Folha de S. Paulo, 4 de junho de 1972
        
        Shorts e comunhões sacrílegas 
        
        O que pensa, leitor, dos seguintes dizeres inscritos num pôster 
        representando — sem gosto nem piedade — a Face sagrada do Filho de Deus:
        
        “Decididamente, é interessante. Cristo se arrancou de seu ambiente 
        familiar, onde O encontrávamos normalmente e resolveu se democratizar. 
        Saiu das igrejas, das sacristias, e resolveu andar por aí. Hoje a gente 
        O encontra entre hippies, entre toxicômanos, entre os de “cabelos longos 
        iguais aos dele”. Hoje pode estar tanto em uma favela como nas paradas 
        de sucesso, cantado por Roberto Carlos ou Antônio Marcos. Bom isto, 
        muito bom! A gente começa a topar com Ele onde menos se espera. E Ele se 
        sente muito à vontade em seu ambiente. Aliás Ele sempre foi homem do 
        povo. Gostava de se misturar com a massa, estar com ela. E sem dúvida 
        agora Ele começa a sentir-se novamente em seu meio. De uma maneira ou de 
        outra, em long-plays ou slogans, em pôsteres ou em comunidades hippies, 
        Ele volta a ser povo. Nós O fomos encurralando,   apertando-O e acabamos 
        por encerrá-lo entre quatro paredes das igrejas de pedra. Vestido em 
        ouro, um Deus distante, difícil de encontrar. Mas a gritos de “volte 
        logo” Ele começa a se manifestar, como Ele é. Um dos nossos, da nossa 
        raça, um Deus que se mistura com a gente e vive conosco. Vem dizer tudo 
        de novo porque a gente esqueceu. Ou então acabamos por adaptar o que Ele 
        disse ao nosso comodismo (a covardia dos que escutam só o que convém). A 
        nós só resta não estragarmos mais sua figura. Ele já se cansou de 
        carregar cordeirinho nas costas”. E seguem mais algumas referências a 
        “Cristo dourado”.
        
        A meu ver, nesse texto se juntam a confusão, a demagogia e a 
        irreverência. Uma irreverência que tem o sabor amargo da blasfêmia.
        
        Uma análise cuidadosa desse aranzel consegue desfazer a confusão, e por 
        em evidência o desrespeito e a blasfêmia.
        
        Com efeito, este Cristo que “resolveu se democratizar”, saindo das 
        igrejas e das sacristias, parece imaginado sob medida para justificar 
        certos padres e freiras défroqués e hippificados, que por 
        aí andam. Também eles “resolveram se democratizar”, e deixaram igrejas, 
        conventos e sacristias. Abandonaram até a própria vocação, e afundaram 
        de cheio na vida profana.
        
        A esses infelizes, onde se os encontra? — Jamais nos lugares sagrados, 
        dos quais desertaram, mas “entre hippies, entre toxicômanos, entre os de 
        “cabelos longos iguais aos dele”. Por vezes, podem ser encontrados “em 
        uma favela”, distribuindo com parcimônia o pão que mata a fome, e a 
        mancheias, o alimento espiritual ácido e envenenado da pregação 
        revolucionária.
        
        Em tudo isto, o Cristo “democratizado”, isto é, o Cristo modernizado, 
        desalienado e desmistificado do pôster, é a imagem perfeita do sacerdote 
        que, para seguir Marx
        e a 
        moda, rompeu de todo com sua vocação.
        
        Diante desse estranho “Jesus Cristo”, o comentário do pôster é: “Bom 
        isto; muito bom! A gente começa a topar com Ele onde menos se espera”. 
        Justificativa jeitosa para o sacerdote prevaricador, que leva a 
        indelével dignidade do sacramento da Ordem por todos os lugares em que 
        as leis da Igreja, o bom senso, o decoro, pediriam que ele jamais 
        pusesse o pé.
        
        Não espanta que, assim inconformado com a verdadeira figura moral do 
        Homem-Deus, o pôster ataque também as leis, modos e estilos que a Igreja 
        sempre adotou. Jesus Cristo, sacrilegamente “modernizado”, “se sente muito à vontade” 
        — acrescenta o pôster — em seu ambiente. Ele sempre foi homem do povo. 
        Gostava de se misturar com a massa, estar com ela (...) nós O fomos 
        encurralando, apertando-O e acabamos encerrá-lo entre quatro paredes das 
        igrejas de pedra”. Em outros termos, a Igreja teria cometido, até aqui, 
        o erro imperdoável de isolar Nosso Senhor Jesus Cristo do povo que Ele 
        veio ensinar e salvar. Jesus Cristo teria estado “encurralado, apertado 
        e encerrado” nas igrejas que a abnegação e a devoção de todas as 
        gerações que nos precederam, construíram para O abrigar.
        
        Libertado desses cárceres sagrados, Jesus Cristo, hippificado, diz o 
        pôster, “começa a sentir-se novamente em seu meio”, tendo à sua direita 
        a corrupção, à sua esquerda a subversão, e diante de si uma farta 
        coleção de tóxicos.
        
