Plinio Corrêa de Oliveira

 

Pio XII e a ascese inaciana

 

 

 

 

Legionário, N.º 418, 15 de setembro de 1940

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Católico, integralmente católico, exclusivamente católico, o “Legionário” romperia lamentavelmente com suas melhores tradições se deixasse de amar de modo ardente e filial todas as Ordens Religiosas suscitadas pelo Espírito Santo no seio da Igreja. A diversidade harmoniosa que as distingue, longe de abrir fendas na estrutura monolítica da Igreja, constitui uma admirável prova de sua pujança. Todas elas tem uma finalidade santa, uma organização institucional irrepreensível e uma espiritualidade perfeita. Em todas elas, só se serve admiravelmente a Igreja de Deus, e todas elas tem desígnios providenciais a realizar. Em todas elas, a espiritualidade é tal que, seguindo-a, pode o Religioso atingir a plenitude da Santidade para a qual o chamou o Espírito de Deus. Não seria possível arrancar uma nota a uma música sem prejudicar a melodia inteira. Assim não seria possível ferir uma Ordem sem ferir implicitamente todas as outras. Mas, exatamente como é legítimo, percorrendo os olhos pelo firmamento, deter as vistas ora em uma estrela ora em outra para lhe admirar atentamente a beleza particular, assim é perfeitamente legítimo considerar uma por uma as Ordens que existem na Santa Igreja de Deus, e admirar detidamente as maravilhas com que a ornou o Espírito Santo.

Com este espírito, é sobre a Companhia de Jesus que queremos hoje deter nosso olhar.

Vivemos atualmente dias pesados, de luta incessante. Não é só nos campos de batalha que a peleja se trava. Hoje mais do que nunca, cada alma é um pequeno campo de combate em que se defrontam os estandartes de Jesus Cristo e do demônio. O jornalista católico tem, pois, uma santa peleja a sustentar na alma de cada leitor. E seria um crime darmos a nossos trabalhos um caráter meramente especulativo, quando a luta é o grande dever do momento. É, pois, com os olhos voltados para a realidade objetiva que nos rodeia e por assim dizer nos assedia, que devemos escrever. Não quero, tratando de uma Ordem tão admiravelmente militante, deixar de parte este imprescindível dever.

O século passado foi dominado pelo naturalismo e pelo liberalismo. E assim como o liberalismo gerou um monstro maior que ele, e que o devorou, isto é, o totalitarismo da direita ou da esquerda, assim também o naturalismo gerou uma hidra ainda pior, que são as falsas místicas. Seria um erro consumirmos nossos esforços no exclusivo combate contra a impiedade radical e completa. Nosso século, que é de confusão, procura inaugurar um meio termo entre o Catolicismo e o naturalismo, em um misticismo falso, que se resolve em última análise em um iluminismo vulgar, ou em uma lamentável idolatria. As místicas falsas são o grande inimigo do momento. E este inimigo tanto mais perigoso será quanto mais ele gerar confusões em nossos campos, assumindo aspectos católicos, para mais facilmente entregar ao lobo devorador da heresia, as ovelhas que estão no aprisco do Bom Pastor.

Assim, pois, é preciso considerar de frente este novo inimigo, e lhe oferecer, à boa e autêntica moda católica, batalha em campo raso e de viseira erguida. As batalhas que se travam pela Igreja iluminam os que são feridos, e salvam os que são vencidos. Não é só o bem daqueles que defendemos, que nos impele ao combate. É também o desejo ardente da salvação dos que militam em campo errado.

Uma lamentável expressão desse falso misticismo, que jamais terá na Igreja Católica foros de cidadania, é a idéia errônea de que a espiritualidade da Companhia de Jesus está inquinada de liberalismo individualista, é antropocêntrica por natureza, e por isto mesmo não atende de modo perfeito às exigências desta espiritualidade por assim dizer social, determinada pela própria natureza do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ponto por ponto, todos estes erros foram destruídos na recente Carta Apostólica enviada por S.S. o Papa Pio XII ao Padre Geral da Companhia de Jesus. Tendo embora um caráter meramente comemorativo e festivo, o documento do Santo Padre não deixou de conter todos os conceitos necessários para destruir uma opinião tão perfeitamente abominável.

* * *

“Abominável” dissemos e a palavra não é forte. Realmente o que a crítica acima feita à Companhia de Jesus insinua é que há um dissídio entre a espiritualidade inaciana e a verdadeira espiritualidade católica. Efetivamente o Corpo Místico de Nosso Senhor outra coisa não é senão a Igreja. Ser incompatível ou dissonante em relação ao Corpo Místico implica em ser incompatível e dissonante em relação à Igreja. E toda a espiritualidade que não atender a este caracter de “Corpo”, que tem a Igreja, será necessariamente uma espiritualidade divorciada das realidades sobrenaturais profundas que na Igreja existem. Como, mais, não concluir daí que a espiritualidade da Companhia de Jesus seria desconforme à estrutura da Igreja?

Por outro lado, se a espiritualidade da Companhia de Jesus está eivada do liberalismo individualista, de que estava saturado o ambiente na época da propaganda protestante, em que a Companhia nasceu, implica isto em afirmar que um dos elementos constitutivos desta espiritualidade - o individualismo - é ao mesmo tempo elemento essencial de uma heresia. Ora, a conseqüência é que esta espiritualidade não é perfeita. Neste caso, como a aprovou a Igreja? Se não é perfeita tal espiritualidade, a Igreja o que fez, quando lhe deu, além de sua chancela, numerosos e entusiásticos encômios, cumulando de indulgências suas práticas mais características?

