Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 28 de março de 1971

Perplexidade que agride

Do diário "La Nación", de Buenos Aires, de 6 do corrente, transcrevo, traduzido para nosso idioma, o texto de um telegrama endereçado pelo papa Paulo VI ao camarada Salvador Allende, presidente do Chile: "Correspondemos, com viva gratidão, à atenciosa saudação de Vossa Excelência, a Nós dirigida em nome próprio, bem como do governo e povo chilenos, por ocasião da Jornada da Paz, e ao mesmo tempo formulamos votos fervorosos de cristã prosperidade para essa amadíssima nação".

Li essa mensagem com o devido respeito. Sem embargo, confesso que ela me causou certa perplexidade. Nada mais justo do que os "fervorosos votos de cristã prosperidade" do chefe da Igreja para a nação chilena. Mas — perguntei-me — o que fazem esses votos no telegrama por ele dirigido a Allende? — Com efeito, o novo chefe de Estado subiu ao poder com um programa marxista, e o vai aplicando com implacável determinação. Ora, pelo próprio fato de ser marxista, tal programa não pode trazer ao Chile qualquer grau ou forma de prosperidade. E menos ainda de prosperidade cristã. É o que se deduz do ensinamento tradicional dos romanos pontífices. Assim, esperar que o Chile alcance a "cristã prosperidade" sob o governo de Allende, parece impossível.

Isto posto, os votos de "cristã prosperidade" do soberano pontífice só poderiam significar a esperança de que Allende mudasse inteiramente de rumo, ou deixasse o poder.

Tentei, então, interpretar a esta luz o telegrama, substituindo nele, "ad experimentum", as palavras "cristã prosperidade" por outras, consentâneas com minha hipotética interpretação. Eis o resultado que obtive: "...ao mesmo tempo, formulamos votos fervorosos de uma inteira mudança de rumos para nossa amadíssima nação". E estarreci. Não pode ser! Esses votos tomariam um tom agressivo que de modo nenhum se casa com o contexto tão cordial do telegrama. Menos satisfatório ainda foi o resultado da segunda substituição que tentei: "...ao mesmo tempo, formulamos votos fervorosos de que V. Excia. deixe o poder"!

Então, se essas duas interpretações são absurdas, como explicar os "votos fervorosos" de Paulo VI? — Fiquei sem saber...

* * *

Mera fórmula de gentileza, que não pode ser tomada inteiramente a sério, objetará algum leitor, à guisa de explicação. — Não estou de acordo. Pois, dado o caráter sagrado da missão conferida por Nosso Senhor Jesus Cristo ao sucessor de Pedro, nenhuma palavra saída de seus lábios ou de sua pena, no exercício das atribuições do sumo pontificado, é para não ser tomada inteiramente a sério. Ora, quando um papa se dirige oficialmente a um chefe de Estado exerce inegavelmente uma atividade inerente ao munus pontifício.

E daí, insisto, minha reverente mas inevitável perplexidade.

* * *

Perplexidade ainda bem maior senti ao ler, no órgão oficioso da arquidiocese de Santiago do Chile, "La Revista Católica" (n.º 1015, setembro-dezembro de 1970), a seguinte informação, que também transcrevo traduzida: "O novo núncio foi recebido no dia 19 de novembro pelo presidente da República, Salvador Allende, a quem apresentou as cartas que o acreditam como representante do papa.

"Depois de uma cordial troca de saudações entre o núncio e o presidente, mantiveram ambos uma conversa privada.

"Em seu breve discurso, Mons. Sotero Sanz, depois de transmitir a saudação e os votos do Santo Padre tanto para a pessoa do presidente como para o povo chileno, recordou o clima de colaboração que sempre presidiu as relações entre a Igreja e o governo do Chile".

Citei toda esta passagem apenas para enquadrar em seu contexto as frases seguintes, que são as mais interessantes: o novo núncio "acentuou especialmente sua complacência pelo programa de progresso social em que está comprometido o país, para o qual assegurou a ajuda da Igreja, recordando as iniciativas que esta tomou em ordem à promoção social, especialmente mediante a criação da comissão "Justitia et Pax" no seio da Cúria Romana e o "Fundo Populorum Progressio".

Antes de tudo, caro leitor, detenho-me um pouco para lhe permitir que tome fôlego. É bem justo, pois surpresa e perplexidade são sensações que encurtam a respiração.

