)

O estado religioso não é de si obrigatório, mas é um bem de livre escolha

"O estado religioso é em si um estado meramente de conselho, um bem de livre escolha oferecido aos que têm de tomar um estado de vida; pode, todavia, tornar-se obrigatório, no caso de alguém se achar em circunstâncias de não poder salvar sua alma sem o emprego deste grande meio de salvação" (Pe. F. X. SCHOUPPE, Curso Abreviado de Religião ou Verdade e Belleza da Religião Christã, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, Porto, 1894, 2ª. ed. revista e aumentada conforme a 32.} e última edição francesa, pp. 315-316 / Imprimatur: J. B. Lauwers, Vic. gen., Mechliniae, 2-7-1875).

160. Entre a via dos Mandamentos e a dos Conselhos, uma terceira: a via da castidade ou da continência guardada no século

Da já citada Theologia Moralis do Pe. T. A. Iorio SJ (1886-1966), professor de Teologia Moral e de Direito Canônico em Nápoles:

"Além da via dos Mandamentos, necessária para todos os homens conseguirem a salvação eterna, existe a via dos conselhos ou da perfeição especial (...). Foi o próprio Cristo que no-la ensinou (...). E entre uma e outra, há uma terceira via, a saber, a via da castidade ou da continência guardada no século.

"Daqui, três classes de homens (...) ou três estados de vida no que diz respeito aos meios para se chegar a Deus: 1) o estado de matrimônio; 2) o estado de celibato; 3) o da vida religiosa. Daqui também três graus de perfeição. Pois o celibato, como declarou São Paulo (I Cor. VII, 7-8) e definiu o Concílio de Trento, sess. 24, can. 10 (DB 980), é mais perfeito que o estado matrimonial; e a vida religiosa evidentemente é de todas a mais perfeita. (...) Assim como Deus é admirável nos seus Santos, também o é nas várias maneiras de

levá-los à santidade" (Pe. T. A. IORIO SJ, Theologia Moralis, M. D'Auria, Editor Pontifício, Nápoles, 1960, 5ª. ed., vol. II, pp. 662-663 / Imprimatur: Neapoli, ex Curia Archiepiscopali, 19-10-1960, Can. Heribertus D'Agnese, Vic. Gen.).

161. Cada cristão é convidado a tender ao ideal de perfeição com todas as suas forças

Alocução de Pio XII, em 11 de dezembro de 1957, aos participantes do II Congresso Geral dos Estados de Perfeição:

"Importa primeiramente lembrar que o conceito de "perfeição' no sentido estrito não se identifica com o de "estado de perfeição', e que mesmo o transcende largamente. Efetivamente, pode-se encontrar a perfeição cristã heróica, a do Evangelho e da Cruz de Cristo, fora de qualquer "estado de perfeição'.

"Entendemos, pois, a tendência à perfeição como uma disposição habitual da alma cristã, pela qual, não satisfeita de cumprir os deveres que lhe incumbem sob pena de pecado, ela se entrega de todo a Deus para O amar e servir, e, com esse mesmo intuito, consagra-se ao serviço do próximo.

"A perfeição de toda atividade humana livre, como a de toda criatura racional, consiste na adesão voluntária a Deus. Por um lado, que decorre da própria condição da criatura, essa perfeição é obrigatória; devemos tender a ela, sob pena de faltarmos ao nosso fim último. Não temos aqui que lhe precisar os elementos. Entendemos unicamente de falar da tendência habitual e permanente que, excedendo tudo o que cai sob a ação da obrigação, toma o homem inteiro para o consagrar sem reserva ao serviço de Deus. Esta perfeição consiste por excelência na união a Deus, a qual se efetua pela caridade; realiza-se, por conseguinte, na caridade. Chamam-lhe também um holocausto perpétuo e universal de si mesmo, promovido por amor de Deus e a fim de Lhe manifestar deliberadamente esse amor.

"O ideal da perfeição cristã prende-se aos ensinamentos de Cristo, e em particular aos conselhos evangélicos. (...)

