Plinio Corrêa de Oliveira

 

O bombardeio de Roma

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 25 de julho de 1943, N. 572, pag. 2

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O LEGIONÁRIO publica hoje, em sua primeira página, a carta dirigida pelo Santo Padre Pio XII a Sua Eminência, o Cardeal Francisco Marchetti Selvaggiani, Vigário Geral da Diocese de Roma, da qual o Sucessor de São Pedro é Bispo.

Pode-se dizer que o documento dado a lume pelo Sumo Pontífice, se de um lado contém ensinamentos doutrinários do mais alto valor, honrará também a História da Igreja pela extraordinária nobreza da atitude que assume, e pela habilidade diplomática verdadeiramente relevante dos termos em que está redigido.

Para melhor conhecimento dos leitores damos em nossa primeira página o texto integral da importante missiva pontifícia, limitando-nos, aqui, a mencionar os tópicos mais essenciais para a perfeita compreensão do que o Vigário de Cristo acaba de dizer e fazer.

É para nós um feliz privilégio o direito de dizer claramente nossa opinião sobre o assunto. Sempre fomos irredutíveis adversários das formas de governos dos países do “eixo” e quando o Brasil entrou em guerra já propugnávamos abertamente a vitória dos aliados. Cada dia que passa nos confirma nesta posição. Podemos, sem nenhum prejuízo desta atitude, lamentar o bombardeio de Roma.

Mestre infalível da Verdade, o Sumo Pontífice funda sua atitude em um princípio doutrinário ao qual o Catolicismo tem sido fiel em todo o decurso de sua longa e gloriosa história. Mãe comum de todos os povos, a Igreja lamenta com suma dor as guerras que entre eles possam surgir, máxime se elas ocorrerem entre povos cristãos, e especialmente católicos.

A sabedoria da Igreja é por demais profunda e sobrenatural para que esta aversão à guerra e à efusão injusta do sangue humano tenha jamais degenerado no pacifismo sonhador e tolo, tão em voga depois de 1918. A Igreja sabe que, enquanto o mundo existir, haverá de quando em vez guerras entre os povos. Sua preocupação essencial não consiste, pois, em criar uma ordem de coisas em que não haja mais guerras, mas em reduzir o inevitável flagelo da guerra às menores proporções, diminuindo o mais possível o número de conflagrações, circunscrevendo-lhes a extensão e a duração, e reduzindo ao estritamente indispensável seus efeitos sobre as populações civis e sobre os próprios combatentes.

Nada mais glorioso e elucidativo neste sentido do que a obra levada a cabo pela Igreja durante a Idade Média. Com a queda do Império Romano do Ocidente, numerosas hordas bárbaras, subdivididas em tribos, se fixaram nas províncias do Império, onde continuaram a viver com seus hábitos selvagens entre os escombros da civilização que haviam arrasado. E, como as tribos conservaram o costume de se guerrearem reciprocamente, presumem muitos historiadores que daí proveio a funestíssima tradição das guerras entre os vários feudos. Estas guerras traziam à Europa em constante sobressalto e agitação, tanto mais quanto não excluíam as guerras entre os reinos, de sorte que a efusão de sangue cristão, ora por luta fratricida entre os filhos da Igreja, ora em consequência dos combates contra pagãos e sarracenos, era abundantíssima.

Diante desta deplorável situação, a Igreja empenhou todo o seu prestígio para manter em paz os príncipes cristãos, funcionando a Santa Sé como verdadeiro tribunal internacional entre os povos da Europa. E, ao mesmo tempo, desenvolveu um esforço admirável no sentido de reduzir, tanto a duração das guerras, que ficasse proibida em certos dias ou períodos, quanto o alcance de suas devastações, pela proteção constante às populações civis que a doutrina católica exigia severamente fossem poupadas dos horrores e morticínios das conflagrações.

Com o declínio do espírito cristão no mundo, ocorrido em consequência da Renascença e da Pseudo-Reforma, as guerras se foram tornando cada vez mais cruéis, a ação internacional do Papado como elemento de conciliação entre os povos foi sendo cada vez menos importante, mas, ao menos, mil anos de civilização cristã de tal maneira haviam plasmado a alma europeia, que certas noções rudimentares sobre a proteção às populações inermes continuavam em vigor. No conflito de 1914-1918, falou-se muito, de parte a parte, na violação destas noções. Mas, de modo geral, a consciência internacional continuava a repudiar com o maior vigor tudo quanto se fizesse contra as massas humanas inocentes.

