Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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15 de novembro de 1970

Sim, só por meio de uma Cruzada!

Passo a passo, o Chile de Allende vai descendo rumo aos baixios obscuros e gélidos do regime comunista. Empossado o presidente marxista, cada dia registra alguma nova medida neste sentido. Cito a esmo. O Ministro do Exterior do Chile anunciou o propósito do governo, de estabelecer relações diplomáticas com todos os Estados comunistas. Por ocasião do Aniversário da implantação do regime soviético, o novo presidente e seu chanceler estiveram na embaixada russa, em visita de congratulação e regozijo. Inaugurou-se, em Santiago, um monumento em honra de "Che Guevara": sobre um pedestal, o guerrilheiro comunista segura um fuzil; na base figuram medalhões comemorando outros "heróis" da guerrilha, entre os quais Marighela. Foi anunciada a nacionalização (leia-se confisco) de todos os bancos privados.

Ao mesmo tempo, Allende vai instituindo um sistema próprio para impor aos chilenos a aceitação passiva destas medidas e de outras que venham. O primeiro elemento do sistema é o terror. Anunciam-se greves de operários. O governo concedeu anistia a todos os agitadores e terroristas presos por ordem de Frei. Está sendo organizada uma superpolícia política, destinada à sustentação do governo marxista.

O outro elemento do sistema é o silêncio. Nas empresas jornalísticas, vai fervendo a agitação em prol da participação dos trabalhadores na direção. Ou seja, em prol da entrega virtual dos jornais e revistas a sindicatos controlados por allendistas. O presidente marxista terá, assim, toda a imprensa em mãos. E seus adversários políticos se verão reduzidos ao silêncio.

No meio de tudo isto, o cardeal Silva Henriquez continua alegre. E — com que dor filialmente reverente e consternada o digo — Paulo VI, por sua vez, continua presenciando, imperturbável, o desatar da tragédia.

Estes os fatos, evidentes e incontestáveis.

* * *

- Mas, dirá talvez alguém, e o que pode fazer o cardeal Silva Henriquez? O que pode fazer Paulo VI? Varre o mundo um sopro de descontentamento. A massa que, exige reformas. É impossível recusá-las. Para salvar a democracia do assalto da violência, é preciso que a Igreja se entenda bem com os líderes da luta pela emancipação das massas. E é por meio de silêncios prudentes e de concessões oportunas, que esta política sábia deve ser levada a cabo. — Assim, são Paulo VI e o cardeal Silva Henriquez, que estão com a verdadeira estratégia.

A isto, eu responderia, entre outras coisas, que defender os direitos das multidões absolutamente não é implantar o comunismo. Diga-nos os infelizes "voluntários" do corte de cana em Cuba. Devo acrescentar que não é por meio de concessões que se arrastam as multidões.

Francisco Campos [Francisco Luís da Silva Campos, 1891-1968, n.d.c.], como homem público, foi discutido. E não há homem público que não o seja. Seus méritos de intelectual, entretanto, sempre pairaram acima de qualquer dúvida.

Por uma razão toda fortuita, caiu-me nas mãos, há dias, um opúsculo seu. Intitula-se "Atualidade de D. Quixote". E ali pude inteirar-me não só de como esse espírito de escol sentia os anelos da massa, como também do que ele esperava do Chefe da Cristandade para a salvação da democracia.

A meu ver, sobrestima ele o papel da emoção. E restringe o papel do Papa na sociedade temporal, quando vê nele um mero salvador da democracia. O Papa é, pela natureza de seu múnus, o sustentáculo, o mestre, o guia, de algo de mais alto e profundamente sacral, que é a civilização cristã. Sem embargo, é impossível ler as reflexões de Francisco Campos sem sentir quanto nelas há de verdadeiro, de profundo, de empolgante. Passo-lhe a palavra:

"A vida antiga era um cerimonial; obedecia a um rito, a uma ordem, ao ritmo de um amplo e compassado movimento comparável ao balanço do mar ou à procissão dos períodos, das estações ou fases da natureza.