"Esse ideal, cada cristão é convidado a tender a ele com todas as suas forças, porém ele se realiza de maneira completa e mais segura nos três estados de perfeição segundo o modo descrito pelo Direito Canônico e pelas já citadas Constituições Apostólicas (Provida Mater, Sponsa Christi e Sedes Sapientiae)" (PIO XII, Discurso aos participantes do II Congresso Geral dos Estados de Perfeição, Documentos Pontifícios, n. 139, Vozes, Petrópolis, 1962, pp. 23-24).

162. Perfeição, estado de perfeição, estado jurídico de perfeição – Esclarecendo conceitos

De uma obra do Pe. Gerardo Escudero CMF:

"Perfeito se diz do ser ao qual não falta nada. Em consequência, perfeição de uma coisa, genericamente falando, não é senão a íntegra e total plenitude de todos os elementos que pertencem a sua natureza, segundo o fim a que seu autor a destina. Se algum desses elementos lhe falta, a coisa é ainda imperfeita.

"A perfeição cristã será, pois, a posse pelo homem de tudo aquilo que exige sua condição de homem cristão, ou o conjunto de notas e qualidades que o tornam apto para conseguir seu fim próprio e específico como tal: seu fim externo e social, que termina neste mundo e, sobretudo, o interno e individual, que se consuma depois na vida eterna e que consiste na união com Deus, último fim e, por conseguinte, última perfeição do homem. (...)

A perfeição consiste essencialmente na caridade, porque esta une o homem a Deus, seu fim último

"Em concreto, segundo o princípio de São Tomás (II-II, q. 184, a. 1, ad 2), conforme a interpretação da melhor doutrina, a perfeição consiste principal ou essencialmente na caridade, primariamente enquanto amor de Deus, secundariamente enquanto amor ao próximo, e integralmente no exercício de todas as virtudes sobrenaturais e dons do Espírito Santo.

"A perfeição consiste essencialmente na caridade, porque esta une o homem a Deus, seu fim último, adquirindo assim sua última perfeição, porque o que permanece na caridade permanece em Deus e Deus nele (I Jo. IV,16). As outras virtudes não se referem imediatamente ao fim, mas aos meios para chegar ao fim (São Tomás, II-II, q. 184, a. 1).

"Consequentemente,na prática, a perfeição consiste de si e essencialmente, nos preceitos; secundária e instrumentalmente, nos conselhos. É outro princípio de São Tomás, na realidade apenas um corolário do anterior. Consiste essencialmente nos preceitos ou, se se quiser, no preceito da caridade, ao qual se referem todos os demais, para afastar o que é contrário à caridade; ou, de outra maneira, no preceito da caridade para com Deus e para o próximo, em que se resumem todos os preceitos: "Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda tua alma, com todas tuas forças, com toda tua mente, e ao próximo como a ti mesmo'. Os conselhos são meios para chegar com mais rapidez e segurança ao perfeito cumprimento dos preceitos. (...)

Uma obrigação especial, de consciência, para tender à perfeição

"Estado de perfeição é um modo de viver permanente em ordem à caridade, seja enquanto se trata de adquiri-la, seja enquanto se trate de exercitar a já adquirida. (...)

"A perfeição da caridade é o fim a que tendem todos os cristãos e, em consequência, poder-se-ia dizer que todos os cristãos estão em estado de perfeição. Esta obrigação comum se funda no preceito da caridade. Mas há alguns para os quais o tender à perfeição constitui uma obrigação especial, pelo empenho especial que voluntariamente tomaram e pelos meios especiais com

que tratam de consegui-la. Só o estado cuja estabilidade se fundamenta numa obrigação especial é considerado e chamado estado de perfeição.

"O vínculo de vontade que dá ao estado de perfeição sua nota de permanência deve consistir numa obrigação de consciência. (...) Deve obrigar em relação a Deus, diretamente, por meio do voto ou consagração, ou indiretamente, por meio da promessa, juramento promissório, contrato com um homem, contanto que se faça em obséquio de Deus, e obrigue diante dEle, em consciência. (...)

