Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 3 de janeiro de 1971

"Taquinerie"

O tema se impõe. Não há como fugir dele. É preciso dizer alguma coisa — qualquer coisa — sobre a passagem do ano. E como o assunto é dos mais batidos, resolvi tratá-lo apenas de raspão.

Realmente, meu tema essencial bem pode ser o leitor que correr os olhos por estas linhas. Deixarei em plano secundário a passagem do ano.

O processo é excelente, se não para escrever um bom artigo, pelo menos para atrair sua atenção, meu caro leitor.

Explico-me. Certo escritor francês costumava afirmar que encontrara o meio de graduar a duração das visitas que lhe faziam. "Se quero reter o visitante, dizia, eu lhe falo sobre ele; se o quero fazer sair, falo-lhe sobre mim".

Aplicado o processo à imprensa, espero que escrevendo sobre o próprio leitor, eu o atraia. Tanto mais quanto este é um tema-surpresa. Imaginava o leitor ontem ao deitar-se, que pela manhã leria um artigo sobre ele mesmo na "Folha"?

Para escrever sobre o leitor sem fugir do tema obrigatório — a passagem do ano — enuncio da seguinte maneira o meu assunto: "o leitor e a passagem do ano". É uma solução simples e cômoda. Sobretudo para o leitor. Porque ler é bem mais simples e cômodo do que escrever. Isto por mil razões. A mais palpável delas talvez seja a de que o leitor pode parar o artigo pelo meio, e jogar de lado o jornal. Enquanto o articulista, custe o que custar, tem de levar seu artigo até o fim. Senão o jornal não o publica. Pelo menos este é o costume.

Mas eis que estou tomando o caminho errado: começo a falar de mim. Rapidamente entro no rumo certo.

Leitor, leitora, falemos não de mim, mas do senhor, da senhora. Este, sim, é o assunto essencial. O assunto palpitante que ao senhor ou à senhora tão facilmente prende a atenção.

Essa "entrée en matière" não lhe causou certa estranheza? Examine-se. Creio que até várias.

Se o senhor ou a senhora não as explicitou, ofereço-lhe meu auxílio na faina.

Em primeiro lugar, essa generalização. É bem verdade, dirá quem me ler, que a grande maioria dos homens gosta mais de se pôr no centro da conversa, do que de ali deixar os outros. Mas a generalização que acabo de fazer não será excessiva? Não haverá exceções?

A este respeito, não brigaremos. Concedo, desde já, que há exceções. São as honrosas exceções que convém ressalvar sempre que se faz um pouco de "humour". E para que a paz entre nós seja perfeita, acrescento que o senhor, meu leitor, a senhora minha leitora, sim, precisamente o senhor ou a senhora que neste instante me lê constitui uma dessas honrosas exceções. Não está tudo arranjado?

Sim, responderá alguém, este ponto ficou perfeitamente esclarecido. Vejo que o articulista é um homem cortês e objetivo. Principalmente objetivo. Porém senti outra estranheza. É o emprego da expressão francesa "entrée en matière". O Dr. Plinio tem destas (oh, e se fossem só estas!). Ele não se dá conta de que é antiquado usar expressões francesas desse gênero, quando hoje o monopólio em circunstâncias destas pertence ao inglês.

É verdade. Mas o que querem? Eu, que passo em certos círculos — dos progressistas, da "saparia", dos demo-cristãos etc. — por um homem autoritário, eu acho o cúmulo do autoritarismo proibir, de um lado, alguém escolher expressões em uma língua célebre, clara, elegante, cheia de matizes e espirituosa, e constituir, de outro lado, um monopólio absoluto para outra língua. Ainda que esta última seja a de Shakespeare. O mínimo que posso dizer, a este respeito, é que aprecio a variedade.

