Plinio Corrêa de Oliveira

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

Bookmark and Share

30 de janeiro de 1982

Autogestão e catapora

Mais de um objetante me tem perguntado qual o exato alcance do tema autogestionário para o futuro das nações americanas, do Sul, do Centro ou do Norte. No fundo da pergunta julgo entrever o velho otimismo que se estende por todo o continente (exceção feita talvez ao México, cujo desenvolver histórico me parece por vezes sanguinário e por vezes nobremente dramático). Línguas, raças, religião, história, situação econômica, psicologia do homem da rua, em quase tudo se diferenciam os norte-americanos da forte maioria dos sul-americanos. Entretanto, esse fundo de otimismo é comum a uns e outros, desde as vastidões gélidas do Canadá, até às da Patagônia.

Exprimir-se-ia adequadamente assim, esse otimismo continental: guerras apocalípticas, revoluções-hecatombes, crises ideológicas pungentes, glórias fulgurantes e até solares a rasgar povos inteiros em setores mortalmente inimigos, tudo isto faz parte do colorido e da movimentação que conferem tanto realce e tanto interesse aos povos da Europa. Nas três Américas tivemos, sem dúvida também, guerras, revoluções e dilacerações. Mas elas estão para o ocorrido na Europa como a catapora para a varíola, ou o chuvisco para a tempestade. Por aqui sempre teremos paz; paz e mais ainda paz...

O corolário dessa impostação otimista – aliás, absolutamente objetável do ponto de vista histórico – está em que, importando a implantação de um regime comunista numa tragédia, ele jamais criará raízes na América.

* * *

Esse otimismo é, a meu ver, uma das causas profundas da inércia com que diversos países sul-americanos têm visto outros às voltas com convulsões de fundo comunista, publicitárias, políticas ou até cruentas; não passam de cataporas em casas de vizinho. Quando determinado país se sente atacado, cuida-se, isto sim. Não é contudo porque atribua à sua "catapora" a gravidade da varíola. É tão-só porque cada qual trata da catapora quando dá na própria pele.

Assim foi que os países hispano-americanos consideraram os regimes mais ou menos comunistas implantados – efemeramente, ou quase só isso – em vários deles. E é assim que certos políticos sul-americanos consideram inteiramente possível uma aproximação com Cuba. Para a miopia deles, o comunismo em Cuba tende a se atenuar, por fim. Por quê? Simplesmente porque Cuba faz parte da América, e portanto a tremenda varíola que de modo desconcertante "pegou" em Cuba, propende inevitavelmente a "cataporizar-se" no curso dos anos.

Tanto quanto me é dado ver, outro não é o estado de espírito com que políticos estadunidenses e canadenses de esquerda, de centro-esquerda e de centro consideram o perigo comunista em Cuba, na Nicarágua e em El Salvador, como consideravam há pouco as guerrilhas e o terrorismo na América Latina. Isto é, catapora em casa do vizinho.

* * *

É explicável que esse velho estado de espírito otimista se tenha sentido chocado com a dupla afirmação recentemente feita ante seus olhos, com tanta ênfase: 1º) a autogestão não é senão uma via para o comunismo; 2º) ela constitui um perigo também para a América. E falo aqui mais especialmente da América do Sul. Do Brasil.

Mas como? Se a autogestão é intrinsecamente comunista, seriamente comunista, ela é do gênero "varíola". Como pode então medrar em países nos quais só dá "catapora"? Através de que condutos insólitos e até insuspeitáveis?

Fazer tal pergunta implica negar a dinâmica de muitos ou talvez de quase todos os movimentos que têm transformado a América do Sul. Exemplifico com o Brasil.

Ao longo de nossa história, têm aparecido políticos de cultura relevante. Mas a grande maioria deles é de homens práticos, preocupados sobretudo em aglutinar eleitorado, ganhar eleições e projetar-se no próprio Estado ou no País. Por isto, não têm tempo para estudos de maior envergadura. Ora, na pescaria eleitoral pesam muito mais o senso psicológico, a comunicatividade, a disposição para participar e para ajudar, de um político, do que a massa de livros que se percebe que ele leu mesmo.

Ademais, pacato como é, o brasileiro se interessa pouco por refregas, ainda que ideológicas. E, portanto, todo o ímpeto reformista encontra nele profunda inércia. O que equivale a uma posição normalmente conservadora.

Como, então, foi possível conduzir o país através das sucessivas reformas pelas quais tem passado? Não gostando de refregas internas, isto é, entre brasileiros, também não apreciamos refregas com outras nações. Já vão longe os idos da Guerra do Paraguai...

Por isto, somos propensos a evitar o que nos singulariza ante outras nações ao ponto de se transformar em confrontação. Procuramos seguir lentamente os padrões universais.

* * *

Este não é – obviamente – senão um dos fatores da pacatez nacional. Mas cuidado em não a subestimar...

Creio, por exemplo, que a monarquia teria durado mais no Brasil se ela não fosse, já em 1889, inculcada como forma de governo "demodée" (fora de moda, n.d.c.) pelos escritores e jornalistas "pra frente". E, com efeito, em pouco mais de um quarto de século ruem um a um os principais tronos da Europa continental... Analogamente, a derrocada da aristocracia rural não teria sido tão fácil, nem tão rápida, em 1930, se não fosse o fato de que a aristocracia – como padrão humano, estilo de vida, modelo de relacionamento, etc. – tida por anacrônica pelo burguesismo capitalista em ascensão, se vinha evaporando em todo o Ocidente. E assim poderia eu ir multiplicando os exemplos.

Sustentar, ao revés de todos os povos, e em tensão pelo menos moral com eles, formas e estilos: o brasileiro prefere não ir até lá.

Ora, qual era o modo de que a população dispunha – e dispõe – para testar a atualidade ou o anacronismo dos seus padrões? Era principalmente a análise de dois fatores: o pensamento francês e o êxito norte-americano.

Foi, em larga medida, o prestígio universal "francesíssimo" dos pró-homens do pensamento republicano, que colocou a República na ponta da modernidade. Mas foi o êxito econômico realmente fulgurante dos Estados Unidos que contribuiu com a influência francesa para nos levar à República. Coisa não muito diversa se poderia dizer do vagalhão "desaristocratizante" de 1930.

Obviamente, não pretendo que as causas dos lances de 1889 e 1930 se reduzissem a isto. Afirmo tão-só que no campo psicoideológico – um dos campos de operação importantes dos grandes movimentos revolucionários – este fator assim atuou.

E deixo o resto do tema para depois.


Bookmark and Share