Estado de perfeição individual, social e jurídico

"Um estado, uma condição estável de vida, pode ser algo puramente individual, e ainda puramente interno; diz-se, por exemplo, estado de graça da condição de vida de quem está em amizade com Deus. Mas pode, saindo do âmbito individual, ter alguma repercussão, merecer alguma consideração da sociedade. Temos então um estado social, que importa numa determinada posição da pessoa em seu relacionamento com os outros homens, e numa modificação de sua vida exterior aos olhos dos demais. O estado social pode manter-se na esfera do puramente social, ou ultrapassar o limite do jurídico, merecendo uma consideração especial perante a lei. Estado jurídico é, portanto, "a distinta consideração que merece, da lei, a pessoa, segundo as circunstâncias em que vive, especialmente no tocante aos direitos de que seja portador ou que possa exercer'.

"Relativamente ao estado de perfeição, observa-se que ao longo da História o estado de perfeição passou por três etapas: do individual passou ao social, e do social ao jurídico, chegando a constituir neste, um dos estados cardeais ou fundamentais no ordenamento das pessoas.

"Pode falar-se num estado de perfeição individual: o daquele que, no foro interno, sem repercussão no externo, contrai diante de Deus uma obrigação de dedicar-se permanentemente ou perpetuamente à aquisição da perfeição da caridade, observando os conselhos evangélicos. Esse estará num estado de perfeição, teologicamente falando. Seu estado é estado teológico de perfeição, mas não jurídico nem social.

"Pode-se praticar a perfeição em uma sociedade estabelecida com esse fim, cujos membros se propõem a obrigação primordial da prática dos conselhos para adquirir a perfeição da caridade; ter-se-ia a perfeição praticada socialmente: o estado de perfeição social (assim se praticava a perfeição evangélica antes que o estado religioso adquirisse a categoria de estado jurídico na Igreja).

Para que haja um estado jurídico de perfeição é necessária a aprovação da Igreja

"Para que tal condição de vida ultrapasse esses limites e tenha o efeito de modificar a capacidade jurídica das pessoas, deve preencher os requisitos determinados pela lei. Em concreto, para que exista o estado jurídico de perfeição, requer-se, além do que se pode considerar o elemento material – a obrigação moral induzida e estabilizada pelo voto, consagração etc., de tender à perfeição da caridade mediante os conselhos – o elemento formal, ou seja, a positiva aprovação da Igreja. (...)

"Atualmente existem na Igreja três estados jurídicos de perfeição, em cada um dos quais se verifica a essência interna ou substância moral da perfeição evangélica, entre os quais, não obstante, existe certa hierarquia, não só de honra, mas verdadeira e real.

Os três estados jurídicos de perfeição

"Esses três estados são: 1) o religioso – estado primário e sob todos os pontos de vista completo de perfeição – em que se encontram não só os elementos substanciais do estado de perfeição, mas também aqueles que uma tradição secular comprovou como de grande eficácia santificadora, e a Igreja reconheceu como integrantes, para que o estado de perfeição possa considerar-se completo e constitua um estado público nela. Tais elementos são principalmente a vida comum e os votos públicos. (...)

"O segundo estado jurídico é constituído pelas Sociedades dos que vivem em comum sem votos públicos. (...)

"O terceiro é formado pelos Institutos Seculares que 1>[...é coincidem com os primeiros na consagração total e permanente da vida à prática dos conselhos evangélicos como meio de conseguir a perfeição cristã, mas diferem deles profundamente no fato de que a perfeição da vida cristã se pratica no século" (Pe. GERARDO ESCUDERO CMF, Los Institutos Seculares, su naturaleza y su derecho, Editorial Coculsa, Madrid, 1954, pp. 44 a 46 e 48 a 54 / Imprímase: Juan, Obispo Aux. y Vic. Gen., Madrid, 17-7-1954).

163. "Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" – um ideal para todos os católicos

Do já referido Catecismo Católico Popular, de Francisco Spirago:

"Um bom arquiteto não deixa por concluir um edifício começado; se empreendeu construir uma casa, não toma um momento de repouso, enquanto a não terminar; nenhum pintor entregará um retrato, antes de ter dado os últimos retoques nas feições com muita precisão.

"O cristão deve fazer o mesmo: se começou a trabalhar para a salvação da sua alma, e se se encontra em estado de graça, deve esforçar-se por acabar o edifício da virtude e por se tornar uma imagem muito fiel de Deus. Melhorar-nos cada dia, tal deve ser o fim da nossa vida sobre a terra.

