Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

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23 de setembro de 1973

Os privilegiados

"Privilégio". Hoje em dia a palavra causa arrepios. Onde quer que seja pronunciada, evoca imagens antipáticas de grandes da terra a reservar exclusivamente para si honrarias, tesouros e mando, espoliando e oprimindo, para tanto, os pequenos e desvalidos.

Não é meu propósito consagrar este artigo à análise – do ponto de vista religioso ou moral – da procedência dessa concepção fanática e simplista do que seja um privilégio. De passagem, apenas faço notar que os homens de verdadeira cultura admitem a possibilidade de existir privilégios justos, perfeitamente consentâneos com o bem comum. Privilégios indispensáveis até para a boa ordenação das coisas terrenas, e, inclusive, das celestes.

Qualquer pessoa versada em História sabe, por exemplo, que a cultura ocidental jamais se teria alçado ao ápice a que em dado momento chegou, se não tivessem as universidades européias sido dotadas de preciosos privilégios, pelos monarcas da cristandade. Nem o direito laboral haveria germinado e florescido, não fossem os privilégios de que fruíam as corporações na Idade Média.

Se dos assuntos terrenos elevamos os olhos para os celestes, percebemos desde logo que toda a ordem e todo o esplendor das criaturas tem como chave de cúpula a mais privilegiada delas, isto é, Maria Santíssima. Os privilégios únicos e insondáveis da Mãe de Deus se difundem sob a forma de honra, glória, e júbilo sobre todos os habitantes das luminosas e eternas mansões.

Esses poucos exemplos bem mostram que pode haver privilégios justos e benfazejos, como também os houve, há e haverá injustos e nocivos, até o fim do mundo.

Nesta matéria, como em tantas outras, é preciso conservar o senso dos matizes, para não se cair em erro. La verité est dans les nuances, sentenciou Talleyrand. Increpar todos os privilégios é absolutamente tão insensato quanto apoiá-los a todos.

Por mais razoáveis que sejam as afirmações acima, não há remédio. Certo gênero de pessoas se enfurece diante do que acabo de afirmar, mais ou menos como o faz o demônio quando se lhe atira água benta.

Este modo de reagir não é de importância tão insignificante quanto à primeira vista parece. Ele constitui sintoma inicial de uma tendência ao comunismo. A partir da sanha incondicional contra os privilégios, o paciente evolui para o progressismo e o demo-cristianismo, e deste finalmente para o mero comunismo. Não raras vezes, essa evolução é até irreversível.

Da existência dessa propensão ao comunismo na mentalidade dos anti-"privilegistas" (perdoe-se-me o neologismo bárbaro) fanáticos, podemos certificar-nos pelo que passo a escrever.

Imaginemos uma camarilha de aventureiros que, conquistado o poder pela violência, em determinado país, esmagasse os habitantes deste sob a mais pesada e omnímoda tirania. Imaginemos que a aplicação das máximas de governo, professadas por essa camarilha reduzisse o país a uma negra miséria. Imaginemos ainda que, ao mesmo tempo, esses déspotas e seus subordinados mais próximos vivessem na maior largueza, desfrutando de tudo aquilo que falta à infeliz população por eles dominada. Não estão aí reunidas todas as características convencionais da tirania? Não parece, até, que o quadro, de tão sobrecarregado, tem algo de inverossímil?

Entretanto, sobrecarreguemo-lo ainda mais. Imaginemos que esses déspotas estivessem munidos de armas capazes de destruir, com pouco esforço, as principais cidades do mundo, baseados no que se pusessem a exigir dos maiores povos da terra um pesadíssimo tributo. Não está agravado até os limites do inimaginável, o quadro tétrico?

Pois levemos mais além o esforço de imaginação. Figuremo-nos esses déspotas como dotados de um misterioso poder hipnótico, pelo qual toda a humanidade lhes pagasse sem relutância o tributo; grandes magnatas lhes oferecessem pressurosamente inauferíveis tesouros, e ainda mais pressurosamente muitos clérigos lhes prodigalizassem suas simpatias e seu apoio. O quadro desconcertante não pareceria tocar às raias do delírio?

Mas transponhamos os próprios umbrais do delírio, imaginemos que essa situação desconcertante, inexplicável, patológica, deixasse num estado de semi-indiferença letárgica as multidões da terra, anestesiadas elas mesmas por essa força mágica.

Vamos adiante. Figuremos, por fim, que esses privilegiados, em lugar de empregarem os tributos pagos pela humanidade amedrontada e submissa, os usassem para fabricar mais armamentos, a fim de exigir assim novos tributos. E chego ao ápice. Imaginemos que esse poder hipnótico fosse tão completo, que uma ou outra voz se erguendo, aqui ou acolá, a denunciar com clareza insofismável a brutalidade dessa situação, morresse na indiferença geral.

A imensa mole de privilégios teria assim alcançado o auge da radicalidade nas sombrias paragens do absurdo. Seria o mundo inteiro a viver em larga proporção – e cada vez mais para uns poucos. Uns poucos, sim, que não representariam nem a Fé, nem a tradição, nem a cultura, nem a virtude, nem o direito, mas simplesmente o fato nu e cru do poder brutal!

Pergunto se configurado em concreto um tal empilhamento de privilégios, não estaríamos em face da situação mais injusta e mais odiosa conhecida pela História.

* * *

Há uns quinze dias, a imprensa noticiou quase simultaneamente certos fatos impressionantes: 1°) tais têm sido os fornecimentos feitos a vil preço, pelos EUA, aos déspotas do Kremlin, que o custo de vida na América do Norte vai subindo de modo assustador; 2°) outras nações européias e americanas seguem afincadamente a política de suicídio dos EUA; 3°) a Rússia negociou uma parte do trigo vendido – ou por assim dizer "vendido" - pelos EUA, no mercado italiano, a um preço quase três vezes maior. O lucro, obviamente, entrou nas caixas do Kremlin, para aperfeiçoar o sistema policial, as "defesas" da cortina de ferro, e os armamentos das nações do Pacto de Varsóvia. Em suma, mais tirania para dentro da cortina de ferro. E mais ameaças para fora.

Naturalmente, tudo isto pressagia, no Oriente, mais vítimas e mais gemidos. E no Ocidente, mais temor, mais submissão, e entregas ainda maiores. Tudo em proveito dos sátrapas que vivem à larga no Kremlin.

Em uma palavra, dir-se-ia que os déspotas de Moscou estão sentados como outros tantos satãs sobre um trono, do alto do qual devastam, em proveito próprio e pessoal, a terra inteira.

Pensadores de quilate e jornalistas de prestígio têm denunciado aqui ou acolá o fenômeno monstruoso. As frações "sapas" do clero e da burguesia os ouvem, os lêem, fremem de ódio contra os que protestam e acham mais prudente fingir que nada percebem. O resto dos mortais continua a dormir.

* * *

Eu, de minha parte, procuro os inimigos dos privilégios, para com eles formar uma liga, a fim de combater o monstro.

Mas os estranhos adversários de todos os privilégios, postos em presença desse quadro monstruoso, nada ouvem, nada dizem, nada fazem.

Como explicar isto, senão porque, aos olhos dos inimigos incondicionais dos privilégios, o comunismo goza... do privilégio... de chamar a si todo o ouro e todo o mando da terra?

E então, é ou não é verdade, que na medula da alma desses inimigos dos privilégios há uma profunda simpatia, uma simpatia cega para com o comunismo?


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