Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 5 de abril de 1970

Os ene-a-ene-é

Há na opinião pública brasileira uma extensa faixa designada - na linguagem quotidiana dos jovens da TFP - com a sigla N-A-N-E. Nestas faixas não estão incluídos propriamente os sapos, isto é, os comunistas e socialistas endinheirados, que usam a máscara progressista ou a demo-cristã. Trata-se de outro gênero de pessoas. Explico-me.

A Revolução Francesa deu causa a que grande número de pessoas, inconformadas com a política entreguista de Luís XVI e as violências dos republicanos, emigrasse para outros países. Restaurado os Bourbons em 1814, esses emigrados voltaram à pátria trazendo exatamente a mesma mentalidade com que tinham deixado havia 25 anos. Deles diz Talleyrand: "ils n’ont rien appris ni rien oublié" (nada aprenderam e nada esqueceram). Não é minha intenção pronunciar-me aqui sobre a objetividade dessa frase amarga. O certo é que ela veio à mente de nossos militantes a propósito de um não pequeno número de patrícios nossos, que julgam os fatos de hoje exatamente com os critérios em voga, há 25 anos atrás. Também desses se pode dizer - e quão adequadamente - que "nada aprenderam e nada esqueceram". Não espanta. pois, que nossos vivazes militantes os tenham alcunhado jocosamente de "N-A-N-E", compondo a sigla com inicial de cada uma das palavras em que se transpõe para o português o dito de Talleyrand.

Quais os sintomas de que alguém pertence à morosa categoria dos N-A-N-E? Dou um, a titulo de exemplo. É chocar-se com a seguinte descrição panorâmica do mundo atual: hoje em dia, os dois pólos de pensamento e da ação dos homens são, de um lado a Religião Católica (entendida sem salpicos nem mesclas de progressismo ou de esquerdismo) e de outro lado o comunismo. Tudo o mais não é senão posição intermediária, efêmera, transitória. Ora, duas crises ideológicas imensas - e não sem mutuas afinidades - lavram no interior de cada um destes pólos. Em conseqüência, nada há que possa influenciar mais a fundo o curso dos acontecimentos atuais do que o desenrolar destas crises. É sobretudo neste ponto, isto é, nas lutas internas entre católicos de um lado, e entre comunistas de outro lado, que se está decidindo o futuro do mundo. Esta dupla crise decidirá, entre outras questões, se realmente deve haver uma luta entre católicos e comunistas.

Para um homem atualizado, esta perspectiva será persuasiva ou não: em qualquer caso, não o chocará que alguém pense assim. Para um N-A-N-E, que veja o assunto com os prismas de há 25 anos atrás - e que considere a cisão entre os católicos uma briguinha de sacristia, e a cisão entre os comunistas uma querela de panelinha política - o panorama que descrevi é chocante.

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Um N-A-N-E "a fortiori" ficará sem entender se eu afirmar que a crise interna da Igreja é incomparavelmente mais importante do que a do campo comunista. Entretanto é assim.

Na Igreja, com efeito, está a saúde e a luz do mundo. Todas as forças do mal são vencíveis desde que a Igreja esteja em seu pleno vigor. Prova-o o exemplo imortal dos primeiros cristãos. Pelo contrário, na medida em que os erros, a corrupção e a infidelidade minem as fileiras da Igreja, as forças do mal se tornam vigorosas, avançam e arrastam o mundo rumo a uma catástrofe apocalíptica.

Isto tem seus corolários.

Se a Igreja estiver florescente e o comunismo também, este é necessariamente, e desde já, o derrotado. É questão de tempo.

Se a Igreja estiver débil, e o comunismo também, ou o comunismo acabará criando forças ou o gênero humano gerará algum monstro novo que se atire sobre ele. O N-A-N-E nega tudo isto.

Parece difícil formular mais pontiagudamente o teste para a detectação do N-A-N-E.

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Como demonstrar que o N-A-N-E não tem razão? É simples. Pelos menos se o N-A-N-E for católico.

O código perfeito da conduta humana está no dez mandamentos da lei de Deus. Se todos os homens seguissem integralmente esta lei, todos os problemas ideológicos e morais da humanidade se resolveriam a fundo. Se pelo contrário, todos os homens violassem integralmente essa lei, a humanidade se autodestruiria em tempo não muito longo.

Isto no plano doutrinário e moral. No plano técnico, o reflexo destes princípios é possante. Um homem que observa integralmente a lei de Deus emprega "ipso facto" todos os seus recursos no trabalho que lhe compete realizar. E, se tal homem for um técnico, produzirá tanto mais no seu campo, quanto mais fiel for à lei de Deus. De onde se segue que a fidelidade à lei trás consigo a plenitude do êxito no terreno técnico, como aliás em todos os outros terrenos da atividade humana.

A contrário "sensu", o homem mais dotado que se possa imaginar, se violar integralmente a lei de Deus, não produzirá coisa alguma.

Fazendo estas afirmações não digo - é claro - que basta o homem ser fiel à lei para ser um gênio. A observância da lei não dá genialidade a ninguém.

O que digo, isto sim, é que, gênio ou não gênio, qualquer homem tirará tanto maior partido da sua capacidade quanto mais fiel for à lei.

Seria salgado, mas seria verdadeiro acrescentar que, para os homens, há muito mais que recear do que esperar dos gênios na precisa medida em que estes se afastam da lei de Deus. E por isto aqui fica a afirmação.

Isto é que há a dizer sobre a lei. Agora uma palavra sobre a graça e a Igreja.

Segundo a doutrina católica, o homem não consegue, por suas meras forças, praticar duravelmente todos os mandamentos. Para isto é-lhe preciso o auxílio de um dom criado e sobrenatural de Deus, que é a graça. E esse dom, é por sua união com a Igreja que - segundo o plano da Providência - o homem deve receber.

Além disto, e sempre por sua miséria, a humanidade não é capaz, só por suas forças, de interpretar e aplicar aos casos concretos, de modo sempre reto, a lei de Deus.

Por isto instituiu Jesus Cristo uma Mestra infalível para ensinar a humanidade a este respeito.

Fonte de santificação pela graça, Mestra infalível, a Igreja é também Pastora. A Ela cabe governar e dirigir os homens no cumprimento da lei, para a conquista da vida eterna.

Assim, é na medida em que a Igreja é fiel a si mesma, e cumpre mais ou menos perfeitamente sua missão, que a humanidade sobe e desce na prática dos mandamentos. E com este subir e descer, sobe e desce tudo quanto fazem, em qualquer terreno, os homens.

O campo decisivo do que se passa no mundo é pois a vida interna da Igreja.

Ósculo dos pés na Basílica de São Pedro em Roma - HAUDEBOURT-LESCOT, Antoinette Cécile Hortense, séc. XIX, Museu Nacional do Castelo de Fontainebleau

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Não é N-A-N-E quem ignora o que acabo de escrever. Ele é apenas uma pessoa incompletamente informada.

É N-A-N-E, isto sim, quem lendo o artigo, dele discorda porque participa do laicismo em voga há 25 anos, o qual, por sistema, empurra para a quinta plana os assuntos religiosos.

Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (* 2-2-1754 + 17-5-1838), nascido de uma família da mais alta nobreza francesa. Acima, Talleyrand por François Gérard, 1808


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