Um dever que está incluído no Mandamento do amor a Deus

"Devemos esforçar-nos por alcançar a perfeição cristã, porque Deus o ordena, e porque sem isso voltaríamos para trás.

"O dever de tender para a perfeição está já incluído no mandamento do amor de Deus, porque nele Deus exige que O amemos o mais que pudermos. Isto não significará que devemos sempre avançar no caminho do bem? Aquele que é justo torne-se mais justo; aquele que é santo faça-se mais santo (Ap. XXII, 11), segundo esta ordem de Jesus Cristo: "sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito' (Mt. V, 48).

"Deus não quer outra coisa senão que sejamos santos (I Tess. IV). Aquele que não aspira à perfeição cristã corre risco de se perder eternamente.

"Quem não avança, recua", "parar é recuar", dizem os Santos

"Vemos que todos os animais, as árvores e as plantas e o próprio homem, desde que não crescem e não aumentam, decrescem e vão perecendo.

" "O navio que não sobe contra a corrente é arrastado por ela' (São Gregório Magno). "Quem não avança, recua: entre estas duas coisas não há meio termo no caminho da virtude' (São Bernardo). "Parar é recuar, se portanto estás satisfeito contigo mesmo e dizes: "Agora basta' estás perdido' (Santo Agostinho). "Devemos mesmo pôr a mira no mais alto grau de santidade, como os comerciantes que pedem primeiro mais que o valor da mercadoria, ou como o caçador que desejando matar um pássaro a vôo aponta sempre um pouco mais alto' (Santo Afonso)" (FRANCISCO SPIRAGO, Catecismo Católico Popular, União Gráfica, Lisboa, 1951, 5ª. ed., vol. II, pp. 468-469 / Imprimatur: Olissipone, 13-2 -1951, Em., Card. Patriarcha).

164. "Todos nós podemos, e todos nós devemos ser santos"

De uma obra de São Pedro Julião Eymard (1811-1868):

"Não é somente à nossa veneração, mas ainda mais à nossa imitação, que a Igreja propõe os Santos.

"Queremos ser o que eles são. Portanto, devemos fazer o que fizeram. Se queremos participar de sua felicidade, devemos viver como eles.

"Ora, nós devemos e podemos ser santos. Devemos ser santos: porque aspiramos à mesma recompensa que a dos santos; estamos submetidos à mesma lei; seguimos o mesmo Chefe.

"Se eu vos perguntasse: aonde quereis ir, ao céu ou ao inferno? Que me responderíeis, almas piedosas, bravos cristãos, aqui numerosos? Ao Céu, ao Céu! E se houvesse aqui um só pecador, ainda covarde demais para se converter, que responderia ele também? Ao Céu!

"Sim, todos ao Céu. Eu vo-lo desejo, eu o espero, mas há uma condição: é preciso ser santo.

"O Céu é uma cidade fortificada. Não o tomam de assalto senão os que fazem violências a si próprios.

"O Céu é uma messe. Mas o homem não recolhe senão o que semeou.

"O Céu é um repouso eterno. Dele não gozam senão os que trabalharam e sofreram até o fim.

"Todas essas figuras dizem claramente que é necessária a santidade para entrar no Céu. (...)

"Podemos ser santos, porque:

"1) os santos eram da mesma natureza que nós, com suas más tendências, com as mesmas tentações do demônio e perigos do mundo;

"2) muitas vezes tiveram mais dificuldades a vencer que nós;

"3) nós temos os mesmos meios e socorros sobrenaturais de que se utilizaram para chegar à santidade" (São PEDRO JULIÃO EYMARD, A Santíssima Eucaristia, Vozes, Petrópolis, 1955, vol. V, pp. 235 a 237? Imprimatur: Por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis, Frei Lauro Ostermann OFM, Petrópolis, 5-4-1955).