"O cerimonial desapareceu da vida de hoje e com ele as largas ondulações do pensamento e da emoção, o compasso de espera que nos permitia, com apoio no passado, saltar sobre o presente, reunindo num só feixe as interferências dos três tempos de que se compõe a vida humana (...).

"Com o cerimonial desaparece, igualmente, aquele compasso de dança das idades, cada qual com a sua medida própria ou seu número de ouro (...). Hoje, as idades se misturam, cada qual envergonhada de si mesma, e não é raro que umas usem as medidas, números, os ritmos, os balanços ou os passos da dança de outras idades, passadas ou futuras."

"(...) Onde empregar, porém, o potencial de emoção do homem de hoje, o qual não é menor do que o do homem de ontem? Onde, a não ser na passividade da posição de espectador? Nos cinemas, nas arquibancadas dos estádios, nos comícios políticos, nos auditórios de discursos e conferências. Esses empregos, ao invés de aliviarem o estado de tensão das emoções, agravam a instabilidade do seu equilíbrio. Eles se limitam a provocar começos de movimento, logo inibidos no seu estado nascente, acentuando o sentimento de frustração, que é o estado habitual do homem contemporâneo. Não encontrando pólos adequados por onde efetuar a descarga de seu potencial emotivo, este flui naturalmente" para "a agitação política, a sinistra mascarada das revoluções, os horrores da guerra, o crime, a literatura e a arte hermética dos intelectuais (...)".

O ilustre brasileiro conclui, então, que só uma cruzada pode revitalizar o mundo de hoje: "Quando digo cruzada, é cruzada de verdade. Não são programas, discursos, radiodifusões, estatísticas, artigos, conferências e discursos. Poderá ser uma quixotada; mas há de ser uma cruzada. Alma, devoção, sacrifício, coragem, risco, paixão".

E eis, por fim, como ele concebe essa cruzada:

"O mundo pede uma cruzada. Eis como (...) imagino que poderia começar esse grande abalo ou esse grande escândalo de que o mundo tanto necessita. O Papa sairia de sua sede gestatória, acompanhado de todas as ordens, confrarias e irmandades. A massa dos peregrinos e dos penitentes seguiria.

"Uma imensa procissão, com as imagens, os emblemas, as flâmulas e os cantos adequados. Pelas aglomerações humanas por onde passasse essa nova cristandade, haveria cerimônias, celebrar-se-iam sacramentos e espetáculos litúrgicos, e se dariam, mais importante do que tudo, verdadeiros testemunhos de sacrifício, de humildade, de penitência, de misericórdia e de imitação de Cristo. As emoções contidas encontrariam na grandeza a libertação que pedem (...) o ideal que quanto mais alto mais convém ao coração do povo.

"(...) Este nosso mundo de hoje, que como Sancho abandonado por seu amo, reclama a volta de dom Quixote, por sentir que sem ele a sua vida não teria sentido. De todos os lados sob os mais diversos nomes e as mais contraditórias aparências, o que o homem dos nossos dias pede e reclama, o que ansiosamente espera — é o retorno de Dom Quixote".

* * *

Dom Quixote, é bem de ver, não simboliza aqui a cavalaria decadente, dom-juanesca e fátua. Ele é o símbolo da cavalaria em seu melhor aspecto, do idealismo excelso, da coragem leonina, do menosprezo dos pequenos cálculos de oportunidade.

Como tudo isto é diverso da fria e seca trivialidade do progressismo e do entreguismo festivo e sanchopanchesco do cardeal Silva Henriquez. Como também da omissão silenciosa daquele cujo nome não pode, entretanto, ser mencionado sem veneração e amor, que se deve ao Papa, isto é, de Paulo VI!

E quanto é verdade que só pelo impulso de uma cruzada espiritual, a Igreja alcançará mover as multidões hodiernas!


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