Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 12 de março de 1972

Yalta multiplicada por Yalta

"Ambas as partes estão de acordo em reconhecer que é de desejar que se aprofunde a compreensão entre os dois povos. Com esse fim, discutem assuntos específicos de campos como a ciência, tecnologia, cultura, esporte e jornalismo, nos quais contatos e intercâmbios de povo a povo seriam de recíproco benefício. Cada uma das partes se compromete a facilitar o desenvolvimento crescente desses contatos e intercâmbios". Essas palavras — completadas em seguida por alguns parágrafos sobre o comércio sino-americano — são também da "Declaração de Xangai". Pelo que elas têm de oco, frustro e suspeito, não podem passar sem um comentário.

Em síntese, nesse tópico está todo um programa de aproximação entre os povos norte-americano e chinês. Entre os povos, note-se bem, e não meramente entre os governos.

Assim, antes de tudo é preciso indagar qual a autenticidade dos projetados contatos. — O que a "Declaração de Xangai" entende por "povo chinês"? São as multidões delirantes de entusiasmo pelo comunismo, das quais nos falam a imprensa, o rádio e a TV de Pequim? Até que ponto são autênticas essas multidões? Até que ponto se identificam com o próprio povo? — Sabido que toda propaganda oficial comunista mente sem acanhamento quando se trata de afirmar a solidariedade do povo à ideologia do Partido, a pergunta é inevitável.

Somos, assim, levados a suspeitar vivamente que o "povo chinês" com o qual os norte-americanos vão "aprofundar a compreensão", não é senão o PC. E que os contactos dos yankes se farão, não com representantes da maioria autêntica dos chineses, mas com equipes de cientistas, técnicos, esportistas e jornalistas, filiados ao partido oficial. Com fanáticos, portanto, ou com pobres vítimas da lavagem cerebral ou do pânico.

— De que valerão, então, esses contatos, para a aproximação de ambos os povos?

* * *

A esta primeira observação, acresce outra sobre a lealdade dos ditos contatos. Se Pequim desejasse realmente uma mútua compreensão entre os povos chinês e norte-americano, jamais deveria contentar-se com os contatos entre técnicos e especialistas de parte a parte. E isto ainda que estes representassem autenticamente seus povos. Se fosse sincera, a China comunista deveria abrir, de norte a sul, as suas fronteiras para os americanos, e lhes garantir toda a liberdade de ir e vir por onde quisessem. Facilmente teria a recíproca nos Estados Unidos. Mas isto, os chineses o evitam com cuidado. Na "Declaração de Xangai", prevêem tão somente contatos entre técnicos e especialistas, ou então de jornal a jornal, de revista a revista, etc. Tudo de longe, facilmente filtrável e controlável, com o propósito de mostrar apenas o que lhes convém mostrar. E sobretudo de esconder quanto lhes convém que no Ocidente ninguém saiba.

— Chamar isto de sério e leal contato de povo a povo, não é claro embuste?

* * *

Embuste, também o notamos no conteúdo dos contatos. — Que significa "aprofundar a compreensão"? — Dir-se-ia que entre a China comunista e os EUA não há o menor entrave. Que ambas as partes se compreendem mutuamente. E mutuamente simpatizam. Trata-se apenas de aprofundar esse conhecimento e essa compreensão. Tal qual sucede, por exemplo, entre os povos irmãos da América Latina.

Ora, a realidade é bem diversa. Tomado o PC chinês como é, apresenta ele, em relação ao povo norte-americano, um sem-número de divergências, que vão desde o estilo de vida até as mais altas cogitações em matéria filosófica e religiosa.

— Por que, então, falsear dessa maneira a realidade, alicerçando o programa das relações entre esses povos no falso pressuposto de que basta aprofundar de parte a parte o conhecimento, para melhorar as relações?

Em situações como esta, a aproximação transcende de muito a mera compreensão recíproca. Ela importa na aceitação da ideologia de uma das partes pela outra. Ou na convergência de ambas para um amálgama ideológico.

Se, pelo contrário, as relações ficarem apenas em compreensão mútua, à medida que melhor se compreenderem, mais perceberão quanto estão distantes.

Imaginemos "em concreto" um norte-americano liberal e um chinês comunista que expõe, cada qual, sua ideologia ao outro. Se ambos ficarem na respectiva posição, sairão do encontro mais cientes do que nunca de tudo o que os separa.

Ora, só um tolo poderá crer que o PC chinês enviará, para esses contatos, gente capaz de mudar de campo. Logo, tais contatos só serão promovidos pelo PC na medida em que tiver a esperança de "converter" os norte-americanos, ou, pelo menos, de os "amolecer" em relação à doutrina marxista.

Este o sentido real do caviloso tópico da "Declaração de Xangai". Sentido que não salta aos olhos com a primeira leitura, mas que se torna patente, se se submeter o texto a uma análise séria.

* * *

— Na prática, no que dará isto?

Dada a candura liberal dos norte-americanos e a astúcia comunista dos chinos, dará em um resultado altamente conveniente para os comunistas.

Estes entrarão em tais relações com o único objetivo de aproveitar todas as ocasiões para fazer aceitar a sua ideologia pela outra parte.

Pelo contrário, os norte-americanos, fundamentalmente liberais, irão para os encontros na persuasão de que se trata de uma mera informação doutrinária recíproca, sem intuito de mútua persuasão. E julgarão faltar ao "fair play" se se entregarem ao proselitismo.

Em outros termos, as relações sino-americanas se desenvolverão numa base da qual os chinos saberão tirar partido, e os americanos não.

* * *

É este um dos muitos aspectos desconcertantes da "Declaração de Xangai". Como ele, haveria cem outros a apontar, que a tornam um dos documentos mais calamitosos da História.

Deste ponto de vista, pode-se dizer que em nosso século tão cheio de calamidades, o entreguismo é a maior. Em Munique, teve ele uma primeira manifestação que estarreceu os homens de bom senso.

Yalta foi uma calamidade maior do que Munique. Foi Munique multiplicada por Munique.

A "Declaração de Xangai", é uma Yalta multiplicada por Yalta.

— Onde nos levará ela?


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