Folha de S. Paulo,
        2 de 
        novembro de 1969
        
        
        Ciclamatos de D. Helder: ponto final
        
        
        Escreve-me um leitor: "O sr. deve estar bem desapontado. Pouco depois de 
        escrito o artigo em que o sr. proclama a necessidade de negociações 
        oficiais e públicas entre o Brasil e o Vaticano sobre o problema do 
        esquerdismo católico, e afirma a inocuidade das negociações de bastidor 
        sobre esta matéria, leio em um conceituado matutino notícia da maior 
        importância: segundo declarações de D. Avelar Brandão, arcebispo de 
        Teresina, feitas à imprensa de Roma, o Vaticano teria proibido a D. 
        Helder que fizesse, daqui por diante, pronunciamentos fora de sua 
        diocese. Vê o sr., Dr. Plinio, que a diplomacia de bastidores pode dar — 
        e deu, nesta matéria — um fruto estupendo. Assim, fica provado que as 
        medidas discretas e lentas podem render muito mais do que a atuação 
        drástica e pública que o sr. propugna. Estou certo, desde já, de que no 
        seu próximo artigo o sr. terá a probidade de se retratar".
        
        
        Parece-me que é o caso de pôr o ponto final no assunto a que já dediquei 
        dois artigos. Mas, com seu desafio, o meu missivista de tal maneira 
        abriu o flanco, que não resisto à tentação de lhe dar uma estocada. O 
        ponto final fica, pois, no artigo de hoje. E um ponto feito com o 
        florete e não com a caneta. Mas a culpa não é minha...
        
        * * *
        
        Assim 
        pois, o meu leitor, que gosta de negociações de bastidor, de mim não 
        quer uma resposta em carta pessoal e direta. Empraza-me a que me defenda 
        pela imprensa... isto é, fora dos bastidores. Pois será servido.
        
        Pense 
        o que pensar o meu leitor acerca da Santa Sé (pelos ares, creio que ele 
        é da corrente "anti-Cúria Romana" do Cardeal Suenens), ninguém pode 
        negar a grande sagacidade, a experiência, o tino tradicional que durante 
        XX séculos consagraram as decisões do Vaticano. Ora, esta medida 
        relativa a D. Helder é tão contra-indicada, que só negociações 
        perfeitamente canhestras poderão ter conduzido a ela.
        
        Com 
        efeito, o campo de ação de D. Helder, como de todo bispo, inclui — em 
        nossos dias de comunicações super-rápidas — três dimensões: sua diocese, 
        seu país e o mundo. Como é natural, as melhores possibilidades da 
        atuação de um bispo estão em sua diocese: ali ele é o doutor, o guia e o 
        pontífice de quem a vida religiosa depende. Já nas outras dioceses de 
        seu país, a voz dele repercute com menor nitidez, mesclada como e com a 
        de outros bispos de opiniões possivelmente discrepantes. No mundo, 
        então, a palavra de um bispo facilmente se perde no "brouhaha" do caos 
        contemporâneo. E isto é precisamente assim, mesmo quando este bispo 
        dispõe — como é o caso de D. Helder — de uma propaganda bem maior que a 
        do falecido Getúlio Vargas. Com efeito, o que significa para um católico 
        de Oslo, de Nova Delhi ou de Vigo, que D. Helder diga alguma 
        barbaridade, neste vozerio mundial de cardeais que protestam, de padres 
        que contestam, de freiras e bispos que se casam, de teólogos que pregam 
        o ateísmo etc.?
        
        Não 
        nos iludamos. Não é nessa dimensão que os pronunciamentos de D. Helder 
        atingem o auge de sua nocividade. É no Brasil. É, sobretudo, no Recife e 
        em Olinda. Em suma, aquela decisão da Santa Sé anunciada por D. Avelar 
        Brandão lhe terá proibido o menos ruim e lhe terá permitido o pior.
        