* * *

Isto feito, vamos à análise do texto. O programa com o qual "está comprometido o país" chileno, todos o sabemos: é um programa marxista. Como pode pois tal programa ter a "complacência" do representante do papa? Como, sobretudo, pode este "assegurar a ajuda da Igreja" à execução desse programa? Como pode afirmar que a atuação da comissão pontifícia "Justitia et Pax" e o Fundo "Populorum Progressio" estão em consonância com a aplicação dos planos do comunista Allende?

* * *

Que comentários agressivos, estes, talvez me objete alguém. — Respondo que não. À vista de tais textos, o agredido sou eu. Agredido, sim, porque eles me criam, a mim, católico, apostólico, romano, um problema muito sério. E este problema — à maneira da esfinge — ou eu resolvo, ou ele me devora.

Com efeito, adiro de fundo da alma, em todos os graus, modos e medidas preceituados pelo Direito Canônico, aos ensinamentos pontifícios. E o discurso do núncio me coloca em uma alternativa: entendi mal aqueles augustos ensinamentos, ou não há coerência entre eles e as palavras do representante de Paulo VI em Santiago?

A resposta a estas perguntas é indispensável para o católico, mais ainda do que o ar para os pulmões ou a luz para os olhos. Se eu me mantivesse indiferente em relação a elas, seria indiferente à minha própria fé.

Desta perplexidade não sairei, se não olhar bem de frente a questão. E dela não sairão também incontáveis leitores, se por sua vez não fizerem o mesmo.

É para auxiliar na solução de questões tão agressivas, que escrevo.

* * *

Um núncio apostólico representa oficialmente o chefe da Igreja, nas relações com o governo junto ao qual está acreditado. Os documentos — cartas, discursos etc. — dirigidos pelo núncio ao governo, têm um caráter diplomático, porém não constituem, de si, normalmente, atos oficiais do magistério da Igreja. Ainda que o fossem, sendo o núncio um mero delegado do papa, se há algum desacordo entre conceitos emitidos por ele e o ensinamento dos romanos pontífices, prevalecem estes últimos. O representante é, obviamente, menos do que o representado.

Assim, por mais que o núncio em Santiago aplauda o programa marxista de Allende e prometa seu apoio a este, nós, católicos, devemos continuar inabaláveis na fidelidade aos incontáveis documentos pontifícios que condenam o comunismo.

Mas, perguntará alguém, e o telegrama do Papa a Allende? Não constitui um ato do magistério? — Evidentemente não. E dê-se-lhe esta ou aquela interpretação — esse telegrama não tem, nem segundo as intenções do Papa, nem segundo as leis da Igreja, eficácia jurídica suficiente para revogar qualquer documento do magistério supremo. É o de que nenhum canonista pode duvidar.

* * *

Por análogas razões, não me abalam, e nem devem abalar a ninguém, os elogios que o órgão oficioso da Santa Sé, o "Osservatore Romano", dispensou prodigamente, por duas vezes sucessivas, a d. Helder. Mas esta é outra história, de que falarei depois.

Para hoje ainda tenho um pequeno assunto a tratar. E é com d. Mário Gurgel, ex-bispo auxiliar do falecido cardeal Câmara. Deu esse prelado — cuja inteligência e cultura me alegro em reconhecer — uma entrevista à imprensa sobre vários assuntos, entre os quais a TFP. No tocante à nossa entidade, as palavras de d. Mário Gurgel foram muito diversamente reproduzidas pela imprensa. A "Folha de S. Paulo" atribuiu ao entrevistado apenas estas palavras: "os demais jornais católicos e as entidades que agem nos moldes da TFP também não refletem a posição da Igreja porque são particulares".

É esta uma afirmação perfeitamente verdadeira. — É suficiente?

Imagine d. Mário Gurgel que eu saia a público para dizer que ele não pode falar em nome da TFP. Não terei dito senão a mais pura verdade. Mas terei insinuado, ao mesmo tempo, uma inverdade, isto é, de que ele, em certa ocasião, falou em nome da TFP. O que jamais sucedeu. Eu me sentiria, pois, mal com minha consciência, se feita essa declaração, não tivesse acrescentado, desde logo, que d. Gurgel aliás jamais pretendeu falar em nosso nome.

A consciência do culto e inteligente bispo não lhe pedirá algo de análogo em relação à TFP?


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