Plinio Corrêa de Oliveira

 

3º ato?

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 22 de setembro de 1940, N. 419

  Bookmark and Share

 

A comédia da luta entre o nazismo e o comunismo já conta dois atos. No primeiro, fingiram brigar, se bem que cada vez mais suas ideologias se mostrassem irmãs. No segundo ato, o nazismo deixou cair a máscara e mostrou à luz do sol seu “facies” comunista, seja simulado entre ambos para iludir mais uma vez os tolos.

Por que esta nova comédia que começa a aparecer provável? Só um retrospecto histórico o poderá explicar.

É para um retrospecto destes que o “Legionário” convida hoje seus leitores. Não se trata de fazer aqui uma obra de mera excursão pelo passado. É para o futuro que estão voltados nossos olhos, e se por momentos olhamos também o passado, fazemo-lo apenas para melhor decifrar a natureza das sombras e dos vultos que percebemos que, na estrada que se estende diante de nós, nos espreitam ameaçadoramente a cada curva e a cada passo.

A nota dominante do ambiente de pós-guerra foi a anarquia. Tinha-se a impressão nítida de que a influência do espírito da Revolução Francesa chegava a seu epílogo, e que as convulsões sociais que sacudiam com intensidade cada vez maior o Velho Continente iriam finalmente atirar o mundo naquela anarquia sem limites e sem disfarces, cujos germens constituíam o âmago mais profundo e mais íntimo das doutrinas de Lutero, despontavam com audácia maior nas obras de Voltaire e de Rousseau e triunfavam pela primeira vez de modo público aos olhos do mundo inteiro, no patíbulo em que Luiz XVI e Maria Antonieta foram decapitados.

Já antes da [Primeira] Guerra, a Europa passara por uma democratização intensa que abalara a solidez da quase totalidade dos tronos do Continente. Por toda a parte, revoluções liberais haviam quebrado os quadros vigorosos da velha organização social e política, substituindo-a por formas novas, que apresentavam um caráter de evidente transitoriedade. As monarquias constitucionais em que, entre 1814 e 1914, se haviam transformado quase todas as monarquias absolutas da Europa, não eram evidentemente o termo de uma evolução política, mas apenas um “modus vivendi” passageiro e suportável entre o espírito de ordem e o de revolução, entre os partidários de uma ordem de coisas que, fundamentalmente, ainda era de inspiração cristã, e uma ordem nova, que tendia a repudiar cada vez mais clara e radicalmente qualquer influência dos Evangelhos na estruturação política e social dos povos.

Evidentemente as afirmações que aqui fazemos tem um caráter todo ele histórico, e não visam fazer digressões doutrinárias. Um bom católico poderia ser perfeitamente partidário quer de uma monarquia constitucional, quer de uma república democrática. Afirmamos entretanto que a maior parte dos que promoveram a democratização da Europa não o faziam com o intuito de refundir as formas do governo sem ferir as bases cristãs da civilização, mas com o propósito mais ou menos disfarçado, mais ou menos consciente, mais ou menos radical de, destruindo o mundo antigo por ódio ao que nele havia de sentido católico das coisas, substitui-lo por um mundo novo, no qual uma visão inteiramente naturalista do universo reconstruísse as sociedades humanas sobre a base de uma filosofia inteiramente nova.

Em outros termos, atrás da questão perfeitamente indiferente para a Igreja das formas de governo, o que se discutia era propriamente uma questão filosófica e teológica. Por um destes fenômenos ilógicos mas reais, tão frequentes na história das multidões, o essencial era como que subordinado e ligado ao acidental, e problemas das formas de governo, que pode ser perfeitamente distinguido, nos termos em que Leão XIII o fez, dos problemas filosóficos e religiosos, servia na realidade de rótulo para uma contenda que, no fundo, outra coisa não era se não filosófica e religiosa.

Assim, se a democratização do mundo, em tese, poderia não ter significado terreno perdido para a Igreja, uma vez que esta colabora com todas as formas de governo honestas, na ordem prática e objetiva das coisas, como a turba multa dos inovadores e reformadores sociais era governada no fundo por inimigos irredutíveis da Igreja (...), o triunfo de qualquer movimento democrático, fosse ele atenuado sob as aparências de uma monarquia constitucional ou claramente republicano, significava praticamente, na Áustria como na Espanha, e na França como na Itália, o advento de um partido hostil à Igreja.

Este partido não queria, no fundo, nem a república burguesa e liberal nem a separação da Igreja e do Estado. Quer o liberalismo burguês quer o liberalismo religioso eram, para ele, meras etapas na realização do desideratum completo, que consistia na igualdade radical e perfeita de todos os homens, e na supressão completa de toda a Religião.

Em outros termos, o liberalismo das monarquias constitucionais ou das repúblicas burguesas não era senão o caminho para uma ditadura igualitária e naturalista.

Tão vivo era o sentimento desta realidade que a opinião mundial, antes da Guerra, via claramente, no enfraquecimento dos tronos, um prenúncio de transformações futuras ainda mais graves e mais profundas, e os espíritos então chamados de “avançados” já preconizavam abertamente, como fenômeno inelutável, o triunfo do comunismo.

Entretanto, seja como for, e por mais débeis que estivessem as instituições tradicionais antes da Guerra, é incontestável que elas ainda dispunham de fatores de resistência bem consideráveis. E por isto, se a partida estava, para elas, fortemente comprometida, ainda não era entretanto desesperadora sua situação. Mas a grande catástrofe de 1914-1918 precipitou extraordinariamente os acontecimentos. Na Rússia, na Hungria, na Áustria e na Alemanha, um socialismo completo campeava.