165. Ninguém pode conservar por tempo notável o estado de graça sem se esforçar por progredir

Do Compêndio de Teologia Ascética e Mística, do Pe. A. Tanquerey:

"Exposta a natureza da vida cristã e a sua perfeição, resta-nos examinar se há para nós verdadeira obrigação de progredir nesta vida, ou se não basta guardá-la preciosamente como se guarda um tesouro. Para responder com mais precisão, examinaremos esta questão relativamente a três categorias de pessoas: 1ª.) os simples fiéis ou cristãos; 2ª.) os Religiosos; 3ª.) os Sacerdotes. (...)

"Art. I - Da obrigação que têm os cristãos de tender à perfeição – (...) Em matéria tão delicada importa usar da maior exatidão possível. É certo que é necessário e suficiente morrer em estado de graça, para ser salvo; parece, pois, que não haverá para os fiéis outra obrigação estrita mais que a de conservar o estado de graça. Mas, precisamente, a questão é saber se pode alguém conservar por tempo notável o estado de graça, sem se esforçar para fazer progressos.

"Ora, a autoridade e a razão iluminada pela fé mostram-nos que, no estado de natureza decaída, ninguém pode permanecer muito tempo no estado de graça, sem fazer esforços para progredir na vida espiritual, e praticar de vez em quando alguns dos conselhos evangélicos.

Os argumentos de Autoridade

"1) A Sagrada Escritura não trata diretamente esta questão: depois de assentado o princípio geral da distinção entre os preceitos e os conselhos, não diz geralmente o que, nas exortações de Nosso Senhor Jesus Cristo, é obrigatório ou não. Mas insiste tanto na santidade que convém aos cristãos, põe-nos diante dos olhos um ideal tão alto de perfeição, prega tão abertamente a todos a necessidade de abnegação e da caridade, elementos essenciais da perfeição, que, para qualquer espírito imparcial, se infere a convicção de que, para salvar a alma, é necessário, em certos momentos fazer mais do que o estritamente mandado, e, por consequência, esforçar-se por progredir.

No Evangelho, o próprio Pai celeste nos é apresentado como ideal de santidade

"Assim, Nosso Senhor apresenta-nos como ideal de santidade a mesma perfeição do nosso Pai celestial: "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito' (Mt. V, 48); assim pois, todos os que têm a Deus por Pai, devem-se aproximar da perfeição divina; o que não se pode evidentemente fazer sem algum progresso. E, em última análise, todo o sermão do monte não é mais que o comentário, o desenvolvimento deste ideal.

"O caminho para isso é o da abnegação, da imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo e do amor de Deus: "Se alguém vem a mim, e não odeia (isto é, não sacrifica) o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos e até mesmo a sua própria vida, não pode ser meu discípulo' (Lc. XIV, 26-27; cfr. Mt. X, 37-38).

"É necessário, pois, em certos casos, preferir Deus e a sua vontade ao amor de seus pais, de sua mulher, de seus filhos, de sua própria vida e sacrificar tudo, para seguir a Jesus: o que supõe coragem heróica, que não se possuirá no momento crítico, se a alma se não foi preparando para isso por meio de sacrifícios de superrogação.

"Não há dúvida que este caminho é estreito e dificultoso, e muito poucos o seguem; mas Jesus quer que se façam sérios esforços para entrar pela porta estreita "Contendite intrare per angustam portam' (Lc. XIII, 24; Mt. VII, 13-14). Não será isto reclamar que tendamos à perfeição?

A santidade, meta sempre relembrada pelos Apóstolos

"Os Apóstolos não usam de linguagem diversa; São Paulo lembra muitas vezes aos fiéis que foram escolhidos para serem santos. (...) São Pedro quer também que todos os seus discípulos sejam santos como Aquele que os chamou à salvação. (...) São João, no último capítulo do Apocalipse, convida os justos a não cessarem de praticar a justiça e os santos a santificarem-se ainda mais: "Qui iustus est, iustificetur adhuc, et sanctus sanctificetur adhuc' (Apoc. XXII, 11).

Segundo o ensinamento de Nosso Senhor e de seus discípulos, a vida cristã é um combate

"É isto mesmo o que se infere ainda da natureza da vida cristã que, no dizer de Nosso Senhor Jesus Cristo e de seus discípulos, é um combate, em que a vigilância e a oração, a mortificação e o exercício positivo das virtudes são necessários para alcançar a vitória: "Vigiai e orai, para não entrardes em tentação' (Mt. XXVI, 41)...