Talvez essa minha obstinação em não obedecer ao monopólio imposto pela moda cause surpresa. Neste caso, permita o leitor ou a leitora que eu lhe cochiche no ouvido uma pergunta. Oh sim, cochichada bem baixinha, para não atrair sobre mim as mil censuras dos incondicionais da moda, de todas as modas: quem é autoritário, no caso, eu, que me reservo uma legítima e inofensiva liberdade, ou a moda que me quer pôr em algemas?

— Sim, sim, vá lá. Mudemos de assunto, dirão muitos leitores ou leitoras. Mas há outra objeção, acrescentarão. Implicou-nos o trato cerimonioso de "senhor" ou "senhora". Por que escrever assim? Os tratamentos de senhor e senhora vão desaparecendo da publicidade como dos usos sociais. O "você" invade tudo. Do que adianta, então, aferrar-se a fórmulas cerimoniosas. Já empoeiradas?

— Meu leitor, ou minha leitora, quer chegar às últimas conseqüências do que disse? Se os usos vão varrendo o "senhor" e a "senhora" do vocabulário, isto é sintoma de uma transformação muito mais profunda, que vai varrendo da terra todos os senhores e todas as senhoras. Pois enquanto houver autênticos senhores e autênticas senhoras neste mundo, não haverá como não chamar de senhor e senhora.

Ora, o mundo será terrivelmente vulgar, a vida insuportavelmente banal, no dia em que não haja mais na terra autênticos senhores, nem genuínas senhoras. Será o mundo dos "camaradas". O de Fidel, Allende e congêneres.

Resistir contra a tendência ao emprego exclusivo do "você" é resistir a um verdadeiro rebaixamento do gênero humano.

O leitor, a leitora quer uma prova? Imagine como se sentiria ofendido se alguém lhe dissesse que não é, nunca foi, não será jamais um verdadeiro senhor, uma senhora deveras. É lógico sentir-se tão ofendido em tal caso, e sustentar ao mesmo tempo que há um rebaixamento para o gênero humano em que jamais algum homem ou alguma mulher possa ascender à condição de senhor ou senhora?

Aliás, longe de mim a afirmação de que meus leitores não são, todos, verdadeiros senhores, e minhas leitoras não são, todas, verdadeiras senhoras. São. E neste ponto não há, não pode haver exceção. E é precisamente por isto, que os tratei de senhor e senhora...

Acabo de consultar o relógio. Marca 23h42. Meu relógio é antiquado. Não indica o dia, mas só as horas. Eu sustento, entretanto, que mesmo com um relógio assim é possível a alguém saber em que dia do mês está. Sei, por exemplo que escrevo na noite do dia 30. E às 23h45 vem ainda ver-me um amigo para tratar de um assunto. O assunto, aliás, é ele próprio... mas garanto que lendo na "Folha" esta insinuação não ficará zangado.

Seja como for, preciso terminar. Tanto mais quanto já estou excedendo o limite de 6 páginas à mão...

Sou obrigado a parar. E parar no começo do artigo, pois só agora ia entrar no assunto: o leitor e a passagem do ano.

Para me justificar, não encontro senão um argumento. E bem esfarrapado, concordo. Mas como fazer, senão tenho outro? Enfim, eis minha razão. Por insegurança, apresento-o em forma interrogativa: por ocasião de um mero começo de ano não cabe bem um simples começo de artigo?

Mas, dirá o senhor ou senhora que me ler: — E eu, o artigo é sobre mim? Estou logrado ou lograda! Este logro seria bom para o 1º de abril. E não para um artigo a propósito do 1º de janeiro.

— Sejamos conciliatórios. Prometo não escrever um artigo-logro no dia 1º de abril.

E faço votos — estes muito de coração — para que a Providência favoreça todos os leitores e cada um deles no ano de 1971. Desejo-lhes toda a espécie de graças no ano novo. Por exemplo, a de que este não venha a ser, como tantos outros, um longo e contínuo 1º de abril.

Estes votos, já o disse, são sérios. Pois em matéria de prece não se brinca.

O resto é "taquinerie". Se alguém não souber — ou não se lembrar de momento — o que esta palavra quer dizer, procure um dicionário de francês...


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