        Vinte séculos de vida, em que a Igreja se dilatou por toda a terra, 
        instituiu a Civilização Cristã
        , e levou ao fastígio da virtude, do saber e da força as 
        nações por Ela influenciadas, na realidade teriam sido vinte séculos de 
        desvio. Jesus Cristo, “vestido em ouro”, teria sido afastado do povo 
        pela Igreja, ter-se-ia tornado “um Deus distante, difícil de encontrar”. 
        Ainda bem que a contestação arrombou as portas do santuário, arrancou ao 
        Divino Rei as insígnias de sua Realeza e O arrastou para o meio dos 
        hippies. Os adornos majestáticos lhe teriam comunicado uma fisionomia de 
        mentira e de impostura. Nessa mentira e nessa impostura — sempre segundo 
        o pôster — a Igreja teria vindo até aqui. Mas dessacralizado, 
        desmistificado, profanado, “Ele começa a se manifestar como Ele é. Um 
        dos nossos, de nossa raça, um Deus que se mistura com a gente e vive 
        conosco”. Como se, durante vinte séculos, as igrejas tivessem ficado 
        vazias e nelas não tivessem penetrado as multidões. Como se, nas 
        igrejas, Nosso Senhor não se tivesse dado largamente aos homens, quer 
        pela presença Real, quer pela palavra, quer pela graça. Como se nesses 
        vinte séculos, gerações contínuas de sacerdotes, de religiosos, e de 
        apóstolos leigos não tivessem levado Nosso Senhor Jesus Cristo a todos 
        os ambientes em que fosse lícito e decoroso levá-lo. Como se Ele não 
        tivesse sido levado progressivamente a todos os confins da terra.
        
        Dispenso-me de continuar a análise do texto. Registro simplesmente esta 
        ironia blasfema contra as imagens que nos apresentam Nosso Senhor Jesus 
        Cristo como o Bom Pastor: “Ele já cansou de carregar cordeirinho nas 
        costas”.
        
        Quando um católico conserva na alma umas gotas apenas de Fé e devoção, 
        uma prece se evola de seu coração para o céu, ao ler abominações tais:
        Usque quo, Domine? — “Até quando, Senhor, até quando” tolerareis 
        aberrações como estas?”
        
        *    *    *
        
        Em Campos, a feliz diocese fluminense confiada ao zelo arguto e 
        destemido do grande bispo D. Antônio de Castro Mayer, a punição veio.
        
        Esse pôster servia de propaganda a uma Missa que se realizou no ginásio 
        do Automóvel Club de Campos. A solenidade foi marcada por 
        irregularidades que o pôster bem fazia temer. Mas a sanção eclesiástica 
        não tardou. Em comunicado largamente distribuído, D. Mayer fez saber ao 
        público a sua desaprovação formal ao ato. Basta ler o corajoso e sucinto 
        documento, para compreender os desatinos que durante aquela deplorável 
        cerimônia se cometeram.
        
        Dele publico só o absolutamente essencial:
        
        “Tendo causado estranheza a Missa concelebrada no Automóvel Club (...), 
        a Cúria Diocesana, de ordem do Sr. Bispo Diocesano, tem a comunicar o 
        seguinte:
        
        1 — A Cúria não foi consultada a respeito. Não lhe pediram a necessária 
        licença para Missa fora de recinto sagrado, nem submeteram a 
        concelebração ao juízo do Sr. Bispo Diocesano, como manda o Concílio 
        Vaticano II
        (Const. de Sacra Liturgia, n.º 57, § 1, 2, e § 2) (...).
        
        2 — O texto preparado para a cerimônia contém várias partes dignas de 
        censura. Assim, a paródia do “Credo”. A fé em Deus e nos mistérios 
        revelados, substitui-se à fé no homem, na mulher, na ciência, na 
        técnica, na evolução, e nas mais recentes aplicações dos inventos 
        científicos. Leia-se, por exemplo, este artigo do novo “Credo”: “Creio 
        na mulher que cada dia se enfeita e se embeleza, para ser a mais bonita 
        criação de nosso Pai”.
        
        Fora de uma solenidade litúrgica, já não é conforme ao espírito cristão 
        parodiar assim coisas sagradas. Durante a Missa, não se sabe como não 
        classificá-la de blasfêmia.
        
        No mesmo sentido, [sente] a blasfêmia a assimilação de Jesus Cristo aos 
        hippies de hoje: “Cabelos longos como os meus”, “hoje O encontramos (a 
        Cristo) entre hippies, toxicômanos, muito à vontade no seu ambiente”.
        
        3 — Trata-se de uma dessas deturpações do “aggiornamento” de que falava 
        João XXIII, continuamente deploradas por Paulo VI
         (...). Semelhantes deturpações distorcem o senso católico, 
        deformam as almas. E, segundo determinação da Santa Sé, ainda há pouco 
        renovada em carta do Sr. Prefeito da Sagrada Congregação da Doutrina, 
        compete aos Bispos vigiar por que a Fé se conserve íntegra entre os 
        fiéis, sem erros nem diminuições. Esta a razão deste comunicado, que a 
        inobservância das leis eclesiásticas tornou necessário. — Pe. José Maria 
        Collaço, Secretário do Bispado”.
        
        Em conformidade com esta nobre atitude pastoral, recomendou o ilustre 
        Prelado de Campos, em Circular ao Clero diocesano, que fosse promovida, 
        em todas as paróquias da Diocese uma Hora Santa “em desagravo dos 
        desacatos de que foi objeto o Santo Sacrifício do Altar e o Sacramento 
        da Eucaristia, na Missa realizado no Automóvel Club”. A Circular 
        acentuava, entre outros motivos para o desagravo, este fato realmente 
        monstruoso, de que na assistência havia gente de short e pessoas 
        que comungaram mais de uma vez. O que, aliás, não espanta, já que a 
        âmbula contendo as Hóstias circulava de mão em mão...
        
        Ao ver assim defendida a glória de Deus, uma exclamação subiu de meu 
        coração até o trono de Maria Santíssima, como ação de graças, a ser por 
        Ela apresentada a seu Divino Filho. Essa exclamação cabia toda inteira 
        em uma palavra: “Afinal!”
        
        Estou certo de que também será esta a exclamação e a prece de numerosos 
        leitores ao tomarem conhecimento da corajosa atitude de D. Antônio de 
        Castro Mayer.