Finalmente, se esta espiritualidade é antropocêntrica e erra nisto, como explicar que através dessa espiritualidade tantos e tantos homens, não só da Companhia de Jesus, mas ainda de outras famílias espirituais da Igreja, tenham por ela ascendido às honras dos altares? Não eram eles autênticos Santos? Então sua espiritualidade era verdadeira e irrepreensível. Era errônea sua espiritualidade? Então a Igreja errou, quando os canonizou, por que não poderiam ser verdadeiros Santos.

Assim, como de costume aliás, ferindo a Companhia de Jesus, quem no fundo se fere é a autoridade da Igreja Católica. Explicitamente ou não, conscientemente ou não intencionalmente ou não, a realidade é esta e só esta.

* * *

Citando os textos da própria Carta Apostólica do Pontífice, vejamos agora como Sua Santidade destroi uma por uma estas falsas alegações.

Comecemos pela balela de que a Companhia de Jesus, longe de ter lutado como uma falange gloriosa e invencível contra o protestantismo, encharcou de individualismo protestante, não só os fiéis mas os Ministros que sobem diariamente os degraus do altar, não só os Ministros, mas os próprios Santos que no altar se encontram.

 Depois de uma empolgante descrição da situação lamentável a que a pseudo-reforma protestante havia conduzido o mundo, Pio XII descreve a reação magnífica que Santos suscitados por Deus em várias Ordens, países, estados e sexos, desenvolveram contra o mal. E o Pontífice acrescenta: “entre todos os santos varões que diferem entre si como diferem em brilho uma das outras as estrelas, é aos olhos de todos evidente que Inácio de Loyola ocupa lugar de destaque e, a seu lado, a Companhia, por ele fundada, tem grande parte na realização destas grandes obras. E isto justa e merecidamente. Para nos servir das palavras de nosso predecessor de feliz memória, atesta-nos a história que o orbe católico reforçado por Inácio com oportuno auxílio pode em breve respirar, nem é fácil rememorar quais e quantas tenham sido as obras que em todo o gênero levou a cabo a Companhia, sob a chefia de seu Santo fundador e general, Inácio”.

E o Papa acrescenta: “Era de ver a diligência desses incansáveis religiosos em derrotar vitoriosos a contumácia dos hereges em providenciar a renovação dos costumes, a restaurar a disciplina do Clero decaído, em conduzir inúmeras almas aos cumes da perfeição cristã”.

E em outro tópico referindo-se aos sucessores e filhos de Santo Inácio, Pio XII exclama: “Em suas necessidades mais prementes teve-os a Igreja a seu lado, recebendo deles os mais valiosos auxílios, os frutos mais diversos e mais salutares”.

Assim, para só citar alguns textos, segundo Pio XII, e portanto segundo a Igreja, longe de trair o Catolicismo não apenas ferindo-o, mas matando-o por instalar no que ele tem de mais íntimo, isto é, em sua alma, o que é herético imaginar, o veneno pútrido do individualismo religioso, os jesuítas foram verdadeiros paladinos da Fé contra o protestantismo que não teve inimigos mais eficazes nem mais constantes do que eles.

Aliás, para que insistir sobre isto? Não é absolutamente óbvio que é esta a realidade? Não seria preciso chegarmos a este século de confusão para termos de argumentar, com a autoridade do Pontífice e o testemunho da História, em favor de uma tese que é do conhecimento geral?

* * *

Mas há melhor, deixamos que continue a falar o Pontífice: sua palavra é a palavra de Deus.

“É-nos antes de mais nada, diz PIO XII, sumamente grato cumular de louvores a ascese inaciana que, na mortificação e reforma do espírito, visa principalmente que CRISTO seja tudo em todas as coisas, dirigindo tudo unicamente ao fim último da maior glória de DEUS”. Os dois grifos na frase foram nossos. Se a maior glória de DEUS é o fim último de tudo, onde está antropocentrismo? Que respondam os pseudo-místicos de nossos dias.

Continua PIO XII dizendo em uma frase feliz que em parte grifamos que “esta ascese inaciana, tanto para vós como para qualquer cristão, que tomam a peito sua salvação, graças a um costume que em boa hora se traduziu, é proposta pelos exercícios espirituais segundo as normas de Santo Inácio, traçadas no livrinho áureo a que chama de verdadeiramente admirável... nosso predecessor de antiga memória Bento XIV”.

“Com razão nosso Predecessor Pio XI afirmou na Encíclica Mens Nostra, que os Exercícios Espirituais constituem um extraordinário auxílio para a salvação eterna”. E em outro trecho Pio XII elogia a espiritualidade também inaciana das Congregações Marianas, nas quais tão injustamente se queria ver, é monstruoso dizê-lo, inimigas da Ação Católica: “para esta formação concorrem poderosamente essas escolas de piedade e apostolado cristão, as Congregações Marianas, com as quais a Igreja de Cristo sempre pode contar como tropas auxiliares arregimentadas em batalhões pacíficos sob o estandarte da Virgem Maria”. Os grifos também são nossos. O que de mais claro?

* * *

Uma última palavra apenas. É preciso ferir o erro segundo o qual a espiritualidade da Companhia de Jesus é posta em contradição pela de outras Ordens. Harmonicamente diversa, é certo. Mas contraditória, não: esta opinião é o maior ultraje ao Corpo Místico de Cristo. Que Corpo anárquico, caótico, desarticulado seria este em que os membros são visceral e institucionalmente contrários uns aos outros?

É isto o que se deve entender por organicidade da Igreja? Pelo contrário, amar, apregoar, louvar a espiritualidade da Companhia de Jesus não é combater nem menosprezar as de outras Ordens, mas abraçar a todas elas, no mesmo amplexo amoroso, filial, reverente, entusiástico e sincero.

 


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