"Tendo de lutar não somente contra a carne e o sangue, isto é, contra a tríplice concupiscência, senão ainda contra os demônios que a atiçam em nós, necessitamos de nos armar espiritualmente e combater com valor.

Não podemos ficar só na defensiva, é preciso recorrer aos contra-ataques

"Ora, numa luta prolongada, a derrota é quase fatal para quem se conserva unicamente na defensiva; é mister, pois, recorrer aos contra-ataques, isto é, à prática das virtudes, à vigilância, à mortificação, ao espírito de fé e confiança. É esta exatamente a conclusão que tira São Paulo, quando, depois de haver descrito a luta que temos de sustentar, declara que devemos estar armados dos pés à cabeça, como o soldado romano, "os rins cingidos da verdade; revestidos da couraça da justiça, e as sandálias nos pés, prontos a anunciar o Evangelho da paz, com o escudo da fé, o capacete da salvação e a espada do Espírito' (Eph. VI, 14 a 17)... E com isto nos mostra que, para triunfar dos nossos adversários, é necessário fazer mais do que o estritamente prescrito.

No caminho da salvação não se pode ficar estacionado

"A Tradição confirma esta doutrina. – Quando os Santos Padres querem insistir sobre a necessidade da perfeição para todos, dizem-nos que no caminho que conduz a Deus e à salvação, não se pode ficar estacionário: é forçoso avançar ou recuar: "in via Dei non progredi, regredi est'.

"Assim, Santo Agostinho, fazendo notar que a caridade é ativa, adverte-nos que não devemos parar no caminho, precisamente porque parar é recuar: "retro redit qui ad ea revolvitur unde iam recesserat' (Sermo CLXIX, n. 18), e o seu adversário, Pelágio, admitia o mesmo princípio; tal é a sua evidência!

"E o último dos Padres, São Bernardo, expõe esta doutrina de forma empolgante: "Não queres progredir? – Não. – Queres então recuar? – De modo nenhum. – Que queres então? – Quero viver de tal maneira que fique no ponto aonde cheguei... – Queres o impossível, pois que neste mundo nada permanece no mesmo estado...' (Epist. CCLIV ad abbatem Suarinum, n. 4).

"E noutra parte acrescenta: "É absolutamente necessário subir ou descer; se se tenta parar, cai-se infalivelmente' (Epist. XCI ad abbates Sucessione congregatos, n. 3).

O ensinamento do Papa Pio XI

"E assim, o N.S.P. o Papa Pio XI, na sua Encíclica de 26 de janeiro de 1932, sobre São Francisco de Sales, declara peremptoriamente que todos os cristãos, sem exceção, têm obrigação de tender à santidade (A.A.S. XV, 50).

Os argumentos de razão

"A razão fundamental, pela qual nos é necessário tender à perfeição, é sem dúvida a que nos dão os Santos Padres.

Se deixamos de fazer esforços por avançar... de capitulação em capitulação caímos no pecado mortal

"1) Toda a vida, sendo como é um movimento, é essencialmente progressiva, neste sentido que, quando cessa de crescer, começa a enfraquecer. E a razão disto é que há, em todo ser vivo, forças de desagregação que, se não são neutralizadas, acabam por produzir a doença e a morte.

"O mesmo passa em nossa vida espiritual: ao lado das tendências que nos levam para o bem, há outras, muito ativas, que nos arrastam para o mal; para as combater, o único meio eficaz é aumentar em nós as forças vivas, isto é, o amor de Deus e as virtudes cristãs; então as tendências más vão enfraquecendo. Mas, se deixamos de fazer esforços por avançar, os nossos vícios acordam, retomam forças, atacam-nos com mais viveza e frequência; e, se não despertamos do nosso torpor chega o momento em que, de capitulação em capitulação, caímos no pecado mortal (é esta a doutrina comum dos teólogos). – Ver o resumo que dela faz SUÃREZ, De Religione, t. IV, L. I, c. 4, n. 12. É esta, infelizmente, a história de muitas almas, como bem o sabem os diretores experimentados.