Pio X escreveu que o mundo de seu tempo, como um vaso do qual se retiraram as rosas, perdido embora o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o sensus Ecclesiae, conservava ainda algum aroma de cristianismo.

Infelizmente, aromas como estes não duram em vasos sem flores. No presente conflito, o maquiavelismo de certa tática militar inventou a chamada “guerra de nervos”, voltada essencialmente contra as populações civis. Todos nos lembramos ainda do espetáculo desolador e miserável de populações inteiras, alucinadas por uma campanha de boatos preparada com diabólica habilidade, que vagueavam de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, famintas, necessitadas de tudo, desorganizando toda a vida civil, e arrastando como uma avalanche novas populações em sua fuga, o que ocasionava sofrimentos dantescos, difíceis de se imaginar.

O objetivo desta tática diabólica consistia em anarquizar os serviços de resistência da retaguarda, desmoralizando as autoridades governamentais, e introduzindo nas próprias forças armadas a desorganização, o desânimo, e a impossibilidade moral e física de lutar.

A esta tática veio dentro em breve juntar-se outra: o bombardeio tremendo e ininterrupto de determinadas cidades durante semanas e meses inteiros, com o que se visava facilitar a ação dos elementos antigovernistas, e, pelo terror da população, obrigar os governos a capitular. Em síntese, as populações civis passaram a ser alvo predileto da guerra moderna. E uma tradição cristã milenar se esvai de todo.

Mas tudo isto é muito eficaz para alcançar a vitória, dir-se-á. E é certo. Mas em guerra nem tudo que é eficaz é lícito. Do contrário, chegaríamos à aberração de legitimar o envenenamento dos poços de que se serve uma cidade, o emprego de gases asfixiantes para destruir uma população inteira, ou o uso da guerra bacteriológica, para dizimar não só uma cidade, mas toda uma nação.

Não, a eficácia não é nem será jamais para um católico o único critério para o emprego dos recursos militares. Acima da sanha de destruição ou até mesmo de defesa, há uma força maior, um princípio transcendental e inatingível a respeitar: é a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas, dir-se-á, se um beligerante ataca a população civil de outro, a represália é justa, e por vezes representa uma necessidade militar iniludível.

Não concordamos. Não é próprio do cavalheirismo cristão fazer expiar em mulheres, crianças e velhos, os crimes dos homens válidos. Ademais, se fôssemos admitir que uma transgressão das leis de guerra autoriza outra, chegaríamos à conclusão de que os abusos não podem ser extirpados da guerra moderna, porque a parte lesada por último terá sempre uma legítima desforra a alegar. Com isto, a Igreja deveria renunciar à sua missão pacificadora e morigeradora.

* * *

Por esta razão, a doutrina católica tinha de reprovar o bombardeio de cidades como Londres, e também de Coventry, verdadeira joia de arte inestimável relíquia do passado, como também tinha de reprovar o bombardeio de cidades como Colônia ou dos reservatórios de água na Alemanha, com que se inundaram regiões inteiras de populações civis inermes.

Em toda a medida em que ainda se possa dizer que a atual civilização conserva tintas de cristianismo, deve-se repudiar estas práticas. Com efeito, a Igreja não seria fiel, nem a seus princípios nem a seu passado, se não proscrevesse severamente o emprego de tais meios de combate. E por isto o Santo Padre, que protestou contra o bombardeio de cidades abertas, de cidades em que estavam populações civis inermes, o fez no exercício de sua função de Pastor supremo de todos os povos.

É o que ele lembra no seguinte tópico: “Sabeis que o espetáculo triste dos massacres e ruínas que se acumulam contra as populações inocentes e desarmadas, induziu-nos desde o começo da guerra a fazer tudo a nosso alcance para impedir que os sentimentos e os princípios da humanidade fossem completamente sufocados pelas paixões durante os choques dos exércitos”.