        
        Acresce que o tempo das muralhas chinesas de há muito se acabou. Não há 
        uma muralha a circunscrever a diocese de D. Helder do resto do Brasil. É 
        só ele dizer algo em Recife, que uma propaganda célere enche o país de 
        ecos do que ele sentenciou. E quando não o faz a propaganda escrita, 
        fá-lo a propaganda oral desenvolvida pelos grupos de prosélitos que ele 
        tem em tantos lugares. Ou pela atuação de seus profetas itinerantes, 
        como o intocável agente subversivo, Pe. Comblin. Assim é o Brasil — 
        precisamente o Brasil, que eu quisera imunizar da atuação da esquerda 
        católica — que fica com o campo livre para a atuação do arcebispo 
        vermelho!
        
        E meu 
        leitor chama a isto o resultado de uma negociação bem feita?
        
        * * *
        
        
        Contudo, o que mais me espanta na decisão que enche de gozo o meu 
        leitor, é o que ela tem de fundamentalmente contraditório.
        
        Se D. 
        Helder é o único bispo do Brasil que não pode fazer pronunciamentos fora 
        de sua diocese, é porque estes pronunciamentos são nocivos. Senão a 
        proibição não teria sentido.
        
        Dada 
        essa nocividade, como explicar que D. Helder continue com o direito de 
        prejudicar com eles sua arquidiocese, isto é, precisamente a parte do 
        globo onde mais funda é — na ordem normal das coisas — a sua influência?
        
        * * *
        
        Para 
        tornar mais sensível a solidez de minha argumentação, pense-se um 
        instante nos ciclamatos. Imagine-se que um governo proibisse a 
        exportação deles. Que proibisse o consumo deles em todo o país. Mas que 
        autorizasse a sua livre circulação na cidade em que está a fábrica que 
        os produz. Pouco importa a saúde dos infelizes habitantes desse local. 
        Que morram! O país e o mundo estarão a salvo. O que pensar de um governo 
        que assim fizesse?
        
        Pois 
        este disparate estaria sendo praticado em detrimento da gloriosa 
        arquidiocese de Olinda e Recife pela Santa Sé. E isto, não com prejuízo 
        da saúde do corpo (e o mal não seria o mais trágico, pois certo escritor 
        francês conceituou a saúde como um estado precário que termina sempre 
        mal), mas com enorme risco da saúde da alma, ou seja, do destino eterno 
        de toda uma população.
        
        * * *
        
        Mais 
        ainda. Os ciclamatos não foram apenas proibidos. Foram clara e 
        oficialmente desautorados e vão sendo recolhidos. Com as sentenças de d. 
         Helder, não: nem ficam clara e oficialmente desautorados, nem se 
        recolhem os livros ou outros impressos que até o momento se difundem. De 
        sorte que a situação, a respeito, é a mesma que se todos os ciclamatos 
        existentes no mercado fossem tranqüilamente absorvidos, até se 
        esgotarem. O câncer que se propague e pulule até final absorção dos 
        ciclamatos: que importa?
        
        * * *
        
        Mas, 
        redargüirá meu missivista, a proibição enunciada pelo Vaticano através 
        dos lábios autorizados de D. Avelar Brandão não basta para neutralizar 
        os ciclamatos ideológicos de D. Helder?
        
        
        Respondo: não. A Igreja é uma sociedade perfeita, provida de meios 
        adequados para resolver todas as situações. A proibição de que D. Helder 
        teria sido objeto só faz fé oficial se publicada na "Acta Apostolicae 
        Sedis", o órgão oficial da Santa Sé. Ou, digamos, no "Osservatore 
        Romano", órgão oficioso do Vaticano.
        
        A 
        simples declaração extra-oficial de um bispo, feita a jornais 
        extra-oficiais, nesta matéria nada pode — juridicamente — contra outro 
        bispo.
        
        
        Acresce no caso, que li a entrevista de D. Avelar Brandão, a qual me 
        pareceu perfeitamente inconcludente a respeito de D. Helder...
        
        * * *
        
        
        Termino.
        
        Ou as 
        declarações de D. Avelar Brandão têm o sentido que lhes atribui meu 
        missivista, ou não têm.
        
        Se 
        têm, são perfeitamente inoperantes. E se fossem operantes seriam 
        lamentáveis. Mostrariam a que resultados exorbitantes podem chegar as 
        negociações de bastidores.
        
        Se 
        não têm o sentido que meu missivista lhes atribui, então não houve 
        negociações.
        
        Em um 
        caso ou no outro, meu missivista não tem razão.
        
        E ponto final.