"Uma comparação no-lo fará compreender. Para alcançarmos a salvação, temos que vencer uma corrente mais ou menos violenta, a das nossas paixões desordenadas, que nos levam para o mal. Enquanto fizermos esforço para impelir a nossa barca para a frente, conseguiremos subir a corrente ou ao menos contrabalançá-la; no dia em que cessarmos de remar, seremos arrastados pela corrente, e recuaremos para o Oceano, onde nos esperam as tempestades, isto é, as tentações graves e talvez quedas lamentáveis.

Ninguém é capaz de praticar atos heróicos se não se foi preparando antecipadamente para isso

"2) Há preceitos graves que não se podem observar em certos momentos senão por meio de atos heróicos. Ora, em conformidade com as leis psicológicas, ninguém é geralmente capaz de praticar atos heróicos, se não se foi antecipadamente preparando para isso com alguns sacrifícios, ou, por outros termos, com atos de mortificação. (...)

"Tomem-se agora as leis da justiça nas transações financeiras, comerciais e industriais, e reflita-se no sem-número de ocasiões, que se apresentam, de a violar, na dificuldade de praticar a honradez perfeita num meio em que a concorrência e a cobiça fazem subir os preços além dos limites permitidos; e ver-se-á que, para um homem permanecer simplesmente honrado, precisa duma soma de esforços e de abnegação mais que ordinária. Será porventura capaz desses esforços quem se acostumou a não respeitar mais que as prescrições graves, quem se permitiu com a sua consciência pactuações, ao princípio leves, depois mais sérias e por fim perturbadoras?

Uma conclusão imperiosa: para todos os cristãos é necessário aspirar a uma certa perfeição

"Para evitar esse perigo, não será necessário fazer um pouco mais do que é estritamente mandado, a fim de que a vontade, fortificada por estes atos generosos, tenha vigor suficiente para não se deixar arrastar a atos de injustiça?

"Verifica-se, pois, de todos os lados, esta lei moral que para não cair em pecado, é necessário evitar o perigo por meio de atos generosos, que não são diretamente objeto de preceito. Por outros termos, para acertar no alvo, é mister fazer a pontaria mais alto; e, para não perder a graça, é necessário fortificar a vontade contra as tentações perigosas por meio de obras de superrogação, numa palavra, aspirar a uma certa perfeição. (...)

Quanto aos Religiosos, é por grave dever de estado que precisam tender à perfeição

"Art. II - Da obrigação que têm os Religiosos de tender à perfeição – Entre os cristãos, há quem, movido pelo desejo de se dar mais perfeitamente a Deus e assegurar mais eficazmente a salvação da sua alma, entra no estado religioso. Ora, este estado é, segundo o Código de Direito Canônico (Can. 487), "um modo estável de viver em comum, em que os fiéis, além dos preceitos gerais, se obrigam a guardar também os conselhos evangélicos pelos votos de obediência, castidade e pobreza'.

"Que os Religiosos sejam obrigados, em virtude do seu estado, a tender à perfeição, é o que ensinam unanimemente os Teólogos e o que relembrou o Código, declarando que "todos e cada um dos Religiosos, tanto superiores como súditos devem... tender à perfeição do seu estado' (Can. 593).

"Esta obrigação é tão grave que Santo Afonso de Ligório não hesita em afirmar que "peca mortalmente um religioso que toma resolução firme de não tender à perfeição, ou de não fazer dela caso nenhum' (Theol. moralis, L. IV, n. 18). É que assim falta gravemente ao seu dever de estado, que é precisamente tender à perfeição. É até mesmo por este motivo que o estado religioso se chama um estado de perfeição; isto é, um estado reconhecido pelo Direito Canônico como situação estável em que um se obriga a aspirar à perfeição. Não é, pois, necessário ter adquirido a perfeição, antes de entrar na religião; mas entra-se precisamente para a alcançar, como observa Santo Tomás (Sum. Theol. II-II, q. 186, a. 1, ad 3)" (Pe. A. TANQUEREY, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1955, 5ª. ed., pp. 200 a 206 e 209 / Pode imprimir-se, Porto, 11-5-1953, M. Pereira Lopes, Vig. Ger.).

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