E esta intervenção não visou beneficiar um ou outro dos beligerantes. O Santo Padre a fez apenas para proteger as populações civis. É o que frisa no seguinte período: “Por esta razão ... recordamos aos beligerantes de ambos os lados que, se desejassem manter a dignidade de seus países e a honra de seus exércitos, deveriam respeitar a segurança dos cidadãos pacíficos, e os monumentos da Fé e da civilização”.

Quando se falou no bombardeio de Roma, o Santo Padre, que além da Paternidade universal de todos os povos, é ainda bispo da Cidade Eterna, sentiu naturalmente comoverem-se sua compaixão e sua piedade. E, por isto, dirigiu-se “a ambos os beligerantes”, pedindo-lhes que gregos e troianos tomassem as medidas necessárias para que Roma não fosse transformada em alvo de guerra.

Neste sentido, as palavras do Papa foram textualmente estas: “... pedimos a segurança de Roma em nome da dignidade humana e da civilização cristã. Parecia possível para nós esperar que o valor da razão e da autoridade que desfrutamos, e da imparcialidade que temos assumido em relação a todos, sem distinção de nacionalidade e religião, teriam assegurado para nós o conforto, entre tanta amargura, de encontrar eco favorável aos nossos pedidos, junto a ambos os beligerantes, em favor de Roma”. E o Santo Padre acentua a amarga decepção que esse apelo aos dois lados Lhe trouxe: “Mas a nossa esperança foi frustrada. Aconteceu aquilo que temíamos. Aquilo que prevíamos é agora triste realidade...”.

O bombardeio de Roma corresponderá realmente a conveniência estratégica de destruir elementos de defesa essenciais da península? Ignoramo-lo. Entretanto, o fato pouco importa. Com efeito, há uma lógica de guerra na qual, como católicos, não queremos, não podemos e não devemos entrar. Diriam os responsáveis pela defesa militar romana que seria ridículo deixarem a cidade inerme, não dispondo da menor garantia a não ser a que protege as cidades abertas, segundo o Direito Internacional, pois isto seria insuficiente para imunizar contra os ataques anglo-americanos. Os aliados, por sua vez, responderiam que, já que Roma dispõe de importante defesa, o destroçamento de seus meios de resistência seria utilíssimo para a conquista da península.

É neste círculo vicioso, triste fruto da deslealdade da guerra moderna, de sua crueldade, do espírito pagão do homem contemporâneo em síntese, o que nos interessa essencialmente como católicos, isto é, a salvaguarda da tradição cristã de defesa às populações civis pereceria. E é com isto que não podemos, de modo algum, concordar.

* * *

Foi o que fez o Santo Padre. Fê-lo, acentuando o caráter sagrado de Roma, cabeça e mãe de todas as cidades católicas do orbe, em termos tão sentidos e tão carinhosos, que outra coisa não podemos fazer, senão recomendar a todos os nossos leitores que leiam de joelhos as palavras do Vigário de Cristo.

Roma não é uma cidade qualquer. E, ainda que capital do reino da Itália, não deixa de ser a diocese de Pedro, o solo e até o subsolo sagrado, onde cada polegada, cada milímetro, contém uma recordação suave ou gloriosa para o coração dos católicos. Pelo que, se o LEGIONÁRIO é contrário ao bombardeio de populações civis, a fortiori deplora, do mais fundo e do íntimo de seu coração, o bombardeio da capital augusta do mundo católico, daquele verdadeiro escrínio, daquele admirável relicário, que é a cidade dos Papas.

Mas isto não basta. De Buenos Aires como de Dublin e de outros lugares, tem o Santo Padre recebido provas de solidariedade dos fiéis na hora amaríssima que atravessa. O LEGIONÁRIO, que faz do sentire cum Ecclesia seu único ideal, e da obediência e amor ao Pontífice sua norma mais constante e inflexível, está aos pés do Santo Padre neste momento, e formula ao Coração Imaculado de Maria suas mais ardentes preces para que, cessados quanto antes os presentes bombardeios, as inúmeras e inapreciáveis relíquias de Fé, de arte e de civilização da Cidade Eterna continuem intactas, bem como salvas dos atuais tormentos as pessoas inocentes por elas ameaçadas.


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