Especialmente no ex-império czarista, as labaredas da revolução social haviam amontoado ruínas consideráveis. Reduzidas à miséria as famílias tradicionais cujos nomes estavam ligados indissoluvelmente à trama histórica de todos os países vencidos, a hegemonia social passou para as mãos de uma burguesia de “nouveaux riches”, céptica, orgulhosa, gozadora, que iria imprimir daí por diante, à vida social, um ritmo inteiramente “desembaraçado” das tradições cristãs que ainda se encontravam na Europa.

As crises econômicas cada vez mais agudas determinaram fenômenos idênticos na França, e em vários outros países. A queda dos tronos e das aristocracias era a grande nota dominante do momento. A república liberal e burguesa chegava a seu zênite.

Ora, quanto mais ascendia em poder e em riqueza a burguesia, quanto mais o liberalismo dominava e destruía as velhas instituições cheias de reminiscências monárquicas, tanto mais a opinião pública ia sentindo a precariedade da organização liberal, e ia notando que a fermentação das massas, na Europa inteira, preparava com o auxílio dos governos fracos e muitas vezes mal intencionados, a grande ditadura proletária e ateia sonhada por Karl Marx. Greves, motins, agitações, conspirações incessantes em todos os subúrbios operários de todas as grandes capitais, atentados, discursos incendiários nas bancadas esquerdistas dos parlamentos, tudo isto constituía, no panorama de pós-guerra, uma  nota habitual e até crônica. (...)

Que fazer?

* * *

A angústia extrema da situação arrancou a seu torpor preguiçoso muitas das elites europeias. Entre os “homens de bem”, os que, divididos embora por suas convicções políticas almejaram a subsistência, na civilização contemporânea, de bases naturais sadias e estáveis, se estabeleceu um acordo tácito contra o inimigo comum. E, por toda a parte com exceção da Rússia, a reação anticomunista se fazia triunfante. Foram movimentos espontâneos da opinião pública, que expulsaram da Alemanha, da Áustria, da Hungria o bolchevismo. Foram movimentos espontâneos, que fizeram fracassar na França as primeiras investidas bolchevistas. E na Espanha o trono parecia sobreviver às tormentas revolucionárias, mostrando assim uma longevidade sumamente decepcionante para os profetas da esquerda.

No meio de tudo isto o que era mais notável é que as elites pareciam compreender finalmente que todo o seu trabalho de reconstrução social seria vão sem o apoio da Igreja, e perceber instintivamente que ou a ordem se basearia nela ou, pura e simplesmente, não haveria ordem.

Evidentemente, esta verificação criava em torno da Igreja um ambiente de admiração que preparava admiravelmente o terreno para numerosas conversões. E estas se deram. Ao par da desmoralização geral, outro fenômeno, característico do pós-guerra é, em sentido contrário, o “renouveau” católico. Em todos os centros culturais, os preconceitos cediços do comtismo ruíam por terra um por um, dando lugar a um magnífico movimento de conversões, que alterava fundamente o panorama intelectual das elites europeias.

Paralelamente a isto, por toda a parte os católicos, conforme as ordens de Leão XIII, se arregimentavam em formações eleitorais compactas que, fazendo sabiamente abstrações de questões acessórias, dominavam a política dos vários países, e punham em xeque a Revolução. O partido católico de Bruning na Alemanha, o de Dom Sturzo na Itália, o de Gil Robles na Espanha, o de Dollfuss na Áustria, sem falar nos partidos católicos da Holanda e da Bélgica, e na Federation Nationale Catolique do General de Castelnau, tão parecida com nossa Liga Eleitoral Católica, todas estas organizações cresciam em influência e se assenhoravam, parcial ou mesmo totalmente do poder.

Dois grandes polos se formavam nas correntes de opinião da Europa. De um lado a Cruz de Cristo, refúgio de todos aqueles que não haviam satanizado na adoração do mal, da torpeza e do roubo, e de outro lado a foice e o martelo, sinistro estandarte do demônio, ponto de reunião dos que, sem Deus e sem lei, desejavam repetir contra os homens bons a triste façanha de Cain contra Abel.

Em outros termos, a meditação dos dois estandartes, de Santo Inácio, adquiria uma atualidade ou, por assim dizer, uma visibilidade perfeita. Entre Cristo tão claramente indicado à luz dos acontecimentos como a única salvação, e o demônio, tão visivelmente caracterizado no comunismo como a suprema desgraça, quem escolher?

Foi com razão que Santo Inácio esperou grandes frutos de sua meditação dos dois estandartes. Cristalinamente claro como estava, o panorama do mundo tinha o valor de uma página de apologética. E as conversões se tornaram cada vez mais numerosas.

Que esperar do demônio nesta emergência? Uma luta heroica contra a Igreja de Jesus Cristo, de viseira erguida, frente a frente, com lealdade absoluta? Quem poderia esperar isto do pai da mentira?

Desmascarado por momentos, ele não deu o assalto que preparava. Recuou, escondeu-se, turvou o ambiente. No próximo artigo mostraremos como, agitando por sua vez o estandarte da ordem, começou a confundir os horizontes, a baralhar os campos, e tentar assim recuperar o terreno perdido.


Bookmark and Share